Um aniversário em um bar na laje me levou, com minha companheira, a subir o Morro do Cantagalo, em Copacabana. Ela visitara favelas antes. Eu não. Fui a lugares pobres, e todos têm suas peculiaridades. As do morro, não conhecia.
Todo espaço é de todos – os moradores
A esquina da Sá Ferreira com a ladeira funciona como um portal. Todas as pessoas invisíveis em nosso dia a dia “de repente” aparecem naquela curva. Vendedores de praia, com as cadeiras que alugam carregadas na cabeça, empregadas domésticas, motoristas, seguranças.
Na escuta das conversas, fica fácil notar que essa classificação “profissional” é coisa nossa, do mundo plano. Lá, eles são os “moradores”. Eu sou forasteiro.
… não dão espaço pra morador passar…
É nesse momento que saio da calçada, entro na Kombi e sento no canto. Esse é o espaço dessas pessoas, moradoras, que não têm acesso a milhares de espaços aos quais eu tenho.
Essa distinção é crucial. Não há espaço próprio. Via de regra, as residências são pequenas, as ruas são pequenas, os carros precisam ser pequenos. Assim, cada um ganha passe livre para ocupar todos os outros espaços da favela, além da própria casa. Pessoas e carros tomam, juntos, as vielas, enquanto o conceito de pedestre permanece no plano. As crianças assumem o papel de grandes exploradoras, conquistando cada laje, telha ou corrimão.
Então chego lá me apropriando do pouco espaço que conquistaram?
Marginalização
A questão espacial é totalmente conectada à marginalização dessas comunidades. Marginalização, aqui, pois estão efetivamente à margem: de nossas expectativas sociais; do alcance do Estado; do alcance do “Mercado”; até de nossa consideração de existência.
A forma – conturbada a meus olhos, natural aos deles – como a rua funciona demonstra a diferença legislativa. A lei não se encontra no papel ou pintada no chão, está no sangue. As cerca de quinze pessoas que eu juraria que seriam atropeladas, fosse o movimento do veículo na Avenida das Américas, não esboçaram qualquer reação de susto.
No topo, bar de destino, escuto que o interessante de nós, de fora, estarmos ali, é a tentativa de integração, de ir contra o isolamento entre os mundos. A tentativa é bonita, é importante. Contudo, algo não me agrada. No fundo, ainda que não tenha percebido na hora, me senti em um “favela tour”. O bar não tinha os fenótipos do resto da favela, em seus frequentadores, funcionários, cardápios. O caminho foi feito na Kombi oferecida pelo bar. Não andei em meio à “muvuca”, não frequentei um local ou evento que qualquer pessoa da comunidade frequentaria, não ingressei na cultura de lá. Não houve integração, houve invasão.
Apenas em estar de pé, na calçada, a espera da subida, já estamos ocupando um espaço. Mas vamos além, fazemos bares e colocamos nosso preço, aquele que só nós podemos pagar. Nós, detentores de todos os outros espaços. A marginalização dentro da própria favela.
Paleta de cores
O momento mais impactante, que trouxe esse texto à tona, aconteceu na curva da saída da favela. A paleta de cores mudou. Não falo aqui de elementos de cenário, mas da população. O mundo era preto. Uma esquerda depois, o mundo era branco.
O impacto veio na volta, pois na ida muitas pessoas ainda eram invisíveis no meu ponto de vista. Então, entre o caminho e a chegada ao bar, nova mudança, do preto para o branco. Na saída do bar, do branco para o preto. Os olhos se ajustaram ao longo do dia, para enxergar o contraste em seu auge na saída.
É bizarro. Para mim, um negro fora do ambiente dos negros, a sensação de não pertencimento foi latente. O ambiente me dizia que a probabilidade de eu estar naquele, ou em outro morro, era enorme. As toneladas de acontecimentos que me levaram a não estar ali, simplesmente me faziam não pertencer à favela.
A probabilidade de estar no ambiente onde estou é remotíssima. Tão remota, que também não pertenço a aqui, no “nível do mar”. Não estou onde determina a estatística.
Muitos temas inflamadores de discussões de Facebook, como as cotas, são refletidos por essa percepção. É comum escutar/ler de pessoas à minha volta, reclamações pela quantidade de cotas, pelo cunho racial, e não só monetário, ou mesmo pelo “roubo de vagas”. Afinal, quantas pessoas negras e/ou pobres enxergamos no dia a dia? Não enxergamos porteiros, caixas de supermercado, garis. Enxergamos colegas de trabalho, sócios, amigos. Quais as cores majoritárias em cada um desses grupos?
No cotidiano, visualizamos aqueles que se parecem conosco. Então parece injusto destinar 50% de vagas para um público o qual não percebemos a existência. Até a curva da Sá Ferreira.
Todo aquele povo que precisa de cotas e outras iniciativas está lá, onde nossa perspectiva não alcança.
Na UPP, à espera da Kombi para voltar, chega um carro de polícia. Minha namorada divide comigo:
Realmente, como diz o Alex (Castro), temos noção dos nossos privilégios quando chega um carro de polícia e nós nos sentimos seguros, e não com medo.
É um pensamento profundo e real. No entanto, algo me soa estranho. Sinto-me seguro quando chega o carro, por minhas roupas; sinto-me seguro quando chega o carro, pela presença dela. Não me sinto seguro pela minha pele. Reflito se me sentiria seguro em algum nível, se estivesse sozinho ali, e a viatura chegasse. Chega a Kombi.
Sem saber como me sentir, desci a favela.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.