Nota do editor: esse é o quinto texto de uma série sobre nossa capacidade de formar opiniões. Em um tempo de visões acirradas, precisamos recuar e entender o que nos faz tão radicais. Voltando a uma visão mais personalizada das opiniões, vamos explorar um de seus eixos mais polêmicos: a hipocrisia.

Poucas palavras carregam uma carga tão negativa, sem serem consideradas “palavrões”. A hipocrisia é um chamariz para comportamentos radicais. Aguardamos ansiosamente uma “revelação de incoerência” para derrubar um argumento contrário, enchendo a boca para chamar a outra pessoa de hipócrita.

Ao mesmo tempo, se percebemos o dito comportamento em nós, falhamos. Qualquer BBB aparece nas “chamadas” do programa se dizendo autêntico, a pessoa que fala o que pensa, sem falsidades. Esse discurso existe pois o pior defeito que alguém sob holofotes poderia ter é a hipocrisia. Acreditamos nesse fato.

Tremenda besteira.

Da mesma forma que defendi o arrependimento por aqui, hora de defender essa característica.

A conotação da hipocrisia

Lendo as definições acima, eu também não quero ser assim.

Parece fácil, até inquestionável, tratar a ação hipócrita como podre. Ela se baseia na mentira, uma mentira em que o próprio indivíduo acredita ser verdade. É um veneno poderosíssimo.

Para avaliar se o peso negativo faz sentido, precisamos perceber de onde surge a hipocrisia e o que ela afeta.

A causa

Você já ouviu falar em vieses cognitivos? Serão importantes companheiros nos próximos textos da série “E a sua Opinião?”, então adianto a importância de entendermos esse conceito aqui.

Vieses cognitivos são defeitos de fábrica, erros ou incongruências de raciocínio originados nos mecanismos de nosso sistema nervoso para perceber o mundo. Já visitamos as defasagens da percepção do mundo pelo nosso cérebro quando falamos da imparcialidade.

Como tratado no texto de abertura dessa série, a imagem que nossos olhos enxergam é defasada e precisa ser interpretada, eliminando algumas informações da realidade à nossa volta. A quantidade de dados que são absorvidos pelo cérebro através de nossos sentidos supera (em milhões de vezes) a capacidade de processamento que possuímos.

Imperfeições físicas que são fontes de inconsistências.

Tratando de hipocrisia, seguindo as definições acima, olhamos basicamente para uma discrepância no tratamento que damos a nós e a outros. Existe um viés “dedicado” a esse cenário: a assimetria Ator-Observador. A explicação didática para a assimetria é o clássico exemplo do comportamento no trânsito. Quando alguém fecha sua passagem, você está na posição de quem observa. Provavelmente, nesse instante, opina sobre a conduta do carro da frente no nível de Dercy Gonçalves; a pessoa na direção é “despreparada”, “motorista de fim de semana”, etc. Já quando você fecha alguém, na posição de quem atua, é porque “o maldito zoom do Waze não evidenciou o caminho a seguir na bifurcação para sair do viaduto que você não conhece bem”.

Há diferenças nas causas da assimetria, dependendo da consciência ou da intenção do ato sob análise, se estamos olhando para uma pessoa ou grupo, estudadas até hoje por psicólogos. O foco aqui é compreender que sua existência é comprovada e tem origem biológica, está intrínseca no funcionamento de nosso sistema nervoso. Nosso próprio cérebro é gerador natural de incoerências, logo, de hipocrisia.

O efeito

Sabendo que a hipocrisia é uma potência natural a qualquer ser intitulado “humano”, peço para seguirmos uma combinação daqui em diante. Vamos esquecer os políticos? Chegarei neles mais à frente, pode confiar. Agora, estou interessado em mim, em você, em pessoas com a mesma potência para cometer erros, mas com um conjunto de motivações e incentivos completamente distinto daquela classe alvo da acusação clássica de hipocrisia. Vamos teorizar o que buscamos enquanto pessoas:

  1. buscamos aceitação – de maneira simplória, precisamos nos sentir parte de um grupo, parte da nossa sociedade. A moral, o conjunto de valores compartilhado do grupo social em que vivemos, é a melhor bússola que temos para alcançar a aceitação.

  2. buscamos identidade – precisamos tornar o mundo inteligível, o que depende de entendermos quem somos, o que nos define. Compreensão que molda nossas atitudes no cotidiano.

Deixando de lado se as duas buscas deveriam ser buscadas, cada ação que realizamos passa por 1 e/ou 2. A simples e metódica arrumação de canetas sobre uma mesa é manifestação de uma identidade que precisa de um pouco mais de linearidade para se sentir bem no mundo. A mesma pessoa pode vestir nesse dia uma camiseta de estampa AC/DC que faz sucesso no grupo de amigos, confirmando uma aceitação desejada.

No caso acima, 1 e 2 podem até não combinar, porém, não entram exatamente em conflito. Em algumas situações, as buscas se somam, abrimos sorrisos e seguimos felizes. Contudo, quando 1 e 2 se contradizem, nos perdemos como uma bússola desnorteada.

É o caso da mulher que tenta a 29ª dieta da vida, em busca de aceitação através de um corpo esperado pela sociedade. Mesmo que essa dieta negue a identidade da mulher, em sua relação com a alimentação. Ela afunda em hipocrisia buscando algo que não necessariamente quer, nem acredita ser bom de fato. Até que bebe uma Coca-Cola e pronto, é uma pessoa hipócrita por beber refrigerante após comentar que estava de dieta. A hipocrisia enxergada na mulher (para acusá-la) é só uma consequência da real hipocrisia que a pessoa está vivendo. Repare na última frase dos exemplos do início.

O verdadeiro hipócrita é aquele que deixa de perceber sua falsidade. Aquele que mente com sinceridade.

A pessoa que mente com sinceridade é a pessoa que mente, em primeira instância, para si – entende por que pedi para separarmos os políticos? Ela sinceramente acredita em algo, e segue de acordo com essa crença, sem perceber a mentira que está vivendo.

No caso da dieta, muitas (e muitos homens) chegam a outra forma de hipocrisia, conseguindo ficar magras, com alimentações muitas vezes menos saudáveis do que as que mantinham com pesos corporais maiores. Não faz sentido? Quantas vezes você pergunta a uma pessoa magra se ela está se alimentando bem? Se ela está se alimentando, ponto? Só assume que sim. E se ela estiver sem comer? Bulímica? Ela alcançou a aceitação, ainda que isso estrague a identidade dela (no caso, através da saúde física).

Você pode estar pensando em qual a relação disso com o “faça o que digo, não faça o que faço”. As pessoas do parágrafo acima não vão anunciar para o mundo como estão se privando de comida. Só contam a parte do suco de clorofila ou da dieta de nome indiano. Porque ninguém se interessa além desse nível de informação, bastam os dados visuais que posicionam a pessoa dentro do espectro de aceitação. No entanto, o que estão fazendo é completamente diferente, alimentando um ciclo de aceitação social que incapacita identidades.

O conflito entre 1 e 2, identidade e aceitação, trabalha em buscas tão intrínsecas ao ser humano que se torna quase invisível. A hipocrisia não é percebida. Essa discrepância não é definida pelas intenções. No exemplo, a pessoa com intenção de estar feliz e saudável, valores moralmente positivos, escolhe um caminho falso, convencida por uma de suas buscas (normalmente a aceitação). Da mesma forma, uma pessoa com intenções más pode cair em conflito semelhante e “mentir para si”, se convencendo de que suas ações são boas. Perceba como isso não é a hipocrisia em si, mas uma soma de más intenções com um estado hipócrita.

Vamos para outro exemplo, não menos polêmico. Você recebe pornografia no Whatsapp? Nudes aleatórios? Eu recebo. Se você é homem, provavelmente a resposta é sim. Se é mulher, bem, não falarei por você; no mínimo podem, igualmente, receber. O que fazer com esses arquivos? Como uma pessoa que apoia causas feministas; que defende uma relação mais equilibrada, igualitária, entre homens e mulheres; que tenta desconstruir atitudes machistas nas relações dentro e fora de casa, é uma tremenda hipocrisia ficar “curtindo” mulheres sendo expostas em uma rede social.

Veja bem, se duas pessoas estão trocando nudes entre si, é uma questão delas. O ponto aqui é quando as imagens ou vídeos atravessam o mundo e chegam a mim ou a você, sem qualquer conexão com essas relações. Talvez haja pessoas que não se importam se suas intimidades forem reveladas dessa forma, para estranhos. Talvez. Mas, eu não tenho essa informação e, com certeza, muita gente se importa. Mulheres já se suicidaram por situações como essa. Suicídio!

Com essa reflexão eu aprendi a não compartilhar. Acredite, compartilhar esse tipo de mídia é uma cultura fortíssima entre homens. A imagem ou vídeo que chegava até mim por um grupo provavelmente chegaria até outro, bem, porque sim. Como um dos “elos” da corrente, o fluxo só seguia; quebrei o elo.

Mas não é suficiente. Quão humilhante pode ser para aquela mulher que não me conhece – ou pior, me conhece? – que eu abra uma imagem e acabe vendo-a nua sem permissão? Então entrei nas configurações e, sem o menor esforço, qualquer foto/vídeo do meu Whatsapp não faz mais download automático. Se eu percebo o conteúdo pela imagem turva antes do download, o thumbnail, ou por alguma mensagem anterior, simplesmente apago.

Ufa, minha hipocrisia diminuiu bastante, afinal, parei de consumir esse tipo de conteúdo. Todavia, eu ainda estou nos grupos que compartilham esses arquivos. Eu vejo pessoas relacionadas comigo trafegando essas informações, essas exposições. Só defendo causas feministas em grupos anônimos de Facebook? Só escrevo em textos sobre as posições “positivas” que alcancei? Estou nisso só para “ganhar likes”? Cadê meu posicionamento lá, no meu grupo, no meu ambiente?

Hipócrita. O passo que ainda não consegui dar revela o ponto em que ainda me mantenho hipócrita. Então por que vim aqui defender hipocrisia? Para não precisar me posicionar sobre causas nesses grupos? Não. Vim defendê-la pela oportunidade que representa.

Eu só parei de compartilhar e depois de abrir de qualquer forma esse tipo de arquivo porque, em algum momento, ficou evidente para mim a hipocrisia envolvida. Já falamos no início, mas repito. No fundo, todos somos hipócritas. Há algum aspecto na vida de cada um que revela como aqueles pontos lá em cima, 1 e 2 – agir conforme é padrão/aceito e agir conforme nossa identidade, nossos valores -, colidem. A exceção seria uma pessoa enxergar em sua identidade somente valores exatamente idênticos (com pleonasmo mesmo) aos valores vigentes na norma social de seu ambiente. Sabendo que valores sociais mudam com o tempo e que valores identitários mudam com a situação (agimos de um jeito com avós, de outro no trabalho, de outro com amizades). Duvido.

É por representar uma oportunidade que a capa do texto apresenta Robby, o personagem de Michael Keaton em Spotlight. Afinal, não seria para defender a falsidade sistêmica da Igreja Católica que eu escolheria essa imagem. No momento em que um padre molesta uma criança, como representante da instituição, ele torna toda a instituição hipócrita. Contudo, as lideranças da organização não são obrigadas a esconder o fato e absolver o padre. A hipocrisia é escondida pela corrupção, essa sim uma soma nefasta comum ao meio político. Mas a Igreja não está mentindo para si. Ela mente para o mundo, para os fiéis, para as vítimas.

Já Robby, para quem lembra do filme (se você não assistiu e não quer spoiler, sugiro pular a próxima sessão), é a pessoa que teve em mãos a chance de investigar o escândalo anos antes aos eventos do filme. Ele ignorou as denúncias da época. A produção mostra a força do catolicismo em Boston, o ambiente de aceitação que leva Robby a não olhar para o caso com a seriedade necessária. Passamos boa parte do filme tentando entender por que o caso não teve a investigação necessária nos anos anteriores, enquanto ganha corpo no presente, para descobrir ao final, junto ao personagem, que ele foi determinante para travar a denúncia na época. O mesmo Robby que agora era determinante ao dar corpo à investigação para que ela tivesse força e efeito.

Robby é um exemplo da hipocrisia como um estado, que requer uma ação sobre.

Hipocrisia é o lugar-comum

A hipocrisia está no voto que damos em pessoas candidatas que representam ideias políticas que não seguimos no dia-a-dia. Nas reclamações de trânsito que fazemos, mesmo agindo da mesma forma ou pior quando no volante.

Na crítica aos “vagabundos que recebem Bolsa Família” ou ao Estado que fornece essa renda básica, enquanto se sonega impostos em valores múltiplos, muito superiores aos de uma dessas bolsas.

Na defesa da liberdade enquanto se usam produtos eletrônicos fabricados em condições execráveis na China. Para não ficar tão longe, defender liberdade e comprar roupas na Renner.

O mundo funciona de maneira hipócrita. Não só não escapamos como estamos sujeitos a elementos de hipocrisia. A quantidade de hipocrisia na imagem abaixo é no mínimo igual à quantidade de linhas.

Tráfego fast motion

ala ala ala, eu e você passando

A gente pode, no entanto, olhar para hipocrisias como oportunidades de desenvolvimento, ao invés de iscas num debate para “refutar o outro”. Cada incoerência que descubro em mim é um traço que posso melhorar. Hipocrisia é a essência da imperfeição humana, base para passos de evolução.

Não faz sentido recortar um tweet de 2011 de um perfil famoso na internet, para mostrar “o lado preconceituoso de @fulanodetal, olha que hipócrita ele defendendo tal coisa agora”. Faz um pouco mais de sentido observar um recorte de tweets de 2011 e 2016, mostrando se @fulanodetal mantém as visões de outrora, ou evoluiu com essas oportunidades – convenhamos que ideal é não se dar o trabalho de caçar tweets de 2011.

Precisamos condenar não a hipocrisia em si, que é inerente, mas a acomodação, a indiferença ou até a intenção de se manter com ela. A pessoa que descobre sua hipocrisia e não entra em conflito sobre ela, não questiona o que pode mudar, aceita sua situação de incoerência como natural ou positiva, é a pessoa “de acordo” com viver uma mentira. O desvio de caráter não é a hipocrisia em si, que é um estado, mas a decisão imoral sobre esse estado. O clássico exemplo da pessoa que reclama de corrupção e suborna um policial para escapar de uma multa não é podre por ser hipócrita. A hipocrisia é o estado da pessoa, a sua incoerência. O exemplo é podre porque o objeto da hipocrisia é a corrupção – esta sim, podre. Um político corrupto como Eduardo Cunha sequer é hipócrita; ele não se sente em situação de incoerência, não mente para si. Ele simplesmente manipula o jogo em seu favor.

Políticos raramente atuam no campo da hipocrisia, na verdade, apesar de ela ser costumeiramente atribuída a essas figuras. Isso acontece porque o discurso de um político, como vimos na Janela de Overton, é uma resposta à opinião pública, em especial seu público-alvo. Bolsonaro não é hipócrita ao defender penas mais pesadas contra estupro enquanto apoia pastores acusados de estupros frequentes. Ele busca um eleitorado de nicho e o crescimento/proteção de aliados. Ele simplesmente capitaliza a hipocrisia latente em pessoas que não percebem essa incoerência “sistêmica”. Chamá-lo de hipócrita significaria dizer que seus valores identitários estão em conflito com os valores sociais de seu ambiente. Hipócritas somos nós, não quem usa os conflitos de valores de eleitores como moeda. Estes, como Bolsonaro, são só escrotos mesmo.

Defender a hipocrisia não é abraçá-la. É reconhecê-la. Tratamos com distanciamento uma falha intrínseca a nós mesmos, então julgamos essa característica apenas no outro, com um peso que evita o reconhecimento. Precisamos reconhecê-la, senti-la, para então dissolvê-la, jogá-la ao vento. Aos poucos, ela vai; aos poucos, seguimos. Mais leves, menos hipócritas.

Veja os outros textos da série aqui:

E a sua Opinião? #1 – A Falácia da Imparcialidade

E a sua Opinião? #2 – A Espiral do Silêncio

E a sua Opinião? #3 – Você enxerga o mundo pela Janela de Overton

E a sua opinião? #4 – Quando a Opinião Vira Teoria Conspiratória


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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