A discussão sobre o preconceito alcançou um estágio de continuidade. Felizmente, todos os dias há um texto novo abordando a homofobia, o racismo, o machismo, a transfobia, a teofobia ou a “ateísmofobia”1, dentre outros. Como, efetivamente, acabar com todos os preconceitos?
Para responder à pergunta, sugiro aqui uma divisão em três termos: preconceito, discriminação e intolerância.
Preconceito
Prefiro começar sem ilusões: é inacabável. Ao menos enquanto tivermos o mesmo sistema cognitivo operante.
Nosso raciocínio funciona muito baseado na ideia da classificação: divisão em grupos, e associação de características aos grupos. Não importa se a classificação é uma vantagem adaptativa em prol da sobrevivência da espécie, ou uma característica inerente do Universo criado por Deus (ou qualquer outra teoria de origem da vida). Todo defensor de qualquer uma dessas teorias ligará o alerta de perigo se ficar frente a frente com um leão exibindo os caninos.
O exemplo acima não só clarifica que a classificação é inerente a todos, como que é útil. Queremos a todo custo evitar estar no espaço de um leão desejoso de mostrar seus dentes. No entanto, será que uma criança que nunca viu, ouviu e leu sobre o tal leão sentiria o mesmo medo deste?
Não. Seria como nascer já odiando o Flamengo ou o Vasco. Provavelmente, o primeiro grupo de seres humanos que se deparou com um leão (ou espécie próxima a ele) perdeu um membro do grupo. Antes desse encontro, não havia característica a ser associada àquela figura, então não havia a classificação.
A partir do momento em que a associação do perigo é feita para o grupo de grandes felinos selvagens, a criança se torna capaz de sentir o mesmo medo que a acompanhará ao longo da vida. A associação poderá vir de um ensinamento ou de uma experiência. Concluída a etapa, não será necessário ter curiosidade sobre o animal, tentar descobrir suas características, e no meio tempo, sofrer o bote. O reflexo será gritar e correr.
No sentido inverso, é um conforto para nossos instintos encontrar com um semelhante. Da mesma forma que classificamos tudo com que interagimos, nos classificamos. À medida que estamos em um grupo com características ímpares, todos aptos a receber a mesma classificação representam menos perigo, mais conforto; afinal, não há motivo para nos temermos, correto?
Esse é exatamente o processo do preconceito. Assim como o leão é parte de um grupo ao qual foi associada a ideia de perigo, as pessoas negras foram eventualmente associadas à desempenho físico, as mulheres foram associadas à fragilidade, os homossexuais foram associados ao pecado.
A associação, no entanto, é um processo vivo, não se atém a um nível. Na Antiguidade, guerras entre povos eram o lugar-comum. Qualquer civilização se defendia de outras à sua volta, atacava para evitar ser derrotada em um futuro, conquistava pois dominar era uma prevenção a sumir do mapa. Cada batalha gerava um novo círculo de associações, onde o povo diferente virava povo inimigo, e medo se misturava a desejo de vingança, a ódio.
Se era um valor da época transformar povos conquistados em escravos, e existia uma associação dos negros ao desempenho físico…
Se era um valor da época batalhar pela sobrevivência, e existia uma associação das mulheres à fragilidade…
Se era um valor da época desejar um lugar no Paraíso, e existia uma associação dos homossexuais ao pecado…
Dessa forma os preconceitos que conhecemos hoje foram construídos por iterações de associações, a seguinte somada à anterior, até o ponto em que olhar com aversão ou superioridade a outro ser se tornou um reflexo; igual a sentir medo do leão.
O preconceito, no entanto, se limita ao campo das ideias, o que inviabiliza a sua erradicação. Não existia preconceito contra nerds viciados em videogames antes da existência destes. Cada transformação na sociedade é capaz de renascer o impulso do preconceito. Passamos a tomar ciência quando ele é externado, momento em que entramos no escopo de outro termo.
Discriminação
A palavra discriminação poderia ser empregada da mesma forma que a classificação, ao menos na ideia de separar grupos, distingui-los.
Com o tempo, o termo absorveu o resultado do preconceito, e começou a designar o tratamento negativo, injusto, aos grupos alvos do mesmo.
Como a separação em agrupamentos pode se dar de forma física, estamos falando de discriminação, e não apenas de preconceito, quando citamos o Apartheid, por exemplo. A discriminação, como implica a palavra “tratamento”, define uma ação, uma aplicação de preconceito. Isso a torna mais visível, viabilizando seu combate.
A discriminação não se restringe a políticas de Estado, no entanto. O isolamento de uma pessoa de origem pobre em meio a um evento onde a média dos frequentadores é rica, já caracteriza a discriminação. A setorização por preço de um espetáculo como teatro ou partida de futebol, é uma discriminação, quer considere negativa, quer não.
A avaliação sobre o caráter da discriminação importa na tentativa de combate. Afinal, uma empresa automotiva precisa discriminar (categorizar) seus clientes pelo modelo de carro comprado, na hora de realizar um recall.
Nem sempre a avaliação será trivial. As cotas, por exemplo, bem ou mal aplicadas, são discriminações realizadas para reajustar desvios sociais causados por discriminações de outrora. Discriminação para corrigir discriminação. Talvez justa, talvez injusta, definitivamente polêmica.
Os casos específicos, todavia, não eliminam o fato de que atos discriminatórios baseados em preconceitos causam dano. Especialmente porque uma pessoa capaz de tais atos, ao caminhar para o extremo, se encontra com o próximo termo.
Intolerância
Intolerância é uma palavra forte. Tão forte que “tolerar”, que seria o lado “positivo”, já traz consigo uma carga de desgaste, ou até de desgosto. O tolerante é aquele que prefere outra via, porém suporta, resiste, por algum motivo.
Intolerância, então, fala da completa incapacidade de tolerar algo. Um intolerante não consegue conceber a existência de seu alvo. A simples presença do objeto da sua intolerância o atormenta.
Quem é acometido por um sentimento tão extremo se torna capaz das barbáries que tanto nos assustam (até deixarem de assustar por sua frequência). Linchamentos, execuções, de todo tipo de pessoas até animais, por uma construção social de cor, gênero, religião, riqueza, paixão por time de futebol…
A intolerância é inaceitável. Com certo cuidado quanto ao paradoxo e as possíveis consequências, ela própria é um tanto intolerável. Não apenas se manifesta concretamente, tal qual a discriminação, como necessariamente gera grande dano ao seu objeto.
É possível acabar com a corrente?
O Brasil vive um momento de insegurança (política, econômica, social e física) que exarceba lapsos de preconceito, discriminação e intolerância, mesmo entre aqueles que lutam contra determinadas fontes de preconceito. Surgem linchamentos (des)organizados por civis, tentativas de justiçamento que mais pioram o quadro do que tem efeito positivo.
Acaba por ser um momento de necessidade de extremo cuidado do Estado – aquele com a prerrogativa da aplicação da Justiça -, de coibir os atos de intolerância. Exatamente o extremo cuidado que parece não existir.
Já para nós, reles mortais, é possível talvez evitar um caso de espancamento acontecendo em nossa vista, via argumentação. Também é um tanto louco, já que podemos nos tornar alvos. Nossas armas contra a intolerância, individualmente, são poucas.
Ao mesmo tempo, por ser um grupo menor do espectro da discriminação, a intolerância, qualquer que seja, pode ser abolida. Vamos então subir um degrau na escala, de volta ao 2º termo.
A discriminação não é tão simples de tratar como a intolerância. Enquanto a segunda se apresenta em rompantes violentos um tanto raros, a primeira é lugar-comum. Nem está toda ela à face da lei.
Parece simples ver a atuação do Estado sobre a discriminação, quando se usa o Apartheid como exemplo. Tomemos outro então. Um edifício de famílias brancas cristãs heterossexuais vive o sonho carioca que estamos acostumados a ver em novelas de Manoel Carlos. Um dia, uma família ___________ (minoria a sua escolha: negra, muçulmana, homossexual, etc) compra um apartamento no condomínio.
As crianças da família entrante têm dificuldades nos primeiros meses da escola, devido ao isolamento destinado à sua família. As festas organizadas pela assembléia do condomínio não incluem convites aos “forasteiros”. Uma das famílias veteranas se muda graças à novidade em seu antigo prédio.
A lei não consegue tocar esse contexto. A discriminação está inundando a situação, e a resolução depende completamente das pessoas. Apesar de horrível, a atitude da última família é até preferível à hipótese de ela sucumbir à intolerância e atacar os novos vizinhos, portanto, mesmo julgamentos aos discriminadores requerem certa cautela.
O círculo de discriminação pode ser quebrado, entretanto, por uma das famílias. Talvez por uma das crianças. É nesse ponto que a não-omissão é crucial. Seja no caso hipotético acima, em uma conversa de bar ou no Whatsapp, a discriminação é algo ativo, aparece. Logo, pode ser questionada. Não se omitir é algo perfeitamente capaz de acontecer.
O principal raio de ação de qualquer pessoa se situa contra a discriminação. E diminuí-la representa uma repressão direta à intolerância.
É essa relação direta entre os termos que faz a luta contra o preconceito tão importante. Diminuir o preconceito significa reduzir a discriminação e mitigar ainda mais a intolerância.
A má notícia é que o preconceito reside no mundo das ideias. A batalha contra este pode e deve ocorrer dentro da mente de todos, mas para espalhamento, depende da atuação de educadores, criadores e replicadores de conteúdos, pensamentos e reflexões. A boa notícia é que cada vez mais agentes podem atuar dessa forma. Não só pais, escolas, empresas, governo e artistas detêm o meio de influenciar as ideias. A Internet deu esse poder também a qualquer pessoa.
Cada um de nós é capaz de fazer um post contra o preconceito, curtir ou compartilhar um texto, uma imagem, gravar um vídeo, que golpeiam as ideias preconceituosas. Por esse motivo obras são importantes. Iniciativas como as de personalidades do cinema na última cerimônia do Oscar são importantes. Campanhas de vanguarda, de empresas ou do governo, são importantes. A troca da foto com o arco-íris no Facebook foi e é importante. Qualquer ação contra o preconceito é importante.
É impossível saber se o preconceito acabou, já que mora dentro da mente de cada um. Se convencido, contudo, de não ser externado, de não se transformar em discriminação… baita vitória, não?
Você pode obter a imagem de capa aqui ou clicando nela abaixo. Pode servir como um guia em discussões sobre o preconceito, sinta-se livre para compartilhá-la independente do texto. Pode usar sem medo.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.