Pete Campbell - Mad Men

“Estou desistindo de minha vida para ficar com você, não estou?” – Pete Campbell, personagem de Mad Men, falando ao telefone com a futura esposa (ep1.01 Smoke Gets in Your Eyes).

A língua é desses elementos de um povo, presente há muito mais tempo que qualquer um de nós que fazemos parte dele. É das primeiras lições de um ser humano na vida, e levamos tanto tempo nos tornando medianos nela, que soa como algo etéreo, intangível. Não é.

A língua se transforma todos os dias. Está mudando agora, com uma velocidade incrível.

A primeira vez que notei que a língua também sofre mudanças foi quando aprendi sobre a etimologia – aquele tal estudo da origem das palavras – da palavra “denegrir”. É um verbo que vem do latim denegrire – de (resultante/proveniente de) + nigrus (negro, escuro). Denegrir é “tornar negro”.

Veja bem, eu poderia falar que estou denegrindo a página do Word em que escrevo, apenas por usar uma fonte preta em uma folha branca. Ou ao pincelar um quadro com a cor negra. Não é assim que usamos a palavra, no entanto. Ela aparece quando entendemos que algo foi criticado/ofendido. “Você está me denegrindo!” – está prejudicando a imagem.

A palavra denegrir absorveu um contexto social; se o negro é pior, é escravo, é menos humano (ou menos que humano, para algumas visões que remetem ao século XIX, por exemplo), comparar ao negro se torna prejudicar a imagem. Sim, quando usamos essa palavra, estamos dizendo que fomos comparados a um negro, e que isso é ruim.

Esse tipo de absorção de significados conotativos acaba esquecida por futuras gerações. Reproduzimos ideias de contextos antigos, muitas vezes já rejeitadas por nossos tempos, por puro desconhecimento. Pois bem, agora você já pode receber a primeira sugestão: parar de usar o verbo “denegrir” no sentido corrente.

Para muita gente o exemplo do verbo “denegrir” já está batido, ou a palavra nem é tão utilizada assim. Todavia, se fazemos isso com esse verbo, com quantas palavras mais não repetimos essa postura?

Com essa pergunta em mente, uma frase não só corriqueira, mas bastante destacada como parte de um momento simbólico, especial, acendeu minha curiosidade. Você já deve ter ouvido em um casamento, o momento em que a pessoa celebrante diz: “Vos declaro marido e mulher”.

Por que “marido” e “mulher”? Por que não existe “marido” e “marida”, ou não se usa “esposo” e “esposa”? Lá fui eu pesquisar.

Para começar, “marido” vem do latim maritus, que deriva de mas – masculino. Maritus é, especificamente, o homem casado.

Acontece que o latim não era apenas um. Em determinado momento histórico, era dividido no latim clássico e no latim vulgar.

Quem já foi à missa escutou influências do latim clássico, nos cantos e preces eclesiásticas. Era o latim da aristocracia do Império Romano do Ocidente, o padrão gramatical e base da literatura, grosseiramente falando. Seu uso no campo das Artes, no entanto, o tornava suscetível a mudanças por novos estilos ou movimentos artísticos. A exclusividade de sua utilização também o fez sofrer com as baixas da própria Roma: as invasões bárbaras que acabaram com a Idade Antiga, também reduziram os números de pessoas próximas ao latim clássico. A soma desses fatores fez com que ele sobrevivesse recluso a grupos como a Igreja Católica.

Alguns termos do latim clássico sobrevivem até hoje, pelo intercâmbio que existia com o latim vulgar, no entanto, é este que tem maior presença nesse texto, ou na mensagem que você manda para seus contatos no Whatsapp. Era a língua da massa. Teve o espaço para se expandir no uma vez enorme império romano, sendo falado pelo povo nas ruas, comerciantes, e especialmente, pelas legiões de soldados.

O contexto de expansão do Império Romano ajuda a entender como tantas línguas atuais são derivadas do latim. Ter tropas em fronteiras, ou conquistando novos locais, representava o padrão para a sociedade romana. Assim, o latim vulgar entrava em contato com os povos vizinhos, por guerras, casamentos de soldados com mulheres de outros povos, e a consequente expansão do comércio e cultura romana nas regiões.

O primeiro termo que vimos, maritus, era presente nas duas formas do latim, chegando até nossos tempos. Existiu a forma no feminino, marita, esquecida pelas duas linhagens da língua, talvez pela estranheza de designar uma mulher com um prefixo masculino, o mas.

O latim clássico apresentava o termo uxor, que especificava a mulher casada. Este sumiu, junto àquele, nos deixando apenas com as denominações usadas no latim vulgar.

Acontece que o latim vulgar não tinha termo específico para a mulher casada. Havia apenas mulier – mulher. Esse termo já era usado no sentido amplo de hoje, tanto para a pessoa do gênero feminino, quanto para a mesma após o matrimônio.
Marido e Mulher
Ok, mas onde isso nos leva?

A conta é simples. Em um tempo onde o casamento era o passo natural com o chegar da puberdade, uma menina se tornava mulier ao mesmo tempo em que era arranjado seu casamento. Os significados acabaram se tornando indissociáveis.

Muitos homens também tinham casamentos arranjados ao chegar a puberdade, no entanto, era comum que homens só se casassem mais tarde – por seguirem carreira militar, política… enfim, as alternativas para estes eram mais vastas.

Consequência do papel da mulher à época, esse fator se transforma em causa, à medida que as gerações passam, e as “razões de ser” dos elementos sociais se perdem. Se o homem casado tem uma designação especial – marido -, isso também demonstra que, para o homem, muitas outras vidas são possíveis (sejam concomitantes, sejam alternativas). O homem pode ser marido, pai de família, solteirão, empresário, pedreiro, jogador de futebol. Pode ser cada uma dessas coisas, várias ao mesmo tempo, ou muitas outras.

Lembra da fala de Pete Campbell no início? “Estou desistindo da minha vida para ficar com você, não estou?” Ainda mais pejorativo, ele retrata a visão de que se tornar marido atrapalha as outras vias que a vida do homem poderia ter.

Já para a mulher, por muito tempo, só havia uma hipótese. Casar. Não fazia sentido ser empresária, pedreira, professora, jogadora de futebol; apenas casada. Por que um termo específico, se o casamento já definia a mulher? A mesma frase de Pete mostra isso. Afinal, é ele quem está desistindo das outras vidas por ela, nunca o contrário. Que outra vida ela teria? Nenhuma.

A maré começou a virar no século XX para a mulher. Está virando. Como toda maré que sobe, ela parece ter avançado rápido quando olhamos para trás, mas é extremamente lenta quando olhamos o presente. Ainda traz dejetos que não víamos na maré baixa, como o uso do binômio “marido e mulher”.

A segunda sugestão pode ser difícil, porém, acredito que vale a tentativa. Que tal pararmos de falar “marido e mulher”?


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.


Yann Rodrigues

Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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