Um negro com todos os traços da origem africana. Um negro chamado de moreno ou “marrom bombom” pelas pessoas próximas. Um branco daqueles “azedos”.

Todas essas figuras podem ser alvos de preconceito por cor. Onde entra o racismo nisso?

O que é racismo

Michaelis
sm (raça+ismo) 1 Teoria que afirma a superioridade de certas raças humanas sobre as demais. 2 Caracteres físicos, morais e intelectuais que distinguem determinada raça. 3 Ação ou qualidade de indivíduo racista. 4 Apego à raça.
Aurelio
1 Sistema que afirma a superioridade de um grupo racial sobre os outros, preconizando, particularmente, a separação destes dentro de um país (segregação racial) ou mesmo visando o extermínio de uma minoria (racismo antissemita dos nazistas).

As primeiras palavras nos dicionários dizem muito sobre o significado do termo. Racismo, como teoria ou sistema, trata mais de conjunto, pouco de indivíduo. Refletem-se em racismo os pensamentos de superioridade ariana de Hitler ou o Apartheid, exemplos evidentes na significação do Aurelio. Historicamente, vai além de uma visão endeusada de raça ariana ou de segregar negros de brancos. Os Impérios Romano, Persa, e basicamente todos os povos conquistadores da Antiguidade, com suas culturas de obtenção de escravos pela guerra, eram precursores do racismo que diferenciava populações vizinhas como etnias distintas e inimigas.

Essa teoria, ou melhor, todas as teorias de superioridade de raça, necessariamente tratam de grupo, estereótipo, denominador comum para classificação. Fala-se em racismo quando a situação em análise é consequente, derivada, de uma visão de superioridade étnica (seja lá o que quiseram dizer quando inventaram as etnias).

Nesse ponto, o racismo é similar ao machismo. Um representa o sistema que desnivela raças, outro retrata o sistema que desnivela gênero.

O que é colorismo

Cunhado por Alice Walker em 1982, o colorismo ou pigmentocracia revela o preconceito pela coloração da pele. Excelentes textos explicam a fundo o conceito.

O colorismo, naturalmente, é imerso em sistema, como seus “primos” acima, e inclusive é uma das informações de entrada de várias teorias racistas. Contudo, pode-se dizer que esse está mais centrado no indivíduo do que no sistema. Cada pessoa apresenta uma tonalidade diferente, e é difícil classificar uma cor com exatidão (ou você anda com uma paleta de cores no bolso?). Portanto, cada ser possibilita um novo contexto, um novo estudo de caso.

O racismo separou negros e brancos no Apartheid, separa-os no Brasil entre garis e médicos, judeus de anti-semitas ao longo da história. O colorismo separa o judeu negro do judeu branco, mesmo que colegas de classe na escola, com mesma renda familiar e equivalência futura nas profissões.

Vamos aos exemplos da realidade brasileira:

O negro “negão”

Não tem escapatória. Esse é alvo forte das duas formas de preconceito. Na medida em que existem fatores sociais, sistemáticos, que caracterizam o racismo, o negro sofre deste por se encaixar no grupo inferiorizado. Essa inferioridade direcionada à raça negra tem raízes históricas, culturais, demonstrações estatísticas. Se você duvida disso, sinto muito, não vou me debruçar explicando o óbvio.

O “negão” também sofre do colorismo fortemente, pois representa fielmente o estereótipo visual alvo do racismo. Sua cor se destaca, e como diz o ditado, “prego que se destaca demais leva martelada na cabeça”. Essa pessoa é constantemente martelada, não é esperada em círculos sociais mesmo nas exceções em que ascende no fator renda.

O negro “você não é neeeeegro, é moreninho”

Para tratar do “negro relativo”, pardo e afins, vale olhar o tratamento histórico dado pelo IBGE. O Censo 2010 conta com as seguintes classificações de “cor ou raça” para identificação da população: branco, preto, pardo, amarelo e indígena.

Branco, preto, pardo e amarelo denotam a utilização da cor como determinação de raça, acima de critérios puramente sanguíneos (raças originárias). O pardo, que já foi chamado de mestiço, apresenta o “meio do caminho” entre o branco e o preto, enquanto o amarelo surge após a forte imigração japonesa até 1930, para designar tal origem. Apenas indígena trata diretamente da raça de origem sem falar em tom de pele.

Esse tratamento de cor como critério de classificação racial já demonstra a força do colorismo na cultura brasileira – antes mesmo de enxergarmos preconceito, este já é critério decisivo de identificação. No caso do negro pouco visto como tal, o interessante é reparar que sua significação difere do preto pelo IBGE. O negro é tanto o preto quanto o pardo. Quando se analisa a população preta no Brasil, ela surge como minoria quantitativa. Já a população negra representa maioria simples.

Na prática, toda essa importância da classificação pela cor revela aspectos do tratamento que indivíduos recebem no dia-a-dia, como no caso que explodiu na internet há poucas semanas, de Caio, namorado da youtuber Jout Jout. Veja o vídeo em que o próprio fala dos acontecimentos:
http://www.youtube.com/watch?v=YU20Zn5nlGQ
Parte da confusão do Caio no vídeo (e confusão minha durante 99% da vida) vem dessa diferenciação, onde somos negros, ainda que, talvez, não nos consideremos pretos. Uma boa forma de entender a origem desse conjunto maior “negros” se apresenta no primeiro Censo, de 1872, nesse quadro do IBGE:

Quadro IBGE raças Censo

Fonte: Características Étnico-Raciais da População – Um Estudo das Categorias de Classificação de Cor ou Raça 2008 – IBGE

O único Censo realizado com população escrava (oficialmente escrava, digamos) faz uma distinção que agora é bastante didática. A população livre podia incluir todas as raças pensadas naquela época (cabocla era a classificação usada para indígena). A população escrava consistia em preta e parda.

O pardo, logo, compartilha origem, história, consequências. Acaba vítima do racismo, como é o preto ou “negão”. O que muda é a escala, e o colorismo funciona como a régua. Tanto o preto quanto o branco olham o pardo como alguém diferente de branco e preto. Para o preto, como o tio do Caio, ele é branco demais para ser negro. Para o branco, como os responsáveis por impropérios direcionados ao Caio, ele é negro, ponto.

Isso cria inúmeras dificuldades para quem tenta analisar a situação de um indivíduo. Enquanto o preto basicamente tem presença recusada em círculos sociais brancos, o “mais clarinho” é aceito, como um “pretinho ostentação“. Ele causa menos desconforto, pelo menor choque visual do tom de sua pele, e com isso tem maior mobilidade social. Para o “negão”, ele acaba até como inimigo por se misturar aos mais privilegiados.

Não é que o “moreno jambo” sofra mais que o preto, pelo contrário. A escala de cores é proporcional ao nível de preconceito. O que se analisa aqui é como isso aumenta complexidade, logo, dificulta a autoidentificação de cada pessoa, o entendimento de como se relacionar com outros, etc.

O branquelo e o racismo reverso

A grande confusão que gera a ideia de racismo reverso entre pessoas que são favorecidas no sistema racista está na não percepção da diferença entre preconceito e racismo. Preconceito é uma ideia genérica. Pode-se ter preconceito contra nerds, jogadoras de pôquer, mulheres alfabetizadas em aramaico, leitoras de Jogos Vorazes versus leitores de Divergente.

O racismo, como vimos, é um sistema. A cor da pessoa branca permite que ela sofra preconceito ao ingressar no espaço de uma comunidade negra. O sistema do “racismo reverso” continua não existindo. Não há conjuntura legal que desprivilegie o branco. A estrutura cultural favorece o branco. O espectro político representa o branco. Em torno da cor branca ocorre domínio nos campos políticos, científicos, filosóficos, artísticos, empregatícios, etc.

Falar em racismo reverso revela também o escapamento da noção de causa e consequência. O que determina preconceito contra o negro? As inúmeras questões conjunturais já deixam isso claro, mesmo que o negro não entre no espaço físico de uma comunidade branca.

O que determina preconceito contra o branco?

O fato de a pessoa branca não se sentir alvo de preconceito por cor/raça, exceto quando adentra um espaço composto majoritariamente por negros, evidencia o caráter de reação desse preconceito. Enquanto não explora outros espaços, a pessoa branca está à vontade, com o sistema sem atrapalhá-la, no mínimo. Já o negro não tem a opção de “não explorar outros espaços”, afinal o próprio espaço dele é constantemente tomado pelas características de fora – em forma de leis, de cultura. Quando chega uma pessoa branca, o instinto de sobrevivência grita “Chega! Vivo sob suas leis, seus filmes e séries, suas músicas, ainda tenho que receber você bem no pouco espaço que tenho?!?”

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Osklen: uso favela, mas não pertenço à favela

Você, indivíduo, pode ser a pessoa mais amável do mundo. É chato que sofra preconceito em nome de um grupo com características visuais comuns às suas, e com comportamentos que você não propaga. Mas não, não é racismo reverso que te chama de “branco azedo”. Ajuda mais que lute contra o sistema que provoca a opressão e a consequente (e necessária) reação, do que tentar deslegitimar a reação com tiradas de “racismo reverso”.

P.S. Esse texto faz uma análise pelas lentes do racismo. Refletir sobre o contexto de uma pessoa específica exige a inclusão de outros sistemas de preconceito, como alguns dos citados no texto, machismo, renda e outros.

P.S.2 Se formos abusar da técnica, um sistema hipotético que oprimisse o branco não seria racismo reverso. Pela raiz do termo, continuaria apenas racismo. Como aquela expressão foi criada pensando em direção, o texto procura mostrar sua inviabilidade na mesma lógica.

P.S.3 A imagem de capa é do discurso de Viola Davis, em sua vitória como Melhor Atriz de Drama no Emmy 2015, pela personagem que interpreta em How To Get Away With Murder. Vale parar mais 2 minutos para assistir:


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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