Já que estamos sendo sinceras, eu preciso confessar que, na verdade, nunca fui tua. Não, por favor, não te sintas enganada. Eu tentei. Eu tentei pertencer a ti com cada poro do meu corpo, com cada fibra da minha ser-humanidade. Eu decorei teu cheiro, teus gestos, tuas expressões, teu toque. Eu aprendi a conhecer cada canto do teu cérebro, antecipar as tuas vontades, ler teu pensamento. Eu te abraçava e tentava mergulhar em ti. Tentava fazer com que tu me tivesses por inteira dentro do teu corpo.

Eu tentei. E eu quase sumi em ti.

Mas eu não fui feita pra ser tua porque dentro de mim tem muita luta, muita força e muito desejo, e não cabe mais ninguém. Eu não nasci pra pertencer, pra me deixar ter. Eu nasci pra mudar, girar, transformar, transgredir. Eu nasci pra ser.

E, se tu me quiseres, vai ter que ser assim: a gente se soma aqui e se multiplica ali. Porque eu sou ser humano, eu não sou coisa. Se eu fosse um pedaço de terra, eu te deixava me comprar. E eu quis ser terra. Mas só fui ser humano. E na minha ser-humanidade, eu não nunca pude ser tua.

Teria sido mais fácil ser tua, é verdade. Tu terias me dado um nome, um gato e um propósito. Eu teria sido tua segunda pele, teu porto seguro, tua vontade de viver. Eu viveria a tua vida, lutaria as tuas batalhas e venceria as tuas guerras. Nós seríamos imbatíveis.

Mas era isso que nós viraríamos: nós. Bem assim, sem individualidade, sem carinho e sem vontade. Tu não saberias mais quais são as tuas batalhas e nossa guerra teria sido dentro de casa. Ou dentro da gente. Tu, por fim, serias eu e eu seria tu.

Nossas músicas se confundiriam, nossas roupas, nossos filmes, nossas comidas. Os vizinhos não saberiam mais quem é quem. E nossos amigos? Ah, esses já pararam de nos chamar pra sair faz tempo porque esse troca-troca não deixa mais ninguém entrar. Tu não viu a carta? Até tua família já desistiu da gente. Minha chefe esses dias perguntou por que você não aparece mais por lá e eu disse: “mas quem trabalha aqui sou eu”. Eu quem? Acho que nem minha chefe ia lembrar quem ela contratou.

No fim, eu já não seria mais eu. Eu seria nós. Por nós. Pra nós.

Entende, meu bem, por que eu jamais posso ser tua? É que eu já sou muito minha. Por mim. Pra mim.

E tu precisas começar a ser tua.

Nota: o vídeo pode conter spoiler para quem acompanha Grey’s Anatomy e ainda não assistiu o episódio 13 da sexta temporada.


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Lésbica, femininja, vegetariana, esquerdista, abortista e obviamente banida dos almoços da família. Acredita fielmente que a revolução começa no bar. Aliás, desce mais uma gelada?


Jessica Leite Moreira

Lésbica, femininja, vegetariana, esquerdista, abortista e obviamente banida dos almoços da família. Acredita fielmente que a revolução começa no bar. Aliás, desce mais uma gelada?

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