Em qualquer canto da internet você lerá que a desconstrução de privilégios é um processo contínuo. Seis meses depois de começar a desconstruir o machismo dentro de casa, senti que chegou a hora de abordar essa continuidade. Em que pé estamos?
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O grande dilema abordado no artigo anterior é a discrepância de responsabilidade sentida sobre os cuidados com a casa. Como a mulher sente a obrigação como natural, como o homem naturalmente não sente obrigação.
Ainda que dando alguns exemplos de momentos de quebra, o texto mais revela a percepção da discrepância e o desejo de nivelar esses sentimentos, enquanto trata pouco do como fazê-lo. É esse processo, de apenas dois passos, que vivemos nos últimos meses e conto agora.
Passo 1 – Igualar o esforço físico
Falar em igualdade nas responsabilidades é vazio se houver diferença no esforço feito.
Talvez você pense que responsabilidades podem ser igualadas mesmo que cada parte cumpra tarefas diferentes. Há lógica nisso, mas não no primeiro dia. Se você deseja dividir uma moradia com a companheira ou o companheiro (não precisa ser casal) do gênero oposto, e não deseja sofrer influência das ideias do machismo que estamos tentando desgrudar da pele, comece igualando o esforço.
Por esse motivo eu e minha companheira não começamos a jornada dividindo tarefas fixas, organizações como “você cuida sempre da cozinha, eu sempre do banheiro”. Nós não conhecíamos o esforço de cada um. Quanto cada tarefa nos desgastava, quantas tarefas havia por concluir. O início não é hora de medir eficiência.
Isso não quer dizer que todas as pessoas moradoras vão dividir todas as tarefas em igual quantidade de tempo, afinal, a vida não é tão Fordista assim. Quer dizer que ela e eu não deixamos de meter a mão em cada atividade. Eu lavei louça, ela parafusou; eu cozinhei, ela lavou roupa; eu parafusei, ela fez faxina na sala; ela cozinhou, eu fiz faxina no banheiro; ela varreu, eu varri; nós fizemos compras.
O que esse exercício – de nos permitirmos realizar todas as atividades – revela é o esforço que nós despendemos para cada uma. Contudo, não é apenas eu conhecendo meu cansaço e ela conhecendo sua fadiga. Também é a lente para eu enxergá-la exausta e ela me enxergar quebrado, para compartilharmos a sensação da doação necessária a tornar aquele ambiente dos dois, para os dois (e para as pessoas convidadas, né).
Não se engane; via de regra, você verá que ela (ou você mesma, leitora) estará metendo a mão em muito mais coisas. Não é legal.
Então, começa o nivelamento de atividades, até que, conhecedores de nosso suor, podemos calcular e dizer: estamos suando igual.
Passo 2 – igualar o esforço mental
Lembra quando comento, no texto anterior, que o gatilho de obrigação inerente a ela é estranho a mim? Igualado o esforço físico, agora é a hora do homem absorver esse gatilho. Afinal, esforços físicos à parte, se só uma pessoa carrega o peso das lembranças, decisões e indecisões, é ela quem carrega o peso da responsabilidade. Quem só atua no esforço físico é mero ajudante.
Mexer nos gatilhos é mais difícil que comparar atividades físicas, naturalmente. Não tem fórmula pronta, cada conjunto de coabitantes deve achar seu caminho.
Eu e Pati encontramos (ela não gosta quando chamo de Patricia…) um dilema:
A cada vez que ela lembrava de uma atividade, eu perdia a oportunidade de me preocupar com o assunto e lembrar, só sobrando o papel de executar. Cantinho do ajudante para mim.
A cada vez que eu esquecia ou nem pensava em uma necessidade, o peso dessa lembrança automaticamente estava com ela. Cantinho da responsabilidade para ela.
Então eu precisava lembrar antes que ela. O que era distante para mim era automático para ela. Você deve imaginar quão pacífico é esse dilema.
Contudo, estabelecida a consciência sobre o dilema, o nível de atrito é reduzido e começa o exercício. Eu tenho que lembrar, até que se torne hábito lembrar. Ela tem que deixar de falar o que lembra, até que se torne hábito eu lembrar.

Apaguei a senha do wifi no quadro para os vizinhos leitores não roubarem minha net.
Ter um local de anotações, como o quadro da foto ou mesmo uma parede que permita escrever com giz, já é uma grande ajuda para manter a organização da casa. Uma dica: que tal deixar a função de anotar os itens, por uma semana ou mesmo um mês, apenas para o homem? Escrever as necessidades ajuda na criação do hábito – até do hábito de lembrar.
Muitas tarefas tendem a chegar no limite da espera nesse caminho, e a casa pode alcançar o estado de pura balbúrdia. O que é ótimo! Porque a casa meio bagunçada até passa desapercebida. Já a pura balbúrdia, eu não conseguia ignorar.
À medida em que passo a me incomodar – por faltarem itens em casa, por algo estar sujo, etc – começo a tomar iniciativa. Falar sobre o que é necessário fazer, simplesmente resolver antes que se torne gritante. Assim, a barra começa a aliviar do outro lado.
Para a mulher, a pessoa ensinada a carregar todas as responsabilidades, surge o benefício do desapego. A sensação ininterrupta de obrigações gerada pela falta de compartilhamento destas estressa, gera desgaste. Muito desgaste. É importante o aprendizado de que tudo NÃO precisa estar pronto/arrumado/comprado sempre, e a divisão da responsabilidade auxilia que um apoie o outro a enxergar isso – ao invés de pressionar o outro a fazer tarefas. Boa parte das conversas do primeiro mês eram sobre o que precisava ser feito (e iniciadas por ela). Boa parte das conversas de hoje são estimulando que o outro se poupe, se desapegue – estamos vendo os dois dedicados, mas essa dedicação não deve substituir outras coisas, como nosso tempo juntos. Não é uma preocupação mais legal?
Esse movimento todo não significa que nunca mais haverá atrito sobre a casa. Se duas (ou mais pessoas) se envolvem nas decisões, com certeza algumas delas terão discordâncias antes do consenso. Ao menos não haverá discussões do tipo:
– Tô me matando aqui, você nunca faz nada!
– Cala a boca, já trago o dinheiro pra casa!
Não aqui. Diz o título do novo livro da youtuber Jout Jout que “Tá todo mundo mal”. Pelo menos, aqui em casa, tá todo mundo junto.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.