Nota do editor: esse é o quarto texto de uma série sobre nossa capacidade de formar opiniões. Em um tempo de visões acirradas, precisamos recuar e entender o que nos faz tão radicais. Opiniões precisam se manter racionais, sob o risco de se tornarem teorias conspiratórias.

Você deve se lembrar de algum similar dessa frase:

Se as pessoas soubessem o que aconteceu no Maracanã, ficariam enojadas.

Junte surpresas em grandes eventos como a Copa do Mundo ou o caos político brasileiro com a criatividade e “perenicidade” de compartilhamentos na internet e temos uma fórmula de montagem de teorias conspiratórias, uma cadeia de produção. Para cada novo caso, basta preencher as lacunas.

A receita, iniciada por uma teoria veiculada após a derrota brasileira na Copa de 1998, revela a facilidade que temos em acreditar em grandes histórias. Mesmo quando improváveis.

Baseadas em nossas predileções por histórias, as teorias conspiratórias ocupam espaço especial em nossas mentes, conversas de bar e de grupos em redes sociais. O destaque não ocorre por acaso: é impossível provar que uma conspiração não existe. Essa ocupação não vem, portanto, sem a promoção de um desserviço.

Cada compartilhamento desavisado de histórias não comprovadas (e não comprováveis) é capaz de destruir relações virtuais, reputações, carreiras e até vidas, como o caso da mulher morta por linchamento, após boatos em redes sociais de bruxaria.

Os pilares das teorias conspiratórias

A primeira sustentação da teoria conspiratória é a crença em valores não factuais, geralmente com potencial de proximidade a fanatismos. Argumentos de afinidade religiosa que divergem de provas científicas, argumentos de afinidade política que ignoram o escopo da lei e argumentos de afinidade comercial que ignoram espaços ambientais ou sociais são grandes exemplos.

Por essas crenças se sustentarem em motivações, ao invés de fatos, elas se mantêm de pé a cada refutação ou demonstração de evidências em contrário. Enquanto a motivação não muda, a teoria permanece firme.

O segundo pilar é a forma cíclica da lógica das teorias conspiratórias. Via de regra, são autocontidas. Início, meio e fim convivem dentro da teoria, sem grandes interações com conhecimentos exteriores.

A forma cíclica da teoria conspiratória

Um exemplo recente, com seus 15 minutos de fama na internet, é a suposta política de pagamentos da Disney a críticos de cinema para enaltecer filmes da Marvel e limar concorrentes. Teoria que alimenta até mesmo petições para o fechamento de sites de críticas. Essa história ganhou força após as diferentes avaliações de setores especializados aos filmes Capitão América: Guerra Civil (Marvel) e Batman vs Superman (DC e Warner), e voltou com força total após as primeiras críticas ao filme Esquadrão Suicida. Vejamos um comparativo para os dois primeiros filmes, em 24/08:

Site
Guerra Civil
Batman vs Superman
Imdb (média de público)
8,2
6,9
Metacritic (média de críticos)
75
44
Rottentomatoes (média de críticos)
7,6
4,9
Audiência Rottentomatoes (média de público)
4,3/5
3,6/5
IGN (crítica)
7,8
6,8

As médias revelam maior aceitação geral de público e crítica pelo filme da Marvel – mesmo que muitas pessoas ainda prefiram o prelúdio à Liga da Justiça, o que não é problema algum. Porém, aos olhos de alguns fãs pela internet, não há nada de aceitação geral, apenas enviesamento da crítica provocado pela Disney (dona da Marvel).

Usando um exemplo histórico de conspirações, a suposta morte de Paul McCartney, podemos averiguar esse funcionamento:

Historiadores e o público em geral acreditam que Paul McCartney sempre esteve vivo. Eu e você também, espero. Vamos conhecer essa hipótese como Tese A.

Os teóricos da conspiração acreditam que Paul McCartney está morto e foi substituído por um sósia. Vamos conhecer essa hipótese como Tese B. A hipótese pode se sustentar em várias motivações: os Beatles quiseram manter a carreira da talvez maior banda da história, ou pressões da gravadora que pretendia manter os lucros, ou uma loucura de John Lennon, etc.

A falta de qualquer registro de óbito do integrante da banda é um indício que reforça a Tese A, certo? Porém, como a Tese B se baseia no interesse de alguém de esconder informações sobre o óbito, a falta desse indício também reforça a Tese B. É nessa lógica que a teoria conspiratória se torna um tanto inescrupulosa.

O indício contrário – a descoberta de um registro de óbito de Paul McCartney – reforça a Tese B, enquanto nega a Tese A. É como se acreditar na morte de Paul McCartney fosse uma situação de ganha-ganha. Um fato que comprova a teoria a tira do âmbito de conspiração, tornando-a verdade enquanto um fato que nega a teoria apenas reforça a acusação de conspiração.

Na situação citada sobre as críticas aos filmes originários de HQ’s, cada crítico que dá nota maior a um filme da Marvel frente a um filme similar da DC reforça, para os teóricos da conspiração, a tese de que a Disney comprou as avaliações. Independente das possíveis justificativas para as mesmas. Já uma nota maior a um filme da DC frente a seu “parente” da Marvel é apenas reconhecimento.

A proliferação de teorias conspiratórias

Quem trabalha próximo ao mundo da Informática (aquele povo da TI da empresa que te passa todas as dicas de Pokémon Go) já deve ter escutado a analogia da automatização de processos com um cano de esgoto – automatização de processos, no resumo do resumo, ocorre quando uma ou mais tarefas deixam de serem executadas manualmente, por pessoa(s), para serem desempenhadas por computadores, máquinas, etc.

A analogia do cano de esgoto existe pois a principal mudança promovida pela automatização é a velocidade de execução – o grande “tchan” de cada fase da revolução industrial, saltos e saltos de velocidade. Se um processo ou série de tarefas é tem, além de seus resultados, um cano de esgoto – ou seja, gera lixo, ineficiências – aumentar a velocidade do processo é como aumentar a vazão do cano de esgoto, que permite que mais lixo seja gerado em um mesmo período de tempo. A automatização que descumpre seu papel e atrapalha mais do que ajuda.

É por esse motivo que consultorias ganham a vida estudando e remodelando processos de empresas, tentando eliminar o esgoto antes que elas passem pela próxima revolução tecnológica (ou “como posso usar esse Google Agenda aqui no escritório?”).

A Internet é, dentre várias características, uma mega automatização do processo humano de comunicação. Com melhorias de velocidade frequentes ao longo dos recém-completados 25 anos da web. O que é ótimo, tudo bem, obrigado, partiu caçar Pokémon. Mas também é péssimo – não há consultoria no mundo capaz de remodelar o processo de comunicação humana, de modo a acabar com os tais canos de esgoto.

Um desses canos é o da teoria conspiratória. Era um mísero canudo de Toddynho. Teorias nasciam e sobreviviam, sim, algumas até prosperavam, mas à muito custo. Uma ou outra reportagem, um ou outro filme, um ou outro livro, uma ou outra política, sempre mídias de custo mais alto do que o desejado, para tratar de assuntos menos úteis do que o desejado, em um contexto que garantia um lugar isolado e de díficil acesso a essas ilhas de imaginação humana.

O canudo virou um túnel digno do Tatuzão – a escavadeira usada na obra da Linha 4 do Metrô do Rio – capacitando as teorias a serem repassadas através do Facebook ou do Whatsapp com uma facilidade estarrecedora. Não basta recebermos uma torrente de informações. Também precisamos aprender a separá-las por veracidade (entre outros possíveis filtros ideais).

Ah, mas filtrar a dita morte de Paul McCartney é besteira. Se aí está o foco de teorias conspiratórias, não precisamos nos preocupar, não é mesmo? Não está.

A gravidade de teorias conspiratórias

Enquanto presas em alcance pela vazão do “canudo”, as teorias tinham força em seus ambientes fechados. Não há exemplo mais fácil que o de instituições religiosas. Veja bem, fé não é sinônimo de teoria conspiratória. Os ambientes de líderes espirituais duvidosos, contudo, são férteis para discursos do tipo “o evolucionismo é promovido pelo demônio, através de cientistas que querem convencer a todos do ateísmo”. Todo estudo científico que surge fortalecendo (ou mesmo recaracterizando) evolucionismo, fortalece a hipótese conspiratória. A lógica cíclica está aqui. Nem precisamos da teórica dicotomia entre religião e ciência. Na medida em que toda religião se discursa como Centro do Mundo (a espiritualidade correta, a fé infalível), ela coloca todas as outras religiões no papel de conspirações. Baita teoria conspiratória.

Alguma tinha que tá certa, correto?

Essa animosidade entre visões de mundo diferentes contribui para o acirramento de opiniões que vemos hoje. O alcance crescente de teorias conspiratórias, somado ao discurso de Centro do Mundo, favorece, em um modelo eleitoral como o nosso, a eleição dos tais líderes espirituais. “Ganhamos” Eduardo Cunha ou Marco Feliciano. A consequência? Suas visões irracionais de mundo trazem políticas públicas e projetos de lei que atrapalham diretamente a vida de milhões de mulheres pelo Brasil.

Ou o Ministro da Saúde – alguém com acesso a orçamento federal, projetos e formações de leis – afirma que homens procuram menos serviços de saúde porque trabalham mais. Uma (i)lógica que se sustenta na visão do feminismo como uma conspiração, capaz de ignorar os inúmeros estudos que tratam da dupla jornada da mulher.

Ou o presidente interino tende a medidas contrárias ao programa de governo que o elegeu como vice, com apoio popular de compartilhamentos virais de internet (como ocorre com as “denúncias” ao “roubo” que é o Bolsa Família, que “desvia” dinheiro de sabe-se lá quem para “vagabundos”) quando já é comprovado o benefício de alguns destes programas e o impacto negativo de atividades políticas sequer discutidas.

O meio político, em países como os EUA e a Austrália, é famoso também por propagar declarações contrárias à existência do aquecimento global e de outras questões ambientais, acusando uma “esquerda” ou a ONU de conspirações “verdes”, ainda que haja consenso mundial da comunidade científica e da opinião pública no assunto.

Mesmo em tempos onde essas teorias demoravam anos para se propagar, ao invés de horas e dias, elas cobravam seu preço. Todo o projeto ideológico nazista se baseou em uma superioridade hipotética (irracional) de raça e em uma teoria de conspiração de judeus. Essa tal conspiração era a grande vilã combatida pelo nazismo, sem a qual este perderia força de expressão.

Como lidar com teorias conspiratórias

Com efeitos tão crassos, deve haver uma forma de lidarmos com esse tipo de ideia sem cair em armadilhas.

A lógica cíclica que observamos nos exemplos mostra como a teoria conspiratória é uma história não falseável. Ou seja, é impossível prová-la falsa, exatamente como acontece com a fé. Dentro de seu contexto, sua fé pode não interferir na de outrem e tudo bem. Todavia, na medida em que cada cenário sempre é usado para fortalecimento de uma mesma Tese, o caráter não racional da argumentação fica evidente.

O oposto de uma ideia falseável, em essência, é uma ideia científica. Ainda que possam existir teorias conspiratórias no meio científico, a essência do que significa ciência circunda no entorno de que uma ideia deve ser falseável. A gravidade, por exemplo, é uma ideia científica: feita a hipótese de sua existência, sabemos montar experimentos para sua verificação, prever o resultado no caso da hipótese estar correta e prever resultados no caso da hipótese estar incorreta. O experimento e o resultado alimentam a construção das ideias, ao invés de serem apropriados ou ignorados para confirmação das mesmas.

Então, sempre que nos deparamos com ideias não falseáveis, não estamos lidando com a razão; e o teórico da conspiração sempre se sente com a razão. O caminho se torna expor a falta de razão, com o seguinte passo a passo:

Passo 1: já exemplificamos uma divisão de premissas. Caso suspeite que está lidando com uma teoria conspiratória, defina junto a seu interlocutor as hipóteses A e B.

Passo 2: hora de concordar que ambas as hipóteses são falseáveis. É o mesmo que prever o resultado que mostre o erro das hipóteses. Para quem acredita no Paul McCartney vivo: “Minha hipótese é falsa se houver um registro da morte de Paul McCartney”. É necessário fazer o mesmo para a hipótese de que ele está morto. Se uma frase do tipo não é possível (minha hipótese é falsa se…), não estamos lidando com uma ideia científica (ou a discussão é pessoal, caso da fé, ou infrutífera, caso da crença em uma teoria conspiratória).

Passo 3: agora, levantar as evidências que resultam na frase estipulada no passo 2, para a Tese A. Um obituário pode servir como registro da morte de Paul McCartney, falseando a tese de que ele está vivo. Um estudo indicando nova percepção de movimentos de corpos celestes pode questionar o entendimento atual sobre aquecimento global, falseando o entendimento de intervenção humana na temperatura terrestre.

Passo 4: realizar o mesmo trabalho para a Tese B. Levantar que evidência falsearia a tese de que Paul está morto, para o teórico da conspiração. Como provar que os cientistas não estão conspirando para divulgar o aquecimento global? Ou que alienígenas e fantasmas não existem?

Se a pergunta do passo 4 não tem resposta, a hipótese levantada extrapola a razão. Pode ser item de debate de um contexto declarado de fé. Ou, simplesmente, não vale sua atenção. Se é usada por um político, precisa ser quebrada para que leis não sejam propostas em bases tão rasas – seguir esses passos pode ser uma excelente ferramenta para entrevistadores, por exemplo.

Ah, mas e as teorias conspiratórias que se comprovaram reais ao longo da história (como casos de agências de espionagem)? Existem profissionais para lidar com esses casos. São jornalistas investigativos, detetives, promotores. Mas repare, através do filme Spotlight, por exemplo, como as microetapas do processo de investigação são sempre falseáveis, baseadas nas evidências. Mesmo quem investiga informações escondidas não deseja cair nas teorias conspiratórias.

Veja os outros textos da série aqui:

E a sua opinião? #1 – A falácia da imparcialidade

E a sua opinião? #2 – A Espiral do Silêncio

E a sua opinião? #3 – Você enxerga o mundo pela Janela de Overton

E a sua opinião? #5 – Uma defesa à hipocrisia


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.


Yann Rodrigues

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