Na noite de domingo, 26/02/2017, varando a madrugada, assistimos a talvez mais marcante cerimônia do Oscar da história.
Por motivos óbvios.
Mas vamos deixar as polêmicas um pouco de lado e tratar das sutilezas da unanimidade da noite: o discurso de Viola Davis, ao receber o prêmio de melhor atriz coadjuvante em Fences.
Você pode assistir no vídeo abaixo, ou ler a tradução que aparece em seguida:
Obrigada Academia. Sabem, há um lugar onde todas as pessoas com os maiores potenciais são reunidas. Um lugar, e este é o cemitério. As pessoas me perguntam o tempo todo, “que tipo de histórias você quer contar, Viola?” E eu digo: exumem aqueles corpos. Exumem aquelas histórias. As histórias das pessoas que sonharam alto e nunca viram esses sonhos fruírem. Pessoas que se apaixonaram e perderam. Eu me tornei uma artista – e obrigada a Deus pois me tornei – porque nós somos a única profissão que celebra o que significa viver uma vida.
Então isto é para August Wilson, que exumou e exaltou as pessoas ordinárias. Para Bron Pictures, Paramount, Macro, Todd Black, Molly Allen por serem líderes de torcida para um filme sobre pessoas. E palavras. E a vida, e perdão e graça. E para Michael T. Williamson, Stephen McKinley Henderson, por serem as [pessoas] artistas mais maravilhosas com quem já trabalhei.
E ó capitão, meu capitão, Denzel Washington.
Obrigada por colocar duas entidades no banco de motorista: August e Deus. E eles o serviram bem. E para Dan e Mary Alice Davis, que foram e são o centro do meu universo, as pessoas que me ensinaram o bem ou mal, como falhar, como amar, como segurar um prêmio, como perder. Meus pais – sou muito agradecida que Deus escolheu vocês para me trazer a este mundo. Para minhas irmãs, minha irmã Dolores, éramos ricas mulheres brancas nas brincadeiras de festas de chá. Obrigada pela imaginação. E a meu marido e minha filha. Meu coração, você e Genesis. Vocês me ensinam todos os dias como viver, como amar, sou muito feliz por vocês serem a fundação da minha vida. Obrigada à Academia. Obrigada.
Se você já assistiu aos discursos de Viola nas premiações, perceberá duas temáticas se alternando. A profissão de artista e seu significado, e a posição da negritude, especificamente da mulher negra, na indústria do cinema.
No Emmy que ganhara em 2015, um discurso histórico já destacado no AdR, destacara o segundo tema. Fora uma fala didática, embutida em uma experiência pessoal. A linha que separa pessoas, que impede mulheres negras (e outras pessoas) de alcançarem as mesmas oportunidades com a mesma freqüência.
No SAG 2015, a personagem Annalise é a demonstração de como características raramente representadas por atrizes negras ou consideradas “velhas” caíram no colo de Viola. A temática foi reforçada no SAG 2016.
No SAG 2017, a pessoa negra é o centro da história de August Wilson (o filme Fences, ou “Um Limite entre Nós”). A pessoa padrão, mediana, ordinária, “desimportante”, tem uma história, e ela merece ser contada.
No Globo de Ouro de 2017, a aceitação do prêmio veio acompanhada de uma fala sobre a arte, sobre como Fences, uma peça, representa a arte.
Nenhum discurso de Viola, no entanto, representa tão bem essa temática como a apresentação que ela faz sobre Meryl Streep. No mesmo Globo de Ouro, coube a ela entregar a Meryl o prêmio Cecil pelo conjunto da obra, causando naquele palco uma sequência de retóricas das mais marcantes dos últimos anos.
Você me faz ter orgulho de ser artista. Você me faz sentir que o que eu tenho em mim – meu corpo, meu rosto, minha idade – é suficiente.
…se você me perguntar, como artista, o que vim fazer nesse mundo, eu, como artista, diria: eu vim viver em voz alta.
No Oscar, ela conseguiu unir os dois temas na mais bela fala da noite, dentre tantos posicionamentos importantes. Mesmo sem escrever antes, como disse em entrevista. Disse que veio do coração.
Que coração.
Existem dois pontos que desejo destacar nesse discurso: o cemitério, no início, e a brincadeira com a irmã, no final.
Viola mostrou viver em voz alta, como faz nos seus discursos. Uma mulher que descobre a potência de seu ser através de suas personagens, que percebe quão poderoso é o lugar que alcançou e os prêmios que ganha para destacar ali as pessoas comuns, que agora olham para ela na tela. Essa visão perpassa todas as falas e culmina no cemitério.
O lugar onde todos são iguais, e que guarda todas as histórias; uma frase que poderia ser apenas a mensagem de um biscoito da sorte. Mas que, em sua voz e suas lágrimas, se torna o lugar onde a mulher negra de mais de 50 anos é igual ao homem negro que mal teve educação, mas teve família e história para contar. E ambos são iguais aos homens brancos e as mulheres brancas que sonham grande de La La Land. Iguais às crianças que se descobrem gays como Chiron, às cientistas da Nasa que revolucionam a corrida espacial nos bastidores, às pessoas da pequena Manchester que se debatem com o luto.
A criança de Viola brincava de menina rica e branca com a irmã, pois esse era o ideal. O sonho. Que posição melhor para fantasiar do que a posição do privilégio? Uma vida que começa nessa representação da completa distância entre pessoas diferentes, mas está fadada a terminar igual – no cemitério. Viola mostra nesse discurso, e em sua vida, que a história da mulher negra é viver o dia-a-dia como o meio do caminho. Que a história de cada pessoa merece ser contada, pois é a história de como caminhos diferentes chegaram ao mesmo fim, no mesmo nível. De como todas as pessoas diferentes chegaram ao destino final, como iguais.
Viola, sonho é ser igual a você.
Inscreva-se para receber os novos textos do Além do Roteiro
Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.