Nota: essa é uma série de análises aprofundadas em aspectos técnicos sobre a quarta temporada de Black Mirror, feita para a Revista Subjetiva à convite do editor Lucas Machado e republicada aqui para mantermos nossos estudos no grupo do Facebook do Além do Roteiro. O texto contém spoilers sobre o terceiro episódio da quarta temporada de Black Mirror.

Na análise do primeiro episódio de Black Mirror, USS Callister, vimos a construção de um vilão através das imagens. Já em Arkangel olhamos para o aspecto cíclico das tragédias.

Crocodile é uma soma dos dois fatores. Nele, vemos a tragédia de Mia Nolan, uma arquiteta com um segredo no passado, que age para cobrir toda e qualquer pista.

O episódio poderia se chamar Breaking Bad e não estranharíamos. A “descida ao inferno”, o decaimento moral da protagonista, é vertiginoso. É um exemplo claro de como um evento na biografia das personagens pode dar o combustível necessário para uma história.

Teaser – criando o fantasma

O teaser, o primeiro bloco na estrutura de um episódio de série, cumpre esse propósito. Mia e seu parceiro, Rob, saem de uma festa bêbados. O homem, dirigindo, se distrai e atropela um ciclista na estrada inóspita na Islândia. Ali, vemos que Mia externa uma moral positiva, em seu desejo de chamar a polícia. Ela acaba convencida pelo parceiro, talvez por medo de uma reação violenta dele, ou talvez porque no fundo preferia essa opção.

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Mia com um casaco verde de camuflagem militar. É a primeira alusão do episódio a um crocodilo.

O segredo que atormentará seu futuro se torna um elemento chamado de “fantasma” por K. M. Weiland no livro “Creating Character Arcs” (Criando Arcos de Personagens). Será a eterna pedra no sapato de Mia, seu esqueleto no fundo do armário, a sombra que a acompanhará.

O Primeiro Ato – a Apresentação

Uma vez que tivemos o teaser, o episódio precisa apresentar os elementos necessários para entendermos a história. Também é necessário que o Ato Um contenha o incidente incitante, o evento que dá início à trama.

O ato é iniciado por uma rápida introdução de Shazia como agente de uma seguradora.

Black Mirror 4.03 cena 2

Vou te dar três segundos para você falar aí o que tem nessa imagem de relevante. Sim. Ele mesmo. ROXOOOOOOOO. Se você está lendo a série de análises sobre a temporada, sabe que essa é a cor que indica que alguém deve morrer. Some a isso as bordas escuras na lateral da imagem, compostas pela parede e pela sombra das costas da mulher, e Shazia está encurralada, como um alvo. Bum pode explodir a cabeça e seguir.

O foco, no entanto, está em Mia. Anos depois, ela é uma arquiteta bem sucedida, preocupada com questões do meio ambiente como o aquecimento global. Isso é importante na construção da personagem, não só por casar com o ambiente da Islândia, lindamente explorado na fotografia.

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Me mudando para a Islândia em 3, 2, 1…

Sua preocupação com o meio ambiente funciona como um contraste em sua moral. Ela queria ter reportado o acidente para a polícia, mas não o fez. Estaria trabalhando em prol do ambiente como uma compensação? O que guia sua bússola moral?

A coisa fica mais interessante quando Rob, agora seu ex, chega ao seu quarto de hotel. Ele alcançou a sobriedade e quer conversar sobre o acidente. Sua consciência deu voltas, pois o corpo do homem morto nunca fora encontrado. A viúva vive até o presente sem pistas, esperando por ele.

O risco, no entanto, é alto demais. Mia se casou com outro homem. Tem um filho de 9 anos. Alcançou o sucesso na profissão. Pôr tudo a perder por um erro do passado? Uma decisão que foi de Rob? Ele se arrepende e ela deve pagar?

Apesar do figurino do teaser já aproximar Mia do crocodilo, o animal que dá nome ao episódio, é nesta cena que ela se torna o predador. Tudo feito através da imagem, da composição e movimentação de atriz e ator. A fotografia aqui é sublime. Aprecie.

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Começa com Mia atravessando o corredor com a parede vermelha para abrir a porta. O vermelho aqui nos avisa do perigo se aproximando.

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Ela abre a porta, vemos que é Rob, mas a parede vermelha está atrás dela! Ela é o perigo na cena, não a vítima.

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Com a parede vermelha entre eles, fica claro o desconforto pelo evento violento que os conecta no passado. Porém, Rob está na luz, Mia no espaço mais escuro do quadro. Mostrando que Rob está mais elevado moralmente, nesse momento.

Ah, por favor, repare na luz azul à esquerda. O que será que significa?

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Quando Mia faz menção de se aproximar, Rob vai para o outro lado do quarto. Ela fica enquadrada pela parede vermelha, reforçando que ela é o perigo ali. Enquanto Rob caminha para o canto mais iluminado do quarto. E a luz azul continua, agora banhando Rob pela esquerda e refletindo na parede à frente de Mia.

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Mia então caminha para o outro lado do aposento. A gaveta de bebida é tão camuflada que pode simbolizar o esqueleto no fundo do armário. A bebida é o que causou o acidente, afinal. Rob está longe da bebida, longe de Mia.

Olhe bem para essa imagem. Geralmente, elementos maiores na composição são os que detêm o poder. Mas é isso que acontece aqui? Mia está mais longe, menor, mas… não está mais fraca. Veja a roupa, a cor da parede, a própria estampa. Ela está camuflada no mato, como um predador, um crocodilo. A camuflagem proporcionada pela parede aumenta o tamanho de Mia. O poder está com ela.

Black Mirror 4.03 cena 12

Essa é a minha imagem favorita de todo o episódio. O crocodilo, digo, Mia camuflada em seu habitat natural, observando a presa. A sombra, seu fantasma do passado, o conflito interno, a dualidade. Perceba que a sombra é maior do que Mia, revelando a força desse fantasma em sua psique. Tudo que ainda precisávamos saber sobre Mia é completado nessa imagem.

Escrevi na legenda da foto que ela está camuflada no habitat natural. Mas que elemento faz parte do habitat e está faltando na parede? A água. Alguém falou em luz azul?

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“Vida Selvagem”, Animal Planet, 4×03 — a presa bebe água na beira do lago.

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O crocodilo chega sorrateiro à posição de ataque.

Toda a construção do crocodilo Mia acontece visualmente. Até o homicídio, com Mia agarrando o corpo de Rob como a mandíbula de um crocodilo e eles girando, como faz o animal com suas presas abocanhadas. Até que eles caem e ele bate a cabeça, dando margem para ela asfixiá-lo. Ponto para o episódio.

Uma vez que ela mata Rob, vemos seu close com lágrimas no rosto, uma alusão às lágrimas de crocodilo. O animal produz lágrimas quando mata. A cena toda é a recompensa para a pista no título do episódio.

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Agora temos o incidente incitante estabelecido. A partir desse evento, a vida de Mia está em desequilíbrio e a história se desenrola.

Ato Dois – Gato e Rato

Aqui temos o grande problema do episódio. A protagonista tem uma situação bizarra a resolver. Ela precisa esconder o corpo e cobrir todas as pegadas para restabelecer o equilíbrio da sua vida. A motivação é forte, o risco é real.

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Embebida na escuridão por seu último ato.

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A visão estreita mostrando a situação de Mia. Ela precisa calcular cada passo para não errar e se entregar. Até o cinza da roupa gera uma camuflagem com o ambiente.

O mesmo não pode ser dito de Shazia. O evento que a move é o acidente envolvendo um carro de pizza autônomo e um pedestre. Por acaso, o acidente ocorreu em frente ao hotel de Mia. Ela o viu, após cometer o homicídio.

Falha número 1 (prepare o caderninho). Já na sua introdução, Shazia fala que usa a tecnologia de memória em seu trabalho. Portanto, a conexão com Mia se torna imediata. Sabemos o que provocará o encontro das duas mesmo antes de saber que ela investigará o acidente.

Falha número 2. O acidente do carro de pizza é, no máximo, curioso. Ele não gera conflitos em Mia, nem há um senso de urgência real na busca de Shazia (algo coberto depois pelo bônus que ela ganharia fazendo o trabalho em menor prazo, uma conveniência).

Eventos com peso, como assassinatos, geram maior senso de urgência no público e desafiam os limites morais de cada personagem com intensidade. Eles apresentam escolhas difíceis, dilemas. O acidente do carro de pizza não faz nada disso. A profissão de Shazia não gera urgência suficiente.

Para um gato e rato realmente existir, o gato tem que saber que está caçando e o rato tem que saber que está fugindo. Mesmo que um não saiba quem é o outro. Nem Mia nem Shazia estão nesse jogo, pois suas tramas não justificam isso. Somente o público sabe o que está ocorrendo e precisa aguardar pacientemente, sem nada que o distraia no caminho. Nem mesmo uma subtrama aparece para “matar esse tempo”.

Falha número 3. Devido à falta de peso do acidente e a conexão apenas sutil com a outra trama, o episódio precisa caminhar com cuidado pela investigação de Shazia, para não criar uma noção de coincidência gritante: que a pessoa certa tenha olhado para Mia na hora certa.

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Hummm, cena sem muita emoção. Melhor começar meu jogo favorito, procurar roxos. Achei (canto superior direito, a luz).

Portanto, passamos vinte minutos na investigação, alternada por momentos da protagonista. Basicamente, a investigação é lenta, sem grandes revelações ou frutos. São vinte minutos em que esperamos pelo que sabemos que vai acontecer, sem nada que os justifique no caminho.

Falha número 4. Faltam conflitos de outros tipos à protagonista. Ela precisa esconder o corpo de Rob e eventuais provas de seu crime. Seus problemas são de ordem logística. Ela vive um conflito interno, muito bem trabalhado na fotografia. O conflito, no entanto, não é intensificado pela presença da família ou por sua profissão.

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A família propaganda da margarina islandesa. As linhas das janelas separam os membros da família, mostrando uma distância emocional entre os integrantes. Algo necessário para Mia esconder seus fantasmas.

Na verdade, a família e a profissão só ajudam, fornecendo espaço e recursos para Mia fazer o que precisa.

Falha número 5 (é, esse ato tem alguns problemas). Pistas e recompensas. Shazia explica o funcionamento das memórias até não termos mais quaisquer dúvidas.

Elas não são provas concretas. A investigação precisa de múltiplas fontes para determinar a verdade a partir dos fatos e características em comum. As pessoas injetam seus vieses e experiências nas memórias.

Tudo para explicar que memórias não são registros perfeitos.

Toda vez que a investigadora menciona esses fatos, ela está plantando informações que o público precisa para compreender totalmente o embate futuro com Mia. A pista da imperfeição das memórias não gerará resultados. Na hora realmente importante, tudo é considerado como verdade absoluta. Então as pistas plantadas aqui não terão peso. Uma falha grave no roteiro.

Falha número 6. O aparelho de visualização das memórias é feio. Não parece com o design cuidadoso das tecnologias de Black Mirror. Ok, tomei uma licença poética aqui.

Ato Três – Confronto

Shazia chega à casa de Mia e temos o embate. A principal falha do ato dois, somando os fatores enumerados, foi não construir tensão para esse encontro. Toda a tensão precisa ser criada quase que instantaneamente, já dentro da cena.

O episódio até reforça alguns elementos (roxos) que apareceram antes para escalar essa tensão o mais rápido possível.

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Se existe um elemento roxo, alguém vai morrer. Se a câmera dá um close em facas, alguém vai morrer. Mas se a câmera dá close em facas e uma delas, a maior, é roxa…. aí fudeu.

A construção visual de Mia é o ponto forte do episódio, portanto é bastante crível que seu conflito interno a supere. Ela não consegue manipular suas memórias. É a única pista que ela não consegue cobrir.

Uma vez que Shazia entende o que ocorreu e foge para o carro, com Mia a perseguindo tentando arranjar desculpas, a câmera estável com que nos acostumamos muda para uma filmagem de câmera na mão. A instabilidade ou “tremedeira” amplifica o caos do momento, onde a futura vítima está desesperada para atacar e a futura agressora se desespera tentando impedir que precise atacar novamente.

Curiosamente, a pista do carro não funcionando na partida pela digital, lá no início do episódio, dá sua recompensa aqui de maneira eficiente.

Entretanto, há outra falha de pista e recompensa no ato. Vimos Shazia explicar que ela é obrigada a reportar para a polícia memórias em que ocorrem agressões. Na casa da protagonista, ela entrega o documento da lei. A protagonista passa um longo tempo olhando o documento. Quando Mia a mantém cativa e pergunta sobre a tecnologia, Shazia mente, falando que não é obrigada a reportar o que viu.

Qual foi a utilidade no roteiro de mostrar o documento para uma arquiteta tão inteligente e mentir sobre, se Mia não usa o fato para provar que sua vítima mente? Alguns segundos de tela foram gastos numa cena que não rendeu frutos. Mia decide que Shazia está mentindo por intuição ou confusão mental. O documento jamais é mencionado.

Depois, ela acessa o aparelho de memória para ver a mente da vítima. É aqui que o ato três se recupera e o episódio dá um salto. Começamos a entender até onde Mia é capaz de ir em seu desespero para cobrir seus passos.

Ela então mata a mulher e, finalmente, alcança um estágio sem volta.

Ato Quatro – Crocodilo

Aqui o episódio alcança seu brilho mantendo a qualidade visual do ato um e deixando para trás os problemas de roteiro. Assistimos à protagonista chegando ao fundo do poço.

Sua invasão à casa de Shazia para matar o marido, Anan, personifica o crocodilo com o silêncio. O animal ataca se aproximando da mesma maneira. A vítima está indefesa quando percebe seu destino. Até o capuz e o pano na boca, que auxiliam na camuflagem e no silêncio, ajudam a manter apenas seus olhos à vista, tal qual um crocodilo deslizando na água.

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Enche essa porra aí de vermelho que o bagulho agora tá violento.

Os movimentos de Mia com o martelo naturalmente lembram Psicose, porque qualquer cena de assassinato no banheiro lembra Psicose. O corpo de Anan submerge na banheira, como uma vítima de um crocodilo.

Uma vez terminado o ataque, Mia desce tendo coberto todas as pistas. Até que encara um bebê. A tensão dessa cena, agora sim, é irretocável. Não é necessária uma trama paralela. Entendemos todos os conflitos de Mia nesse momento pela construção de sua psique no restante do episódio.

Epílogo

As duas últimas cenas nos revelam os plot twists do episódio. Apesar dos erros de roteiro ao longo, aqui as viradas foram precisas.

Mia afunda em lágrimas de crocodilo assistindo ao musical com participação do filho. A letra a chama por todas as ações que ela cometeu.

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O isolamento de Mia é tão forte que, mesmo cercada de pessoas, ela permanece visivelmente sozinha.

Em paralelo aprendemos que o bebê era cego, um soco em nosso estômago. A última morte, quinta no currículo de Mia, quarta por suas mãos, foi na verdade um capricho, ainda que ela não soubesse.

Em sequência, o porquinho da índia, a pista melhor plantada pelo episódio na primeira cena de Anan, assistiu ao último ato do crocodilo. O porquinho ficava no quarto do bebê.

Com todas as falhas de roteiro apontadas, não significa que o roteiro como um todo é fraco. Quando quiser saber se um roteiro é bom ou não, tente responder duas questões. “Eu sabia o que ia acontecer no final?” No caso, você sabia que Mia ia matar tanta gente? Chegar a esse nível de escuridão. A segunda questão é: “o que aconteceu foi inevitável?”. A palavra-chave é inevitável, contrastando com imprevisível. Sabendo o que ocorreu, com a construção de personagens e eventos em mãos, outro final era possível?

A mortandade alcançada não era previsível no início do episódio. A construção de Mia não dá margem para outra possibilidade de eventos. Com falhas ou não, o roteiro cumpre o papel mais difícil e almejado, de somar imprevisibilidade e inevitabilidade.

A ironia? Se Mia não tivesse entrado no quarto para matar o bebê, passaria ilesa pelos outros quatro homicídios. Sua vida poderia continuar. Brilhante. Ainda que eu fique curioso pela entrevista que a polícia fez com o porquinho para refrescar sua memória. Será que abriram uma cerveja?

Bom, acho melhor eu abrir uma para seguir em frente. Hang the DJ nos aguarda.

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Você também pode ler reviews das outras temporadas de Black Mirror aqui e outras análises de filmes e séries aqui.

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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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