*Nota: essa é uma série de análises aprofundadas em aspectos técnicos sobre a quarta temporada de Black Mirror, feita para a Revista Subjetiva a convite do editor Lucas Machado. Esse texto encerra a série olhando toda a temporada. Já sabe, né? Contém spoilers sobre todos os episódios da quarta temporada de Black Mirror.

Nas temporadas anteriores de Black Mirror, um pensamento recorrente era: qual o tema universal a essa temporada? Sempre tive dificuldade de encontrar essa linha unificadora.

Quando vejo a conexão temática de Shut Up and Dance com White Bear, percebo a conexão se enfraquecer no caminho para Hated in the Nation. The National Anthem talvez bata melhor com The Waldo Moment, mas fica distante de Fifteen Million Merits ou Be Right Back.

Todos trabalham relações humanas com ou através da tecnologia, claro. Em muitos casos, no entanto, a conexão não passou disso. Eram histórias realmente independentes.

Sempre tentamos identificar temas nas histórias, mesmo inconscientemente. Arte de Lucas Bambirra

Temas episódios Black Mirror temporada 4

Sempre tentamos identificar temas nas histórias, mesmo inconscientemente. Arte de Lucas Bambirra, clique na imagem para acessar.

Quando comecei a quarta temporada, a mesma pergunta se preparou na minha mente. Tendo chegado ao fim sem maratonar, acredito que, pela primeira vez, um tema emergiu com força.

Sinto muito se você esperava um ranking para fechar a série. Jamais abrirei o segredo do meu episódio favorito (risada maléfica).

O uso dos cookies

Essa temporada intensificou o uso dos cookies, as cópias digitais de seres humanos. São cópias capazes de todas as mesmas emoções, faculdades mentais e sensações físicas. Seres humanos completos formados por bits, no lugar de proteínas.

Os cookies levantam uma pergunta natural, bem forte na ficção científica e presente nesse gênero no cinema com força pelo menos desde Blade Runner (1982). O que nos confere humanidade?

USS Callister, Hang the DJ e Black Museum trabalham diretamente com diferentes estágios de cookies. Até é apontada a questão dos direitos humanos dos cookies no último episódio.

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Black Mirror 4.04 capa

Cookie 1

Alguns dos cookies de Black Mirror

Apesar de não usarem os cookies, os outros três episódios também perpassam a pergunta. Arkangel questiona o que nos torna humanos ao limitar a capacidade de Sara de amadurecer emocionalmente. Crocodile o faz pela perda de humanidade de Mia, que se torna cada vez mais besta a cada crime. Metalhead nos escancara a questão em um mundo apocalíptico onde pessoas arriscam suas vidas contra máquinas mortíferas até por simples ursos de pelúcia. São simples ursos de pelúcia até que se prove o contrário.

No entanto, não é só a pergunta que unifica a temporada. A resposta também o faz. Aqui é a parte onde você diz que eu tô viajando e fecha a aba ou viaja comigo. Faça sua escolha.

O que nos confere a humanidade é o sofrimento. Não sou eu quem está dizendo, é a quarta temporada inteira.

O sofrimento que humaniza, a fuga que desumaniza

Robert Daly sofria de isolamento, solidão, suposto bullying em USS Callister. Sua resposta foi criar um universo digital inteiro onde ele não sofria, apenas comandava. Tornando-se um tirano, o sofrimento passou a ser imputado a cada cookie que ele inseria no sistema.

A partir da capacidade dos cookies de sofrerem, começamos a nos questionar quão humanos eles são. Lembrando de White Christmas provê a mesma sensação quando vemos a primeira cookie de nossas vidas sendo torturada até se tornar uma super secretária eletrônica.

Arkangel mostra Marie, a mãe, desumanizando a filha, pois limita sua capacidade de sofrer. De encarar medo e dor. Quaisquer eventos geradores de estresse ou adrenalina eram apagados da existência da pequena Sara.

Sem essas emoções, a filha teve dificuldades de navegar pela vida de forma mais humana. Ao ponto de atacar a mãe sem controle. O que Marie buscava era essencialmente se livrar do sofrimento próprio de perder a filha, como no início do episódio. Sua resposta foi o controle.

Acabou gerando justamente o resultado que mais temia.

Crocodile nos mostra Mia sofrendo por sua memória. O ex-namorado, com quem estava no atropelamento, se arrependeu pelo evento, também sofrendo por sua memória. A dor do crime cometido há anos era forte demais. Uma redenção, falando a verdade de alguma forma, era necessária para apaziguar esse sofrimento.

Mia negou essa possibilidade. Sua resposta foi matar a humana dentro de si, junto com cada ser humano que ameaçasse sua estabilidade.

Metalhead mostra três pessoas tentando obter uma caixa de ursos de pelúcia. Para uma criança em estado terminal. Em um mundo pós-apocalíptico. A ideia de mitigar o sofrimento dessa criança valeu todo o risco e eventualmente as mortes de todos os personagens da empreitada. São caçados por cães-robôs que não avaliam o sofrimento que causam. Apenas seguem uma programação de matar a qualquer custo.

Black Museum mostra o vício no sofrimento pela dor na primeira história, do doutor Dawson. Seu vício o faz não enxergar o sofrimento que ele se tornou capaz de causar. Depois o series finale vira a chave para a fuga do sofrimento do luto e do medo de morrer, por Carrie e seu marido.

O episódio termina com a história de Clayton, fazendo do sofrimento um elemento de espetáculo, proporcionado por Rolo Haynes.

Em todos os episódios, as personagens que vivem ou causam a perda de humanidade são as personas que fogem do sofrimento ou invisibilizam o sofrimento alheio.

Precisamos de sofrimento?

Estando tão associado à visão do que é humano na temporada, a série levanta a questão do quanto o sofrimento é necessário. Podemos extinguí-lo? Ou isso automaticamente nos afasta de nossa humanidade?

O episódio que melhor retrata esse conflito, para mim, é Hang the DJ. Pois é o único cujo final soa realmente feliz — em Black Museum, o final é catártico pela vingança, mas a lógica do sofrimento perpértuo em souvenires persiste.

A premissa de Hang the DJ é que a pessoa que entra no aplicativo disponibiliza mil versões digitais de si mesma, os cookies, para passarem por simulações com cada tentativa de “match”. Cada versão digital vai experienciar relações frustradas, tediosas, possivelmente abusivas, em busca da pessoa correta.

Imagine que Frank tentou dar “match” com nove pessoas antes de Amy. Incluindo o que vimos no episódio, isso faria com que Frank tivesse vivido dez mil vidas digitais, sofrendo, se apaixonando e perdendo paixões, se frustrando. Tudo para que o Frank físico não precisasse passar por todas essas experiências na busca do par perfeito.

Imagine todo o sofrimento que você já passou na sua vida. Multiplique por dez mil.

Em Hang the DJ, preferimos delegar nosso sofrimento a versões digitais de nós mesmos, que não sabem o que são e estão sentindo tudo que ocorre como sendo real. Exatamente como foi em White Christmas, multiplicado. Por dez mil (no meu exemplo).

Talvez essa seja a busca primordial do ser humano via a tecnologia. Maneiras de acabar com o nosso próprio sofrimento, com a dor frequente, a angústia. Mesmo que isso custe causar sofrimento a outros. Black Mirror parece defender que essa é a nossa perdição. A tecnologia é apenas o meio.

Os cookies, no entanto, não eliminam o sofrimento do mundo. Apenas se tornam os escolhidos para carregar esse peso, caso claro de USS Callister. Talvez, só devêssemos aprender a conviver com o sofrimento como parte natural da vida. Equilibrá-lo. Antes que ele nos engula e seja tudo que sobre, como em Metalhead. Quantos dilemas dos episódios não seriam resolvidos com essa lição?

É mais fácil falar do que fazer. Até porque ainda não posso delegar para minhas cópias digitais a atividade de escreverem meus textos. Já que sou eu quem precisa lidar com cada bloqueio criativo, me resta seguir em busca desse equilíbrio.


Muito obrigado à Revista Subjetiva pelo convite para essa série de textos. A publicação fica lá no Medium, plataforma onde eu e um montão de gente legal escreve. Vale a pena conhecer, recomendo especialmente para quem quer jogar suas primeiras palavras na tela.

Você também pode ler reviews das outras temporadas de Black Mirror aqui e outras análises de filmes e séries aqui.

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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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