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Olá, eu sou o Yann e esse é o primeiro episódio do podcast do Além do Roteiro.
A Ilíada de Homero, a mais antiga obra escrita de ficção ocidental a que temos acesso, é uma das obras fundadoras da nossa civilização. Ela é composta por 24 Cantos, que podemos chamar de capítulos, e começa a sua história no nono ano da Guerra de Troia, narrando alguns dias do embate entre gregos e troianos, até o sepultamento de Heitor, o grande protetor troiano.

Eu li A Ilíada recentemente, em um curso de Literatura, e a leitura dessa obra-prima trouxe vários impactos. Eu sou super metódico e foi tentador fazer um primeiro episódio voltando à Grécia Antiga, ao tempo que consideramos berço da nossa civilização.
Mas o real motivo para eu falar da Ilíada é que ela revelou uma confusão em minha mente.
Mas como assim? Pra começar, que podcast é esse? Bom, o Além do Roteiro existe desde 2014. É um site que publicou ao mundo o meu processo de começar a escrever, lá quando eu ainda estudava e trabalhava com Engenharia da Computação. Tempos antigos, ainda que não tão antigos quanto os tempos em que Homero teria escrito A Ilíada.
Depois de todo esse tempo, resolvi levar o AdR a uma nova etapa, na forma desse podcast. O Além do Roteiro sempre foi uma espécie de diário de estudos. O que eu e outras pessoas que escreveram no AdR ao longo do tempo buscávamos era compartilhar o que nós próprios estávamos estudando.
E é por isso que eu estou indo até a Ilíada. Nenhum lugar melhor para começar do que na fonte que resolveu uma confusão recente.
É um prazer enorme poder compartilhar com você o meu processo de estudo sobre roteiros. Eu tenho alguns avisos, já que esse é um projeto em lançamento, mas eu vou deixá-los para o final. Você sabe bem como as 10 primeiras páginas de um roteiro são mega importantes. Produtoras e pessoas leitoras de projetos em festivais e editais vão passar direto pelo seu projeto se essas primeiras páginas não convencerem.
Por isso mesmo, vamos direto ao assunto.
Eu resolvi começar com um tópico bem simples. Personagem.
Tem coisa mais simples em roteiro que personagem?
Na verdade eu resolvi começar com esse tópico porque eu acredito que esse é um dos pontos mais importantes que eu preciso desenvolver nas minhas habilidades como roteirista. A confusão de que eu tanto falo era sobre personagem. Para ser mais preciso, sobre complexidade de personagem.
De alguma forma, eu internalizei que uma personagem complexa só pode ser a personagem que muda. A personagem que passa por uma transformação.
Essa era uma conclusão bem interna. Talvez, se alguém me perguntasse o que é um personagem complexo, eu respondesse que é um personagem com diferentes camadas, algumas até contraditórias. Não descrevi da forma mais estruturada, mas faz sentido. E essa resposta nem mostra a minha confusão.
Ela aparecia na hora de escrever. Comecei a perceber que em alguns curtas, lá estava eu tentando enfiar transformação em três, quatro personagens. Assim, é um curta! Não acontece em todos os meus projetos, mas vez ou outra estava lá essa obsessão. Personagem que não muda está simples demais, personagem que não tem arco não presta.
É dessa confusão que eu falo. Não importa a teoria, a minha resposta de prova, se na hora de escrever eu seguia outro caminho.
Até que A Ilíada surgiu na minha vida. São tantos personagens marcantes… Ájax, Ulisses, Agamemnon, Príamo, Helena, Heitor, os deuses gregos e, evidentemente, Aquiles.
Talvez Aquiles passe por uma transformação em A Ilíada. Já ouvi de acadêmicos que acham que sim, outros que acham que não. Mas todos os outros personagens que citei não passam, e são tantos, e tão importantes… Eu falei que A Ilíada é formada por 24 Cantos. O Canto I começa com Aquiles. Ele se retira da guerra e desaparece do livro, só retornando no Canto IX.
É quase como se o Primeiro Ato da Ilíada não tivesse o herói; na verdade um terço da história tem o protagonista, o maior guerreiro grego, ausente da guerra.
A Ilíada não seria o marco que é se os outros personagens não fossem complexos o suficiente para sustentarem essa história mesmo com a ausência do herói. É uma verdadeira aula de personagens repletos de camadas, de comportamentos e ações que variam de acordo com o público ou mesmo com o dia.
Se você quer estudar personagem, eu recomendo estudar A Ilíada.
Só que essa leitura me deixou com a seguinte percepção: muitas vezes, eu não estou construindo personagens assim.
A Ilíada é, para a maioria dos acadêmicos, resultado de centenas de anos de tradições orais, com inclusões e refinamentos de inúmeros autores, tudo isso convergindo na figura de Homero. É injusto eu exigir de mim criar personagens da mesma categoria de um processo criativo tão potente.
Ainda assim, a abordagem que eu sem perceber acabava seguindo estava me distanciando da possibilidade de criar personagens como os d’a Ilíada. E isso é um problema.
Então eu resolvi ir a fundo nessa minha confusão. Entender de onde ela vem e quem sabe, com isso, aprender alguma coisa.
Lembrando: de alguma forma, eu internalizei que um personagem só pode ser complexo ao passar por uma transformação.
Eu já disse que vim da Engenharia, então eu adoro trabalhos analíticos e meu olho brilha na hora de falar de estrutura. Algumas pessoas bem importantes no ramo do roteiro estabelecem personagem como um sinônimo de estrutura. Isso quer dizer que entender ou mesmo construir um personagem passa por entender ou construir a estrutura – e vice-versa. Robert McKee, no quinto capítulo de seu famoso livro Story, diz de cara:
“estrutura É personagem. Personagem É estrutura.”
Story – Robert McKee

Só que eu não percebo a mesma facilidade em ver na minha mente um personagem bem desenhado da mesma forma que eu visualizo uma estrutura com seus pontos de virada e os funcionamentos de Atos ou de sequências.
Se eu não tenho a mesma facilidade para encarar essas duas dimensões do roteiro, a pergunta que me vem é:
O que significa dizer que personagem é igual a estrutura?
Eu citei McKee, então acho que o mais o justo é voltar a ele.
Ele fala sobre caracterização, o conjunto de características que definem a personagem, de elementos físicos até comportamentos. Mas caracterização não é personagem – é bom lembrar aqui que, no inglês, personagem é “Character”. Então McKee está brincando de dois jogos de palavras. Um deles é diferenciar Characterization de Character, caracterização de personagem.
O segundo jogo é que Character também significa caráter.
McKee diz:
“O VERDADEIRO PERSONAGEM é revelado nas escolhas que um ser humano faz sob pressão – quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira a escolha para a natureza essencial do personagem”.
Story – Robert McKee
Eu citei a tradução da edição em português, mas no conjunto de significados da palavra em inglês, fica o jogo. Verdadeiro personagem é igual a verdadeiro caráter do personagem.
Eu gosto bastante dessa definição. Ela é objetiva, dá pra visualizar na prática da nossa escrita: colocar nossos personagens sob pressão, com a necessidade de fazer escolhas, ajuda a revelar quem é o personagem. É um belo caminho pra revelar a complexidade dele.
O próprio McKee segue dizendo isso, ao exercitar as possibilidades de contradição entre essa escolha, essa revelação de personagem verdadeiro, e a caracterização lá em cima. O que faz aquele papel que falamos de adicionar CAMADAS ao personagem.
Ótimo. Mas McKee não citou estrutura, precisamos avançar algumas páginas pra isso. Ainda no capítulo 5, ele define Arco de Personagem.
“Levando o princípio ainda mais longe: a ótima escrita não apenas revela o verdadeiro personagem, como cria um arco de mudança na natureza interna, para melhor ou para pior, ao longo da narração.”
Story – Robert McKee
McKee chamou de “finest writing” o que a tradução colocou como ótima escrita. Ele não está dizendo apenas ótima, ele diz a melhor escrita.
A MELHOR ESCRITA revela a natureza interna do personagem e então provoca uma mudança nessa natureza.
Eu não acho que McKee tenha feito algo de errado nisso. É sempre aberto a debate se isso é melhor, aquilo é melhor, o que é melhor.
Mas eu acredito que a minha confusão nasceu graças a esse destaque à mudança. Afinal, ele está colocando a mudança no pico da escrita de revelar o personagem verdadeiro, que já é o auge da escrita de personagem. McKee é uma das minhas primeiras leituras teóricas de roteiro então é esperado que eu carregue algumas influências.
Eu disse que vim lá da Engenharia, e um dos efeitos disso é a minha afinidade com lógica. Eu faço pulos lógicos a partir do que leio sem nem perceber.
Que pulos lógicos são esses?
Se personagem é exatamente igual a estrutura, nós podemos começar a inferir que as definições que fazemos para personagens devem ser as mesmas definições que fazemos para… estrutura.
Não faz muito sentido pensarmos em uma estrutura que muda como um caso comum. Mas podemos olhar isso de outras formas.
Poderíamos pensar que um personagem complexo só pode advir de uma estrutura complexa… o que é uma conclusão bem literal e talvez um pouco forçada. Talvez, num olhar menos literal, a ideia que formaríamos seria a de que um personagem complexo só pode advir de uma estrutura bem formatada.
O que isso quer dizer?
Estamos habituados a exercitar certas estruturas: os três Atos, a Jornada do Herói, as 8 sequências. O que elas têm em comum?
Todas elas são pautadas em grande parte pela transformação da protagonista.
Aristóteles é a base de todas essas estruturas ocidentais e dividiu as histórias em comédia e tragédia, com uma definição um pouco diferente do que usamos fora da academia. Na comédia aristotélica, de forma bem simplista, estão compreendidas as histórias com arcos positivos de personagens. Na tragédia aristotélica, a transformação acontece de forma negativa, ou falha em acontecer de forma positiva.

São duas categorias de histórias que pressupõem a mudança do protagonista. E são as duas categorias de história possíveis na definição de Aristóteles, nossa base até hoje.
Seja positivo ou negativo, é nesse arco de transformação completa ou frustrada que a complexidade do personagem se forma. Se o personagem não tem esse arco, ele não pode ser complexo.
Opa opa, peraí. Tô caindo no mesmo vício né, associando a complexidade do personagem à transformação. Mas eu acho que essa confusão não é só minha. A autora K M Weiland tem um livro interessantíssimo, infelizmente ainda sem edição em português, chamado “Creating Character Arcs”, “Criando Arcos de Personagens” em tradução minha.

O livro de Weiland segue os três Atos a rigor e propõe três tipos de arcos. O positivo, mais comum, o negativo, das tragédias, e o neutro, que se soma ao positivo, com a especificidade de que o protagonista é agente de transformação de todo o mundo ao redor.
Fica visível que, sem a lógica da transformação, sem um arco.
Em seu livro, Weiland apresenta uma definição em que uma história sem um arco de personagem sequer é uma história. É apenas uma sequência de situações. Ela classifica o primeiro filme de Indiana Jones nessa categoria de sequência de situações, por exemplo, pela falta de um arco de transformação ligado ao protagonista.
A palavra complexidade não foi usada em nenhum momento nessa definição, mas conseguimos subentender que, sem o arco, essa história está sendo julgada como mais simples, afinal ela está sendo chamada de situação. E sem arco significa sem mudança.
Eu trouxe isso tudo pra dizer o seguinte:
A partir dessas leituras, conscientemente ou não, eu formei a visão de que um personagem complexo só poderia ser um personagem que se transforma, positiva ou negativamente. Basicamente, eu atrelei a complexidade de uma personagem à decisão final que ela ou ele toma ao final de uma história, que é quando esperamos que a mudança ocorra.
Eu percebi que era assim que, no fundo, eu estava encarando as minhas histórias até ler pela primeira vez A Ilíada. Nessa leitura, eu encarei como A Ilíada, uma obra que já era um clássico quando Aristóteles escreveu A Poética, têm uma gama de personagens complexos, e a grande maioria sequer sonha em passar por algum tipo de transformação.
A Ilíada
Vou contar só um pouquinho da Ilíada aqui para ilustrar isso. A história começa na cólera de Aquiles, uma cólera causada por Agamemnon, o rei que lidera a frota grega contra Troia. Agamemnon toma Briseida, a concubina amada por Aquiles, após perder, ele próprio Agamemnon, outra concubina, Criseida. Briseida, Criseida, pois é.
A história da Ilíada pode ser resumida como a cólera de Aquiles – estou evitando a palavra arco nesse momento. A cólera começa contra Agamemnon, quando ele rouba Briseida de Aquiles, como eu falei antes. Nesse momento, Aquiles se nega a ir para os campos de batalha. A cólera segue enquanto os gregos são amassados pelos troianos, com o favor de Zeus. Aquiles segue afastado, indiferente. A cólera se intensifica com a morte de seu melhor amigo, Pátroclo. Ela leva Aquiles à batalha, até o assassinato vingativo de Heitor por Aquiles. A cólera chega intacta à visita de Príamo, o rei de Troia e pai de Heitor, ao acampamento grego para recuperar o corpo de Heitor. Com a visita de Príamo, Aquiles finalmente sai de sua cólera e concede trégua a Príamo para o sepultamento de seu filho mais honrado.
Tem muita, muita coisa a se interpretar nessa trajetória, mas no centro, está a cólera. Cólera é a primeira palavra do original em toda A Ilíada, e o livro termina quando Aquiles sai desse estado, em uma espécie de comunhão com seu inimigo troiano. Por isso já é possível se perguntar se Aquiles passa por uma transformação do tipo que McKee definiu. É difícil dizer que ele passou por uma mudança de natureza em seu caráter, se no livro seguinte Aquiles atacaria Troia do mesmo jeito até a sua morte. A própria liberação do corpo de Heitor é uma ordem dos deuses para Aquiles, sendo difícil definir se ele teria feito isso sem a intervenção do Olimpo.
Aquiles, no entanto, vai muito além dessa cólera. Já nas primeiras cenas do Canto I, Aquiles é orgulhoso, fala com paixão de Briseida e se revolta contra Agamemnon, abandonando o acampamento. A tomada de Briseida foi um golpe direto na honra de Aquiles, um homem duro e temível, movido pela glória. Logo após sair da assembleia, Aquiles vai chorar para sua mãe Tétis, para que ela peça a Zeus para interceder no caso em que a honra de Aquiles foi atacada.
No Canto IX, quando os emissários gregos Ulisses e Ájax tentam fazer Aquiles voltar às batalhas, carregando as promessas de recompensas de Agamemnon e o retorno de Briseida, Aquiles mostra que já perdera a própria razão de lutar. Ele diz que não há glória que valha a perda da própria vida, e ele sabe que lutar em Troia é encarar sua própria morte. Veja bem, o maior guerreiro grego está diminuindo o valor da glória.
Quando Pátroclo pede a Aquiles para vestir sua armadura e liderar seu exército de Mirmidões, Aquiles aceita, pedindo apenas que Pátroclo não seja reconhecido no campo de batalha para não queimar a imagem honrada de Aquiles. Lembrando que ele estava reduzindo o valor da glória alguns Cantos antes.
Quando Pátroclo é morto na luta contra Heitor e contra os deuses, ainda que não seja Heitor o assassino oficial de Pátroclo, a ira de Aquiles se torna inconsolável. Testemunhamos seu retorno ao campo de batalha em uma das mais crueis e memoráveis sequências de matança por um único homem. Coisa pra John Wick nenhum botar defeito.
Aquiles finalmente mata Heitor e sua ira não diminui uma gota. O homem que era movido pela glória arrasta o corpo de Heitor pelo campo de batalha, até o acampamento grego. Ele pendura o corpo de Heitor por dias. Só a visita secreta de Príamo, dias depois, ameniza a cólera de Aquiles, que cede o corpo do filho mais honrado de Troia. E é aí que acaba a história.
Podemos enxergar Aquiles como o homem mais temível de todas as guerras, um guerreiro praticamente invencível. Também podemos enxergar como um homem que pede ajuda à própria mãe, após ter tomada de si sua honra. Aquiles é por vezes o homem com maior clareza sobre a realidade da guerra travada pelos irmãos Agamemnon e Menelau contra Troia, quando defende que a glória não vale mais do que a própria vida, ou que a vida de qualquer dos guerreiros ali presentes, para Ulisses e Ájax. Em outro momento, Aquiles é o personagem mais tomado pela ira de toda a Ilíada, incapaz de qualquer piedade para todos os guerreiros naquela guerra.
Já em posse do corpo de Heitor, Aquiles patrocina um torneio no acampamento e distribui prêmios, julgando o desempenho e a honra dos participantes com tremenda calma e racionalidade, mesmo mantendo sua cólera contra Heitor intacta.
São tantas camadas que Aquiles apresenta…
Algumas pessoas talvez diriam que sua transformação nem é uma mudança em sua natureza, é apenas a tardia saída de um estado de cólera que iniciou a história.
É impossível dizer que Aquiles é um personagem sem complexidade. Mas talvez mais surpreendente seja o fato de que essa mesma complexidade é mostrada ao longo dos 24 Cantos para muitos outros personagens que não têm o mesmo protagonismo de Aquiles nem passam por transformações. Agamemnon por vezes é o rei tirânico sem escrúpulos, e em outros momentos admite seus erros e tenta remendar as situações. Ele às vezes se esconde atrás das inúmeras tropas gregas, e em outros momentos lidera o campo de batalha de forma destemida, à frente de todos. Ulisses, Ájax, Heitor, Príamo, Páris, todos eles apresentam camadas e mais camadas, comportamentos inesperados para nossas concepções de arquétipos fixados, de personagens de um comportamento definidor. E todas essas diferentes camadas são apresentadas por ações e escolhas.
Todos eles são bastante complexos.
Infelizmente, a Ilíada é uma obra de seu tempo, e personagens masculinos são os donos da atenção do livro. Helena talvez seja a exceção, única personagem feminina humana tratada com complexidade, ainda que com bem menos holofote.
Mas vamos voltar ao presente. Eu não quero ter a audácia aqui de contrariar autores como McKee ou Weiland. Então, pra ser justo, vou trazer mais McKee. No capítulo 17 do livro Story, ele trabalha dimensões de personagem, algo que pode servir no nosso estudo sobre complexidade.
McKee faz alguns ataques sobre outras definições feitas, até chegar à sua, que diz, com pequena edição minha:
“Dimensão significa contradição: seja entre caracterização e caráter, seja entre diferentes aspectos do caráter.”
Story – Robert McKee
Sem contradição, para McKee não há diferentes dimensões, ou camadas, em uma personagem. Eu ainda fico reflexivo sobre essa definição e alguns exemplos da Ilíada, mas é inegável que essa definição serve bem à Aquiles, e ir além já seria fuga ao tema. Nessa definição, McKee não fala nada sobre a necessidade de mudança no personagem, então espero ter feito justiça.
Todas essas definições são excelentes guias, nos ajudam muito em nosso processo de escrita.
Só que muitos dos livros sobre roteiro e narrativas enxergam as histórias de um ponto de vista analítico. Para alguém como eu, que se esbalda nesse viés, é uma festa.
Só que esses livros acabam olhando para histórias como um produto pronto. É um pouco mais raro encontrar pessoas dividindo nesses grandes livros seus próprios processos de escrita, suas técnicas e especialidades, suas dificuldades e travas.
A minha experiência escrevendo tem muito a evoluir, mas eu percebo nas tentativas e erros que, para criar uma personagem, existem mais caminhos do que determinar incidente incitante, virada para o segundo ato, crise e mudança no clímax. Essas coisas são muito importantes, sim, mas Aquiles e companhia são enriquecidos por muito mais do que essas definições.
Eu foco tanto nessas coisas que acabo por vezes criando personagens cuja função é cumprir aquela transformação. E esse com certeza não é um caminho garantido para alcançar personagens mais complexas.
Acho que até tenho um exemplo famoso pra isso. Um personagem pode seguir os marcos de uma estrutura clássica com exatidão, mas será que isso garante a sua complexidade?
Jon Snow, por exemplo. Eu tô muito curioso pra saber a sua reação ao ouvir o nome dele, por favor me conta depois. Nas últimas três temporadas de Game of Thrones, Jon apresenta uma transformação ao decidir matar Daenerys – no mínimo uma proposta de transformação, talvez questionável, já que ele abre mão do dever de defender e obedecer sua rainha… em nome do dever de proteger o reino.
Mas mais importante do que definir se ele se transforma ou não de fato é observar como ele não age de forma imprevisível.
Cada passo de Jon Snow nas últimas três temporadas podia ser visto há quilômetros de distância pelo público. Nós sabíamos o que o movia e ele nunca saía disso. Até o final foi assim.
Já os personagens de Tarantino são o contrário. Muitos deles não apresentam transformação. Podemos olhar para vilões como Hans Landa em Bastardos Inglórios ou para um protagonista como Django ou para os personagens de Os Oito Odiados. Eles são quem são do início ao fim. Mas isso não significa que eles careçam de complexidade. Eles nos surpreendem em várias cenas na maneira que agem, nas decisões que tomam, e nos divertem com isso.
Eu poderia ter resumido esse episódio falando: eu absorvi que complexidade de personagem dependia do personagem ter transformação. Hoje vejo que é preciso mais do que isso, e que talvez a chave esteja na imprevisibilidade gerada pelas diferentes camadas que o personagem carrega. Uma imprevisibilidade que, como na Ilíada, se revela nas ações e escolhas.
Levaria 1 minuto, talvez. Mas teria graça?
Se de alguma forma você se identificou com essa minha confusão, ou se eu te ajudei a pensar sobre alguns desafios que existem entre as teorias dos livros e a escrita na prática, considero minha missão cumprida.
Esse é o primeiro episódio do podcast do Além do Roteiro.
Espero que goste. Estou planejando alguns formatos de episódios diferentes, mas vou guardar a surpresa e apresentar esses formatos a medida que surgirem.
Se puder me dizer o que achou dessa estreia, vou ficar muito, muito feliz. Ao menos até ler os seus comentários.
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Por isso, o que eu digo por último é que vou promover leituras de roteiro com o grupo de apoiadores. Se você busca uma pequena comunidade de roteiristas para mergulhar de cabeça, essa pode ser a sua chance.
Muito, muito obrigado por ouvir até aqui, e agradeço também a quem já desligou, porque… chega né.
Te espero no próximo episódio do podcast do Além do Roteiro. Até breve.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.