Nota: o texto contém spoilers sobre o filme “Um Limite entre Nós” (Fences).
“Um homem deve fazer o que é certo para ele. Eu não me arrependo por nada que fiz. Pareceu certo em meu coração.” – Troy, para a bebê Raynell.
Quando Troy – personagem de Denzel Washington no filme “Um Limite entre Nós” ou “Fences” -, olha para a filha em seu colo, falando sobre como não se arrepende, não há uma ressalva em sua construção. Não importam as ações dele, pois ao ter a menina nos braços, ao gerá-la, uma borracha parece vir sobre o passado. Admitir que se arrepende, como é a visão comum, seria passar a borracha na menina. Ela é uma vida, indivisível e inegável. Portanto, não há espaço para arrependimento.
Rose chega, pega a menina nos braços, reconhece sua inocência e promete cuidar dela como mãe. Contudo, mostra a Troy que ele deveria se arrepender:
De agora em diante… Essa criança tem uma mãe. Mas você é um homem sem uma mulher.

O elenco principal de Fences
Já tratamos aqui sobre a visão “Efeito Borboleta” que o senso-comum mantém sobre o arrependimento, e como podemos resignificá-lo para melhor uso na vida. Retomando a tese:
Troy representa muitas coisas. Representa o homem negro e pobre da era anterior à luta pelos direitos civis. Ele trabalha duro em um emprego sem status social, é chefe de uma família, já passou pelo crime, pela prisão. Já se decepcionou com as oportunidades fechadas a ele, com as que sequer existiram. Ele sabe as consequências de decisões ruins, conhece o poder da segregação racial, entende o que é viver pobre. Sente na pele o peso das responsabilidades.
Troy se fecha dentro de uma cerca de responsabilidades. É o provedor, o protetor, o experiente.
Suas falas revelam suas crenças, suas visões de mundo, que percebemos serem visões de mundo comuns, ordinárias, padrões.
Gostar de você? Que lei existe dizendo que tenho que gostar de você?
O que o personagem brilhantemente interpretado por Denzel Washington não percebe são as cercas que ele próprio monta.
Cercas, tradução literal do título original do filme, Fences, é uma metáfora de toda a história. Temos a cerca de madeira sendo construída, o “pulo de cerca” de Troy ao trair Rose, a metáfora que Bono nos revela, de que Rose quer manter a família unida, subjetivamente.
No entanto, a cerca mais forte de todo o filme é a visão de mundo de Troy. A visão de que homem é igual a responsabilidade. Todas as suas relações são pautadas nessa visão.
Troy e Cory

Cory e Troy
Gostar de você? Eu saio toda manhã, me mato de trabalhar porque gosto de você? Você é provavelmente o maior tolo que já vi. Um homem deve tomar conta de sua família. Você vive em minha casa, se alimenta com minha comida, deita suas costas na minha cama porque é meu filho. É meu dever cuidar de você, eu devo essa responsabilidade a você, eu não tenho que gostar de você! Agora, eu dei a você tudo que eu tinha a dar! Eu dei sua vida! Eu e sua mãe nos organizamos e gostar de você não foi parte da barganha! Agora, não passe pela vida se preocupando se alguém gosta de você ou não! É melhor você ter certeza que estão sendo corretos com você! Entende o que estou dizendo?
A relação do protagonista com o filho mais novo demonstra explicitamente o peso da responsabilidade. A fala define o papel de um homem: o papel do provedor, protetor e chefe. Como pai, com os papéis descritos em mente, Troy tem um dever. Ele não pode abrir mão dessas ações, é obrigado a cumpri-las, ou deixará de ser visto segundo esses adjetivos, segundo a própria definição de homem que ele e a sociedade carregam.
A parte mais interessante é a da barganha. Imagine uma conversa entre Troy e Rose negociando os termos do cuidado de Cory.
Troy: Ei, baby
Rose: Humm
Rose resmunga, enquanto arruma o berço.
Troy: Eu imaginei esse momento, enquanto lutava com a Morte por três dias e três noites.
Rose: Claro que imaginou.
Troy: Um bebê nosso, da nossa família, dessa casa.
Troy dá um gole na garrafa de gin que carrega.
Rose: E o que a tal Morte disse, Troy?
Troy: Ah, ela disse, “você não vai conseguir cuidar desse muleque!”. Bebi um gole pesado e cuspi na cara da filha da mãe. Eu, EU, não vou saber cuidar do meu muleque? HÁ HÁ HÁ. A Morte não me conhece, e não conhece você também.
Troy agarra Rose pela cintura e gargalha.
Rose: O único jeito de ele me conhecer é chegar perto dessa casa. Me conhecerá quando eu o colocar para correr.
Rose também se diverte com a conversa.
Troy: Ele não vai chegar perto, porque vou construir uma cerca
Troy dá mais um gole.
Troy: Uma cerca anti-Morte, e vou rir enquanto ele olhar assustado de longe…
Troy olha pela janela, como se visse a Morte nesse momento.
Troy: Sabe, você será a pessoa a dar amor para ele, Rose.
Rose: E por que seria eu? Por que não você?
Troy: Porque eu estarei ocupado cumprindo meu dever. Estarei levantando a cerca.
Rose: Acho bom você construir uma bela de uma cerca então, Troy…
Para quem ficou na dúvida, essa conversa não faz parte do filme. Porque uma conversa assim não existe. Ninguém negocia o amor de um filho, quem será responsável por só dar comida, quem será responsável por só levar no parque para brincar.
Mesmo assim, as famílias se dividem dessas formas, tradicionalmente. A barganha é implícita, é padrão, o senso-comum. E o senso-comum pode até elogiar o pai que ama, mas só se esse for o bônus. Sua obrigação é prover, garantir a comida em casa, a cama para dormir, o telhado sobre as cabeças. Amar? Só se sobrar tempo.
Troy revela um modelo de paternidade antiquado, que nos acostumamos a relacionar com a época em que vive o personagem. O assustador é, usando Troy como espelho, perceber como esse modelo é massivamente representado e replicado ainda hoje.
Essa mesma visão gera, naturalmente, uma animosidade na relação entre pai e filho. Cory ressente o pai, pois enquanto este está ocupado com as obrigações, deixa de atender outras necessidades do garoto, como demonstrar o amor que um filho espera. Esse ressentimento é fortalecido no roteiro pelo conflito do esporte.

Cory olhando para a bola de baseball… ou para seu pai?
Troy se decepcionou com a tentativa de ser um jogador, com o racismo que o bloqueou, e só consegue enxergar o filho falhando nesse caminho pelas mãos de um sistema mais forte. Mas a trama revela como, por exemplo, o sistema não travou o pai só pela cor, mas pela idade.
A trama também revela que os tempos estão mudando. São tempos pré-luta pelos direitos civis, de avanços lentos contra as severas leis de segregação, mas ainda assim avanços sentidos. Cory tem alguma chance, chance muito maior do que a que o pai jamais teve. A maior prova dessa chance está justamente em Troy, que consegue ser o primeiro motorista negro de caminhão da empresa de lixo. Essa comparação machuca o pai, que joga todo o peso da responsabilidade que carrega no filho.
Eles brigam.
Cory é expulso de casa como uma reação a sua própria decisão de não suportar mais o modelo de pai que tem em sua frente. Ele estabelece sua posição e o enfrenta de vez; Troy pode arrefecer sua visão de mundo ou mantê-la e tirar o filho de casa. Escolhe a última opção.
Note que a aparente repetição da história que Troy teve com o próprio pai não demonstra que o filho é igual a ele. Demonstra que ele buscou com o filho o mesmo conflito que ele buscou com o pai. Pois esse é o seu ideal masculino. O menino vira homem quando enfrenta o homem imediatamente acima, deixando o lar e tocando então sua própria vida. O pai é, antes de tudo, um obstáculo que um filho deve superar para se tornar homem.
É importante perceber isso para não perdermos o fio da meada, a noção de arrependimento que queremos nutrir. Troy não se arrepende de nada, nem mesmo de se desconectar do filho. Mais importante para ele é manter sua definição de homem intacta.
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Troy e Lyons
A relação com Lyons, o filho mais velho, fruto de uma relação que não conhecemos, mostra o outro lado da linha. Uma vez que acaba a relação de responsabilidade, uma vez que o filho não está mais sob o mesmo teto, como se comporta o protagonista?
Será que agora ele tem tempo para amar?
Ao invés de buscar a proximidade do filho, Troy mantém um olhar descrente das escolhas de Lyons, estabelece uma relação de poder e mérito porque ele sim trabalha duro, não esse garoto músico “vagabundo”. É a partir dessa visão que o pai mantém a relação, montando sobre a bagunça financeira do filho músico.

Rose é a mediadora, tentando manter a conexão entre Lyons e Troy
Ainda que Lyons tenha sido confuso o suficiente para precisar de dinheiro várias vezes, o que o filme nos mostra explicitamente é o contrário: é o momento em que Lyons se organiza o suficiente para pegar emprestado e pagar. É o momento em que Troy vê isso e simplesmente nega.
Outro momento ainda mais forte mostra o que se torna Troy uma vez que a responsabilidade se esvai. Lyons, agora alguém que paga empréstimo ou que nem precisa do dinheiro, chama o pai para assistir a uma apresentação. Esse evento não teria papel, obrigação, dever, nada. A presença do pai representaria apenas amor. Nada o impede de ir, ele só tem a ganhar indo.
Troy não consegue.
Mas ele não se arrepende de nada, nem de deixar de ver seu filho fazendo o que ama.
Troy e Gabriel
O irmão de Troy é um excelente exemplo do propósito de personagens secundários. Para Scott Myers, autor que mantém o ótimo site Go Into The Story, os personagens são funções do roteiro, incluindo o protagonista; e todos os outros teriam funções centradas naquele. Ele cita cinco arquétipos que você pode conhecer no link anterior. Gabriel demonstra o arquétipo do “Trickster”, o tipo de personagem com função de testar a determinação do protagonista.
Sendo o irmão que precisa de cuidados, Gabriel (ou Gabe) passa uma imagem conflituosa de Troy. Sendo este o único dos irmãos que parece por perto, disposto a cuidar, absorvemos uma imagem positiva do protagonista, que é contrastada pelo aparente desconforto que ele sente em cada cena. O personagem de Denzel está sempre supondo que a anfitriã atual do irmão só quer o dinheiro do aluguel, mas não demonstra o que faz com relação a isso.

Troy e Gabriel
Como sempre, Troy não foge da responsabilidade, como dar comida a Gabe quando este é levado a um estabelecimento de cuidados psiquiátricos. No entanto, é a existência de Gabe que revela uma das grandes fachadas de Troy. Graças ao incidente de guerra que causou os problemas do irmão, o protagonista recebeu parte da ajuda financeira por cuidar dele. Esse dinheiro permitiu a Troy comprar a casa da família – não o trabalho duro que ele tanto clama. A casa que ele grita como sua para Cory, quando brigam, não é tão dele como sempre faz parecer em seus monólogos.
Portanto percebemos que a responsabilidade de irmão que ele demonstra por Gabe tem uma motivação torta, pela dívida que sente com o benefício financeiro que o incidente causou. Entendemos melhor o desconforto de Troy na presença do irmão e porque ele insiste em implicar com a anfitriã recente de Gabe.
Troy não se arrepende da fachada que mantém de pé a todo o tempo, em frente a todos da família. Insiste em carregar todo o peso da responsabilidade nas costas, um peso que só pode ser erguido em conjunto. Homens são definidos pela carga que aguentam. A carga do mundo inteiro, porém, é impossível de carregar. Mantendo essa cultura, nós “pedimos” que os homens vivam de fachada. Ou que se matem carregando o mundo.
Espera-se dos homens que sejam Atlas, o titã condenado pelos deuses a sustentar o céu, o firmamento. Esquecemos que carregar os céus não é orgulho, é condenação, e seguimos nos castigando.
Troy e Rose
Repare em como o protagonista fala sobre o sexo com Rose:
“Vê essa mulher, Bono? Eu amo essa mulher. Amo tanto essa mulher que dói. Amo tanto que… Não tenho mais maneiras de amá-la. Então tenho que voltar ao básico. Não venha na minha casa segunda de manhã, falando que é hora de ir ao trabalho. Porque ainda estarei no básico!”
Agora tente se lembrar de uma cena de sexo no filme. Não há.

As “brincadeiras” de Troy
Escondido em seu jeito brincalhão ao tratar o assunto está o mesmo peso que o arrasta ao trabalho. Como marido, ele sente responsabilidade de “comparecer” na cama com a esposa. Como chefe de família, precisa comunicar ao mundo que cumpre essa responsabilidade. Não à toa, essas falas sempre surgem quando Bono, alguém de fora, está presente. Não à toa, o filme nunca mostra algo além das palavras nesse contexto.
Essa representação de sexo é mais uma das fachadas que todo homem é compelido a manter por toda a vida, desde que tem idade para o primeiro beijo – ou menos. É somada à ingestão de bebida alcoólica, que só Troy demonstra em volume na história, o escape padrão masculino.
Mas a grande pergunta que deve ficar para todos os homens a partir do exemplo de Troy é: você sentiria tesão olhando para a sua responsabilidade?
É isso que Rose se torna para ele. Enquanto veste a capa de super-herói, se enxerga com os músculos de um titã grego, assume a aura de protetor-provedor, todos que estão dentro da cerca dependem de Troy. Todos que estão dentro da cerca são sua responsabilidade. Se a comida que Cory come é dele, por que a de Rose não seria? Se a cama em que Cory deita é dele, por que a de Rose não seria?
Cuidar de Rose, prover para Rose, transar com Rose, tudo deixa de ser uma vida a dois para mais uma manutenção de deveres e responsabilidades. Troy parece entender isso, ao revelar a grande (e esperada) virada do roteiro. Estava vendo outra mulher, transando com outra mulher. E a deixou grávida.
Não entende, no entanto. Pois seu discurso, que começa como alguém que simplesmente assume que está errado, se revela um poço de desculpas, de como ele deixou de ser quem é por conta de tantas responsabilidades, e que viu na presença de outra mulher seu “verdadeiro eu” surgir.
O erro número 1 está na falácia do “verdadeiro eu”. É natural se sentir melhor em um ambiente onde você não sente a carga de responsabilidade de anos ou décadas. Mas isso não significa se encontrar. Significa sentir o gosto de liberação da pressão que ele coloca, em conjunto com a sociedade, sobre os próprios ombros. É temporariamente se soltar do papel de homem que ele próprio defende com tanto afinco. A carga é tão grande, mas em nenhum momento paramos para refletir se está fazendo sentido carregá-la.
Assim, podemos perceber que Troy não precisava ser infiel para essa “conexão”. Bastava olhar para si mesmo com outros olhos. Mudar a visão de que homem é só aquele que só provê e protege. Se libertar dessas amarras potencializaria todas as suas relações, inclusive o casamento.
O erro número 2 é a tremenda falta de empatia do protagonista. Ao centralizar a existência da família, de tudo que a cerca engloba, em seu próprio umbigo, Troy não enxerga o tremendo esforço, no mínimo tão relevante, de Rose. A mulher que abdicou de inúmeras escolhas e possibilidades ao escolhê-lo, ao escolher a vida com ele. A mulher que abraçou as suas responsabilidades enquanto esposa, enquanto mãe de família, enquanto dona de casa, enquanto todos os papéis que eram esperados e que até hoje pressionam as mulheres.
Troy não alivia a pressão de Rose, e ainda a invisibiliza, ao mostrar que sequer percebe essa pressão. A fala mais marcante do filme, na magnífica atuação de Viola Davis, eterniza o momento em que todo o peso que o homem carrega ainda é menor do que todo o peso da mulher. Porque o peso do homem, pelo menos, é visto, reconhecido. Pode ser gritado, pode virar brincadeiras, pode expulsar filhos.
Para a mulher, só resta seguir.
Eu estive presa com você! Eu estive aqui com você, Troy. Eu tenho uma vida também. Dei dezoito anos da minha vida para estar no mesmo ponto que você. Você acha que eu nunca quis outras coisas? Você acha que eu não tive sonhos e esperanças? E a minha vida? E eu? Você acha que nunca passou pela minha mente querer conhecer outros homens? Que eu não queria deitar em outro lugar e esquecer minhas responsabilidades? Que eu não queria alguém para me fazer rir e sentir bem?
Você não é o único com desejos e necessidades. Mas eu me mantive com você, Troy. Peguei todos os meus sentimentos, meus desejos e necessidades, meus sonhos… E os enterrei dentro de você. Plantei uma semente e a assisti e orei por ela. Eu me plantei dentro de você e esperei aflorar. E não me levou dezoito anos para descobrir que o solo era difícil e rochoso e que nunca iria aflorar.
Mas me mantive com você, Troy. Segurei você mais forte. Você era meu marido. Eu devia a você dar tudo o que tinha. Todas as partes de mim que eu podia encontrar para dar a você. E lá em cima, no quarto… Com a escuridão caindo sobre mim… Eu dei tudo que tinha para tentar apagar a dúvida de que você não era o melhor homem do mundo, e que para onde você estivesse indo… Eu quereria estar com você. Porque você era meu marido. Porque esse era o único jeito de eu sobreviver como sua esposa. Você sempre fala do que você dá… E o que você não precisa dar… Mas você toma também. Você toma, e nem percebe que outros estão dando!

O momento em que o Oscar recebe Viola Davis
Troy, entretanto, não se arrepende de ser incapaz de enxergar sua esposa.
Tudo por uma argumentação em que supomos que todos esses erros não devem ser reconhecidos, não devem ser lições para os próximos desafios, que os perdões não devem ser pedidos. Porque uma filha que nada a ver tem com tudo isso nasceu, um “liquid-paper” gigante surge na história. É isso que supõe Troy, mas claramente é uma falácia.
Troy não se arrepende, mas não é realmente por Raynell. É pela frase que ele mesmo diz, lá no início: “Pareceu certo em meu coração”. Na última vez que verifiquei, meu coração não detém o gabarito da vida. Parecer certo não absolve tudo. Não permite que o homem seja como deve ser, doa em quem doer.
Se arrependa, homem.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.