Nota: o texto contém spoilers até a sexta temporada de Game of Thrones.
A cena inicial de cada episódio de uma série é seu teaser (provocação, em tradução livre). Em especial, a cena inicial do episódio Piloto tem o dever de provocar o espectador ao ponto de prendê-lo ali. É um momento chave para a narrativa assegurar audiência.
Walter White de cueca e com uma arma em Breaking Bad, June e sua família sendo perseguida em The Handmaid’s Tale ou os cinco jovens lidando com um cadáver em How to Get Away With Murder são fortes exemplos do que fazem os teasers. São geradores de curiosidade e tensão. Também estabelecem elementos básicos da narrativa, significados e eventos que vão se repetir por toda a história.
A série Mindhunter, da Netflix, começa com o agente do FBI Holden Ford (Jonathan Groff) chegando a uma situação de refém. Seu objetivo é negociar com o captor para evitar uma tragédia. O sequestrador vive um surto psicótico. Se aproximar é um risco. A negociação acontece de longe.

#PraCegoVer: Holden observa o sequestrador segurando a refém, de longe.
Em primeira instância, o que vemos ali é um misto de conflito pessoal e extrapessoal. O “pessoal” está na tensão entre os dois homens, um fazendo exigências, o outro tentando não ceder e prendê-lo. Além disso, Holden representa a polícia (FBI), a sociedade dentro da lei e da normalidade distante, que não sabe lidar com alguém externo, que vive à margem pelo crime ou pela anormalidade. Forma-se o conflito extrapessoal. Holden está confrontando essa anormalidade que não compreende, na forma de um homem em um ataque nervoso.
Contudo, no íntimo, a cena revela algo sobre os homens. O policial lidando com a situação antes de Holden manteve distância. O próprio protagonista mantém ao chegar. Homens são ensinados desde cedo a não se aproximarem de picos de emoção, a fugirem de sentimentos, a se manterem longe. Exatamente como estão fazendo os agentes da lei com um homem que fugiu a esse padrão, que está dominado por emoções.
Distância masculina. Uma distância de emoções. É esse elemento, impresso já no teaser e até na fotografia, que a série trabalhará em seu protagonista e que vamos entender agora.
O ambiente de isolamento
Holden não é um homem comum. A distância, de algum modo, o incomoda. O fim trágico do teaser, com o homem se matando, desperta a necessidade de mudar o cenário.
Esse cenário é representado pelo próprio FBI. Uma instituição predominantemente masculina, baseada na ordem e força. Portanto, uma representação do masculino por si só. No relatório após o incidente e nos cursos sobre situações com reféns, a distância fica evidente.
Criminosos são definidos com poucas palavras. Dentre poucas variações. São pessoas más, nasceram assim. Não há necessidade de entender essas pessoas, apenas de prendê-las.
Mesmo nesse ambiente, no entanto, a própria instituição mostra sinais de que não está confortável com seu trabalho. Holden é apenas o expoente disso. A ironia é: a mesma distância que percorre a instituição do crime existe entre ela e o protagonista. O preço de ser um expoente.

#PraCegoVer: Holden em uma sala de aula do FBI. No enquadramento, não aparecem os alunos da turma.
O agente não se intimida com a sensação de isolamento ali dentro. Busca oportunidades, é movido por uma curiosidade genuína. Justamente o que o FBI, com sua distância, não tem. Essa curiosidade soa como um importante traço de personalidade. É um engano. Na verdade, Holden se destaca como um prego não por ser um homem diferente dos outros, mas por não saber o que ou quem é. Sua curiosidade é uma busca de preencher esse vazio. A fotografia e o design de produção mostram isso em seu apartamento, já no piloto.

#PraCegoVer: Holden sozinho em sua casa. O apartamento parece vazio, frio.
Preenchendo o vazio
Voltaremos a esse vazio algumas vezes. O importante agora é notar que isso o faz se aproximar, quando a maioria dos homens se afasta. Ele precisa absorver.
Ele absorve de Debbie Mitford (Hannah Gross), que se torna sua namorada, conhecimento sociológico. Absorve da Dra. Wendy Carr (Anna Torv) o conhecimento psicológico. Absorve de Bill Tench (Holt McCallany), o parceiro, a habilidade de diálogo. Absorve do chefe, Shepard (Cotter Smith), a capacidade de se impor.
Especialmente, ele absorve de cada serial killer um pouco sobre a mente humana, de um novo tipo de criminoso. Edmund Kemper (Cameron Britton) é sua “musa inspiradora”.
Mais do que um quebra-cabeça, essa característica faz de Holden uma espécie de Tetris. No início, ele encaixa cuidadosamente as peças, aprendendo rápido sobre seu novo projeto. À medida que a trama acelera, com pressões por resultados e eventos mais perigosos, alguns vazios vão se formando. Como quando passamos de nível e o jogo fica mais difícil. Eventualmente o Game Over chegará.

#PraCegoVer: Imagem do jogo Tetris, com o título Game Over sobre a tela.
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A capacidade de ouvir – positiva
Para absorver tanto, a narrativa exige que Holden seja um exímio ouvinte. Uma qualidade pouquíssimo valorizada no meio masculino. Ainda menos utilizada como elemento narrativo. Mais rara ainda como traço marcante do protagonista. Um exemplo da exceção que isso representa é esse vídeo sobre a “excêntrica” masculinidade de Newt Scamander, de Animais Fantásticos e Onde Habitam.
Como qualidade pouco valorizada, Holden é constantemente subestimado por ser assim. Considerado estranho, diferente. Leia-se menos homem.
A curiosidade genuína aliada a capacidade de ouvir aproximam Holden da empatia. Uma das cenas mais belas da série acontece nesse contexto.
Bill tem um problema com Nancy Tench (Stacey Roca), sua esposa. O casal tem um filho adotado. Bill, como chefe da unidade de ciência comportamental do FBI, precisa viajar o país dando cursos. O trabalho o deixa longe da família. Para completar, o filho tem alguma condição desconhecida que o torna extremamente anti-social. O agente do FBI não consegue estabelecer uma conexão com a criança, o que o derruba.
Em algumas viagens, Holden escuta Bill ao telefone e percebe que o parceiro vive um problema. Em uma refeição, após o acidente de carro que poderia ter matado o protagonista, Bill se abre e o papo ocorre. Até esse momento.

#PraCegoVer: Bill e Holden conversando, sentados lado a lado em um restaurante.
Bill: você não tem ideia do que estou falando, não é?
Holden: Não exatamente. Mas quero entender.
Essa fala é poderosíssima, o ápice de empatia de Holden. É um raro momento entre homens. Uma abertura e conversa franca sobre dificuldades emocionais, dilemas profundos de um lado. Disposição a ouvir do outro. Os dois parceiros nunca estão mais próximos um do outro do que nessa cena. Holden conseguiu cortar a distância.
A capacidade de ouvir – negativa
Essa característica de Holden, no entanto, não acaba aí. O bruxo Newt Scamander tinha seu propósito associado à sua empatia. A compaixão por animais o tornara um estudioso e defensor. Ele se arrisca já no início da história para soltar um animal mágico em seu habitat natural.
A motivação de Holden não é algum tipo de compaixão. Ou uma característica intrínseca da sua personalidade. Precisamos lembrar da sua falta de personalidade no início, lembrar do Tetris.
O protagonista move a trama objetivamente buscando entender quem são esses criminosos serial killers. Move a trama subjetivamente buscando entender quem ele próprio é. Ouvir é sua forma de buscar o autoconhecimento. Ouvir, portanto, é uma utilidade, uma ferramenta. O que limita sua empatia.
Um exemplo interessante é do primeiro caso que ele e Bill ajudam a resolver. Após entenderem as nuances sobre os ataques às mulheres e cachorros, eles fecham o cerco sobre um suspeito.

#PraCegoVer: Bill, Holden e um detetive pressionam um suspeito no quintal de sua casa. (Os diálogos dessa série merecem um estudo à parte)
Três coisas acontecem aqui no jogo de Tetris Holden. Primeiro, ele exercita técnicas de interrogatório em cima de um suspeito contra o qual não havia quaisquer provas. Chegaram à confissão. Segundo, com o exercício ele aprende as primeiras lições sobre por que os serial killers fazem o que fazem. A relação com a mãe se torna uma grande dica.
Por último, na cena seguinte, enquanto comemoram a prisão, o detetive local Carver (Peter Murnik) o chama de Sherlock Holmes. Nesse momento você deve estar vendo a peça de Tetris descendo na tela da sua mente. Um S.
“Se me comparam a Sherlock, sou Sherlock”. O protagonista nunca fala isso, mas a ideia está em sua mente. Suas ações nos últimos episódios revelam como ele se vê um Sherlock Holmes. Modelos de detetives à parte, o fato é que a capacidade de ouvir como ferramenta em seu cinto de utilidades limita sua capacidade de se aproximar. Uma vez que uma utilidade acaba, a tendência é que a distância vencida retorne. Mas antes de fecharmos o arco de Holden…
O parâmetro Bill
Holden busca se aproximar, mas de quê? De quem?
Para entendermos seu arco completamente, desenharmos a representação de masculinidade da série, precisamos dos parâmetros de comparação. Essa é uma das grandes funções de qualquer personagem coadjuvante.
Bill é o estereótipo do detetive/homem durão. Casado, chefe de uma unidade, focado no trabalho, bruto no jeito de falar. Ele é a representação pessoal do próprio FBI que comentamos no início. O personagem mais próximo do homem padrão.
Ele sabe o que quer e o que não quer. Ele quer prender os criminosos. Para estabelecer um ponto comum com Holden, ele quer entendê-los melhor. Contudo, ele não quer entendê-los tanto assim. Apenas o mínimo suficiente para agir. Pois o que os serial killers fazem requer uma maldade que ele e a sociedade não querem compreender.
Bill é, portanto, o estereótipo da distância masculina. Sua vida profissional é completamente separada da pessoal. Ele não conta nada para Nancy. Quantas vezes não vimos Holden e Debbie conversando sobre teses e entrevistas e o trabalho em si? Comparações.
Só que o poço que Bill está descendo junto ao parceiro é apertado demais para não se sujar. O trabalho o afeta. As imagens, os atos bizarros. Ao longo de boa parte da série, isso contribui para mais distância. Ele não entende a curiosidade de Holden, passa cada vez menos tempo em casa.
O arco de Bill o leva mais longe para levá-lo mais perto. A distância se torna insustentável, ao ponto de que mais um passo poderia significar perder sua família. Então, ele finalmente se aproxima. No rompante emocional que sempre evitou, mostra pra Nancy o que faz. Como o que faz o afeta. A distância foi reduzida, ele e a esposa estão perto.

#PraCegoVer: Bill é abraçado pelas costas, por Nancy.
A distância masculina é tão forte, no entanto, que esse momento não foi capaz de eliminá-la, apenas de reduzi-la. Olhe a imagem de novo. Bill está de costas. Ele ainda não consegue encarar a esposa enquanto abre suas angústias. Parte de si continua reservada.
O arco de Bill é exatamente o contrário do arco de Holden. É essa sua principal função narrativa. Um isolamento constante e estereotípico, até o desenvolvimento de uma lenta aproximação.
Holden se aproxima para se afastar. É aqui que entra o parâmetro Kemper.
O parâmetro Kemper
O assustador serial killer que acompanhamos principalmente no início da série não existe só para nos assustar. Ou para admirarmos a incrível atuação. Ou a incrível semelhança com o cara real. Ou pensar que esse cara existiu e falou aquelas coisas!
Calma.
Kemper serve ao que uma série de vilões servem. Mostrar o extremo para o protagonista. O vídeo abaixo do LFTS (sempre ele) mostra o efeito que John Doe e o Rei Amarelo têm em Sommerset e Rust Cohle, em Seven e True Detective, respectivamente. Vale ver essa aula de personagens.
Serial killers são o extremo da misoginia. Também são o extremo da distância masculina. Suas raivas de mulheres, muitas vezes associadas às mães na trama da série, misturam ressentimentos e isolamentos. Foram caras sozinhos, submissos às suas mães. Com isso eles perderam: a capacidade de se relacionar com mulheres (distância); e a capacidade de construir uma personalidade, que gera menos habilidade emocional, que facilita a distância.
Ao sentirem uma mulher como causa disso, é ao grupo “mulheres” que todo o ressentimento se volta. Então começam a caçar e matar. No caso de Kemper, incluindo a vingança direta à sua mãe.
Holden precisa se aproximar dessa pessoa, pois é o que o seu projeto requer. O perigo está em entender alguém como Kemper a tal ponto que ele passe a… fazer sentido.
A tragédia de Holden
Um arco contrário ao de Bill, um combustível poderoso em Kemper. Mas como se desenrola exatamente o arco do protagonista?
Ele não tem a raiz associada à misoginia, então ele começa nutrindo ótimas relações com Debbie e com Wendy. O que não apaga, no entanto, sua falta de personalidade.
Holden não se apega ao seu apartamento. Na verdade, passamos a vê-lo na casa de Debbie muito mais do que em sua casa. Como se vestisse a personalidade da namorada, junto com os conhecimentos de sociologia que absorve.
Em seu caminho de absorção técnica de tanta gente, ele aprende que policiais locais vêem nele um Sherlock. Aprende de Debbie que é um homem diferente e melhor, pois não se sente intimidado por mulheres. Pois escuta.

#PraCegoVer: Holden, ao lado de Debbie, sentados no encontro com Wendy
Quanto mais conhecedor, menos úteis são as outras pessoas e mais confiante ele fica.
Tudo isso o deixa isolado dos questionamentos de homens como Bill ou do chefe Shepard. Essas características se tornam um escudo. Isso ocorre porque não é ali que está sua vulnerabilidade.
Holden se aproxima de muita gente, mas não se aproxima de ninguém da mesma forma que dos serial killers. Em especial de Kemper. Entrevistá-los é jogar uma espécie de Texas hold’em (um estilo de poker). Seria o nome do protagonista coincidência?
Quando um cara como Jerry Brudos (Happy Anderson), o serial killer dos sapatos, está blefando? Manipulando? Holden precisa entender seus blefes, jogar de forma mais inteligente. Ele precisa que cada serial killer abra tudo, jogue um all-in.
Para conseguir isso, a necessária atenção é tanta que ele nunca fica tão vulnerável quanto com esses caras.

#PraCegoVer: Ed Kemper, de pé, segura a garganta de Holden com os dedos, durante a entrevista.
A vulnerabilidade é um dos grandes anseios masculinos, pois é confundida com fraqueza. A distância é o remédio mais usado.
Holden seguiu o caminho inverso e percebe que comprar um sapato feminino é a chave para captar o que precisa de Brudos. Consegue. Só que a vulnerabilidade o pega.

#PraCegoVer: Três imagens. Na primeira cena, Holden está sentado perto do entrevistado Jerry Brudos, enquanto Bill está longe. Na segunda, Brudos admira um sapato enquanto o segura, presente e isca de Holden. Na terceira cena, Debbie e Holden estão deitados, prestes a transar, até que Holden vê o sapato de Debbie.
Holden perto, Bill longe. Brudos com os sapatos “Stilettos”. Debbie com o mesmo sapato.
Quando Debbie, em casa, faz uma surpresa e está usando o mesmo tipo de salto, ele se perde. Sente quão vulnerável ficou. Quão traumático é lidar com aquele tipo de homem.
Negar o projeto, recuar, no entanto, raramente é uma opção. Para conseguir manter alguma sanidade, Holden passa a se isolar. Depois do evento afetá-lo, ele se distancia de Bill, Debbie, Wendy, todos.
Os conhecimentos que eles deram são suficientes em sua cabeça. Ele precisa manter o foco nos serial killers, precisa testar sua capacidade e estratégias. Então ele se lança em um papel de vigilante de terno, caçando um diretor de escola bem suspeito. Armando uma emboscada ao estilo “Patrick Jane” de The Mentalist, ou do próprio Sherlock Holmes, para conseguir uma confissão de outro suspeito.
Cada tentativa, seja com sucesso ou fracasso, aumenta o peso sobre a equipe, arrisca comprometer os objetivos do trabalho. A distância só aumenta.
Bill, que fizera o arco oposto, percebendo seu limite no projeto, se torna um “maricas” aos olhos de Holden. O agente fala com seu veterano exatamente como o veterano falara em várias situações.
O próprio fim do relacionamento com Debbie ocorre através de uma dedução Sherlockiana. Ao perceber que o término é uma possibilidade real, ele o oficializa e se afasta antes que fique vulnerável. Sempre mimetizando outras personalidades.
A queda é tão vertiginosa que Holden não se sente compreendido por ninguém à sua volta. Apenas Kemper parece capaz de entendê-lo. Então, ele vai ao encontro do serial killer, hospitalizado. Se afastar do mundo é se aproximar do extremo.
Esse é o grande símbolo do abraço de Kemper em Holden. Há o medo, há a ameaça. Mas, acima de tudo, há o convite: venha para esse lado da realidade. Seja como um de nós. Se distancie de todo o resto.

#PraCegoVer: Duas imagens. Na primeira cena, Kemper abraça Holden. Na segunda, Holden no chão, tendo um surto após escapar do abraço de Kemper.
É quando Holden, tomado pelo medo, pira. Pira porque finalmente enxerga que se distanciou mais do que qualquer pessoa deveria. Porque vê onde essa distância levará.
Não sei o que nos reserva a 2ª temporada. A primeira temporada brilha, mesmo sem o mesmo alarde de outras séries, pois não é apenas a mente de serial killers que estamos estudando. É, principalmente, a mente de Holden.
Com isso, estamos nos estudando, homens. Nossa própria mente. É melhor nos aproximarmos, olharmos e ouvirmos com atenção. Pois o caminho do distanciamento pode não ter volta.
Você também pode ler outras análises de representações masculinas em histórias aqui. Para outros tipos de análise, pode seguir por aqui.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.