“Como tudo está estranho hoje! E ontem as coisas correram como de costume. Pergunto-me se terei sido mudada durante a noite. Deixe-me pensar: era eu mesma quando me levantei esta manhã? Quase recordo de ter me sentido um pouco diferente. Mas se não sou a mesma, a próxima pergunta é: quem sou eu?” – Dolores lê ‘Alice no País das Maravilhas’
Ato 01
Memória é um assunto recorrente na carreira de Jonathan Nolan. Em Memento, uma história curta que se tornou um longa dirigido por seu irmão, ela é crucial. Em Westworld, não poderia ser diferente.
Memórias não são apenas uma falha na programação dos androides, como uma criação de identidade e o desenvolvimento de uma consciência. Vão além disso: fazem com que os androides fujam de sua programação, pois a ação “lembrar” é algo que surge em uma consciência em desenvolvimento, que é justamente o ponto crucial do episódio.
Essas memórias acabam gerando uma ideia – e vemos isso em Dolores algumas vezes neste episódio – que faz o androide virar a esquerda quando sua programação e ciclo narrativo sempre o obrigou a virar a direita. Também vai além disso: faz o androide poder voltar pelo caminho que veio. Refazer esse caminho, como vemos Dolores fazer nesse episódio.
O que vai acontecer quando os androides desenvolverem uma consciência completa? Será que vão conseguir matar os convidados? Será que vão conseguir fugir?
Ato 02
Abrimos com Dolores, de volta como a protagonista. Está de novo com Bernard. Ele parece muito interessado em algo nela, em mudá-la. No fim, entendemos que ele quer sua liberdade, assim como ela.
Ele dá a ela “Alice no País das Maravilhas”. Ela lê o que está no início do texto em uma cena semelhante a Matrix, como se Bernard fosse Morpheus e Dolores, Neo. Mas em vez de uma pílula, ele oferece conhecimento. Esse conhecimento, você logo verá, será crucial para o que irá lhe acontecer.
Não é difícil notar o tratamento diferenciado concedido a Dolores. Não só uma atenção maior, mas carinho também. Por quê?
Mais tarde no episódio, percebemos que a relação deles é uma de pai e filho. Ele conta que um dia estava ensinando seu filho a nadar e ele agarrou seu braço enquanto praticava suas pernadas; ele não queria soltar o pai, nem este queria soltá-lo. Ambos estavam com medo. Ele comparou essa situação com a situação atual com Dolores. Afinal, ele está ensinando Dolores a ser livre… Mas está com medo de deixá-la.
Ele também parece muito curioso com o que está acontecendo com ela, e o modo como ela parece estar transcendendo sua programação mesmo em um ambiente como o laboratório, onde ele teoricamente exerce total controle sobre ela.
Na cena seguinte, a vemos acordando como tantas vezes antes. No entanto, dessa vez, ela encontra a arma em sua gaveta (a mesma que ela desenterrou no episódio anterior). Depois, se olha no espelho e uma voz surge: “você se lembra? ”. Ela lembra da cena do primeiro episódio. De novo o Man in Black em toda sua aura de mistério.
A arma vai representar um importante ponto de virada em sua vida.
Ligado a esse fato, vemos William defendendo uma donzela em perigo. Mas, antes, ele toma um tiro. De um anfitrião. Sim, inesperado. Até agora, pensávamos (pelo menos eu) que acontecia algo semelhante ao Man in Black – a bala acerta, mas não causa nenhum dano. Em William, o efeito é como uma bala de borracha.
Ou seja, os anfitriões podem não matar os convidados, mas certamente podem feri-los.
Mais tarde, Stubbs, do Departamento de Qualidade, fala a Leslie, do Departamento de Programação: “O que impede os anfitriões de nos matar é uma linha de código da programação de vocês.”
Parece implicar o seguinte: nossa segurança é uma linha tênue. Tênue demais. Será uma promessa?
Vemos cenas do primeiro episódio mais elaboradas. Descobrimos que Teddy é um caçador de recompensas. Encontra Dolores. Uma cena mais elaborada entre eles. Teddy fala em fugir com Dolores. Ele fala “um dia espero te levar lá.” Dolores parece reagir de uma forma inesperada, e notei que ela começa a perceber que há um ciclo (que será reforçado mais tarde), pois começa a notar que esse “um dia” jamais chegará (porque jamais chegou).
Vemos a cena dos bois soltos de novo. Mas antes de vermos sua conclusão, a tela fica preta, ouvimos gritos e cortamos para os bastidores.
De acordo com a cena seguinte, vemos que ele morre outra vez (como mil outras vezes). Ford afirma que é esse o objetivo de Teddy: ser um forasteiro “bad boy” que faz os convidados se sentirem bem ao matá-lo para ficar com Dolores. E que há algo em seu passado que o impede de ficar com Dolores.
É aí que Ford desenvolve esse passado, fazendo upload de uma nova história pregressa (backstory). Cria algo misterioso, que parece abrir as portas para o que irá acontecer no futuro, além de deixar várias perguntas no ar – quem é Wyatt? Quem são aquelas pessoas que atacaram Teddy na floresta, que pareciam indígenas?
Mudar a história pregressa de Teddy reflete na história com Dolores. Voltamos de novo ao fluxo narrativo dos dois. Vemos que agora eles se conhecem quando Teddy a protege de uns homens. Depois, ele tenta ensiná-la como se proteger. Mas ela mostra que não consegue atirar – pois não foi programada para isso. Como Stubbs diz em algum momento, só alguns anfitriões têm permissão para carregar armas; Dolores não parece ser um deles.
Teddy deixa isso mais claro ao falar: “Certas mãos não foram feitas para puxar o gatilho”.
Em seguida, Ford critica um dos funcionários que cobriu o androide, achando que ele podia estar com frio ou envergonhado. Ford diz que eles não sentem frio, nem vergonha. “Não sentem nada que não queremos que sintam”, ele diz enquanto corta o rosto do androide.
Ele reforça a Bernard que os androides não são humanos, esclarecendo a principal diferença entre os dois: enquanto Ford acha que eles não são humanos e nem podem ser, Bernard (ao menos com Dolores) acredita que os androides podem se tornar humanos.
Como Arnold.
Vamos abrir um parêntese aqui, como uma Crise antes do clímax.
Quem é Arnold?
Nos bastidores, Elsie (programação) comenta sobre Walter (você deve se lembrar dele como o androide que ficou louco e matou vários outros anfitriões fora de seu ciclo narrativo – mais especificamente, o androide que bebia leite sem parar). Havia vários anfitriões no bar, mas ele só matou seis. Mais importante, ele matou seis que o mataram em outros ciclos narrativos. Como uma vingança.
Ainda mais importante, durante sua matança, ele fala o nome de alguém que não está lá. Seu nome é Arnold.
Quem é Arnold?
Ford tinha um sócio, que nem mesmo Bernard sabia da existência (vimos até agora que ambos parecem bem próximos; por que isso seria um mistério, se não houvesse um motivo crucial para tanto?)
Algo ocorreu para os outros sócios apagarem os registros de Arnold; e Ford nunca os desencorajou. Ele deixa bem claro que era totalmente contra o que Arnold pretendia fazer; na verdade, ainda é. Afinal, o objetivo da sua empresa era montar um parque com humanoides programados para entreter e satisfazer as pessoas, não povoá-lo com androides presos em dilemas existenciais.
Depois do primeiro ano, os androides começaram a passar nos testes de Turing. Mas Ford afirma que Arnold não estava interessado só na aparência da inteligência. Ele queria algo mais. Ele queria inteligência de verdade; ele queria criar consciência – muito semelhante ao que vem acontecendo desde o início da série.
Ford fala que Arnold criou uma pirâmide para chegar à consciência: memória, improvisação, self-interest = egocentrismo(?) e, no topo… Ford não sabe.
Mas talvez Arnold soubesse.
De acordo com Ford, Arnold tinha uma ideia, e ela se baseava em um conceito chamado “mente bicameral”. Esse conceito nada mais é do que uma mente humana pré-consciência.
O conceito foi concebido por Julian Jaynes na década de 70. Nunca foi desbancada (como Ford afirma na série), apenas não foi provada. De acordo com o autor, a mente moderna com consciência é uma inovação. Nós nem sempre tivemos essa consciência, e ela aparentemente nasce com a linguagem.
Jaynes nota isso ao comparar “A Ilíada”, de Homero, escrito por “mentes não-conscientes”, com ausência de introspecção, e “Odisseia”, também de Homero, onde os personagens refletem sobre o que acontece em seu universo e agem conforme sua própria vontade.
A diferença crucial entre uma mente bicameral e nossa mente moderna é a introspecção (esta tem, aquela, não). Introspecção nada mais é do que um olhar interno para nossas experiências, um olhar mais aguçado para o que se passa em nossa mente. Como relembrar coisas. Ou antecipar eventos, prevenindo-os. Coisas que estão acontecendo no mundo de Westworld.
Para os estudiosos, “o surgimento da consciência é um upgrade no software mental dos humanos”. Software, não hardware. Hardware é algo físico (placa mãe, memória RAM, etc.). Software é como um novo sistema operacional. Não é um passo evolutivo propriamente dito, como o desenvolvimento do polegar. É mais um processo de aprendizado, que pode ser lento ou não (como o fogo ou a roda; mais especificamente, a linguagem). Como a inserção de novas histórias ou os devaneios que vimos no primeiro episódio. Ou outra coisa qualquer, que ainda não sabemos. Até mesmo a leitura de um livro pode funcionar – algo que Bernard vem fazendo bastante com Dolores.
Para Jaynes (aqui o conceito fica muito louco), a diferença crucial é mesmo a linguagem. Os humanos com mente bicameral não tinham consciência, não tinham em seu vocabulário o pronome “eu”, nem os outros pronomes; então, como não tinham um “eu-narrador” (que advém com o nascimento da linguagem) tomavam decisões a partir de uma voz externa (voz dos deuses) – como alucinações.
É um papo muito louco, filosófico-metafísico (inventei agora), mas é crucial para compreender a série. Porque ouvimos uma voz na mente de Dolores (e ouvimos, no episódio anterior, a voz na cabeça de Maeve). Seria o indicativo de um passo na direção da consciência? Afinal, vemos que os anfitriões têm essa mente bicameral, mas a passos lentos caminham para a criação de uma consciência.
Em essência, a mente bicameral afirma que os humanos precisam de um código melhor para funcionar como indivíduos ao invés de máquinas simples, que apenas buscam a sobrevivência. Ou os androides, que apenas se mantém em seus ciclos narrativos.
Enfim, Ford diz que Arnold morreu. A internet acordou na segunda infestada com teorias afirmando que Arnold = Man in Black.
Eu discordo.
Se eu fosse teorizar, diria que Man in Black não é Arnold, mas sim sua criação suprema. Ainda acho dúbio que o Man in Black seja de fato humano. Acho que ele é um androide que está querendo se libertar. Um androide já com consciência. Por qual outro motivo ele estaria atrás do labirinto?
O labirinto… O que sabemos sobre esse misterioso labirinto? Tudo que sei é baseado no trailer do próximo episódio.
É muito cedo para falar, mas talvez minha teoria faça mais sentido que a teoria generalizada de que Arnold é o Man in Black.
É só uma teoria. Sintam-se à vontade para refutar ou apresentar as suas.
Fechando Parênteses
Elsie e Stubbs encontram o androide que abandonou seu ciclo narrativo e se perdeu – o que chamam de desgarrado. Acham que ele teve uma ideia não programada. Se formos seguir a ideia acima, podemos pensar que ele está ignorando sua voz externa e criando a sua própria.
Cena seguinte com Dolores de novo. Vemos Elsie tentando ligar para Bernard, mas ele não atende. Ele deixou seu celular para trás ao ir ao encontro com Dolores. Por quê? Porque não quer que ninguém o monitore ou saiba sua localização (especialmente, Ford).
Pontos importantes desse novo encontro com Dolores:
“Quando eu descobrir quem eu sou, serei livre.”
Bernard pergunta: “Você continuará no seu ciclo narrativo?” Ela muda sua fisionomia, igual à de quando ela responde “você disse para não falar com ninguém”. Ela definitivamente está mentindo.
Ela volta à fazenda e começa a falar a mesma coisa sobre os bois. Mas aí para, como que pensando “de novo?”. Ou como sabendo o que vai acontecer em seguida.
Ela é levada ao celeiro (na cena original, é levada pelo Man in Black). Uma arma surge em sua mão (pensamos que ela pegou do coldre do homem, mas não faz muito sentido). Mira. Aguarda. O homem se transforma no Man in Black, como numa memória. Uma voz surge “mate-o”. Ela aperta o gatilho.
Percebeu como aquela cena com Teddy foi importante?
Vamos rever dois conceitos explicados nesse episódio:
- Stubbs (ou Elsie?) fala que só alguns anfitriões têm o privilégio de usar armas;
-
Teddy tenta ensinar Dolores a atirar, mas ela não consegue; não tem esse privilégio. Teddy fala: “Certas mãos não foram feitas para puxar o gatilho”.
Se você tem boa memória, lembra que no primeiro episódio vimos que só alguns anfitriões são programados para matar. Outros não têm essa programação. Mas, na última cena do episódio, Dolores mata uma mosca.
No primeiro episódio, ela foge de sua programação. Nesse terceiro, ela foge de sua programação ao criar sua própria narrativa. Afinal, ela seria estuprada ou morreria.
Em seguida, em frente à casa, ela prevê que sua ação irá desencadear determinada reação. Então ela decide agir de uma forma diferente. Ela se lembra. Ela se antecipa. Ela muda seu ciclo narrativo. De novo.
Uma teoria surgiu em minha cabeça escrevendo esse texto. Achei estranho a forma como a arma parecia estar no meio da palha. Então… se ela antecipa o que vai acontecer, ela pode ter pego a arma e plantado lá. Sabendo que seria levada ao celeiro, teria a arma em mãos e poderia se defender.
Se isso for verdade, abre um precedente para… viagem no tempo. Ou algo parecido.
De volta ao desgarrado. Stubbs desce e vê que a melhor forma de recuperar o anfitrião é cortando sua cabeça. Fica aqui uma pergunta: por que é mais fácil cortar sua cabeça do que levá-lo? Vimos que eles podem simplesmente desligar o androide. Ou será que só alguns funcionários têm esse poder?
O desgarrado reage a Stubbs. Machuca ele. Sobe e pega uma pedra. Elsie aciona vários botões em seu controle. Nada. O anfitrião está prestes a matá-la. Mas, de repente, começa a atingir sua própria cabeça e se mata. Será um protocolo de defesa? Ou essa é a programação caso algo assim aconteça?
Por fim, Dolores aparece onde William está com Logan. Ela, no fim, é também a desgarrada. Teve uma ideia e fugiu completamente de seu ciclo narrativo. Reagiu ao que sempre acontece e mudou seu “destino”.
Ato 03
Amigos e amigas, qual será a consequência disso para a história como um todo? Para Bernard e Ford? Para William e Logan? Para Dolores?
Ainda queremos entender qual o papel de William e Logan nesse meio, que aqui fizeram apenas figuração de luxo.
Queremos saber qual é a de Bernard. O que irá acontecer com Dolores, agora que ela pareceu fugir de seu ciclo narrativo, e como os bastidores irão reagir a isso.
E o Man in Black? Por onde anda? Por que não apareceu nesse episódio?
Será que, pela minha teoria sobre Dolores e a arma encontrada, veremos algo relacionado a viagem no tempo?
Se uma coisa é óbvia em Westworld é: nada é óbvio em Westworld.
E para não perder o costume…

Note como, à esquerda, o prédio tem a cor marrom claro e marrom escuro embaixo; exatamente como a roupa da mulher à sua frente. O mesmo ocorre com Teddy – o tom de sua roupa está mais para o cinza, mas seu chapéu é marrom, como o topo do prédio às suas costas.

Note como o cenário está cheio de coisas, sem aparentar estar cheio de coisas – o quadro negro e o que está escrito; os bonecos nas prateleiras atrás; alguns objetos sobre a mesa; uma lente de aumento.

Todos estão com a mesma paleta de cores, menos os humanos (de preto). Nessa cena, eles são os desgarrados.

O enquadramento ficou muito bom. E como é em ponto de vista, estamos vendo da mesma forma que os personagens. Estamos dentro dos bastidores.

Não precisa de explicações.

Sci-fi com filme de terror?
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Carioca, que abriu sua própria empresa para poder ter tempo de escrever e falhou miseravelmente. Uma pessoa intensa que encontrou na escrita a única forma de extravasar tudo que passa dentro de si.