Imagine um mundo de grandes desafios superados. Pessoas não passam fome, há poucas mortes por doenças, a vida passa como algo bom e garantido. É essa visão de mundo que Westworld apresenta em pequenas falas dos convidados, os humanos que trocam a aparente perfeição do mundo real pelo poder do mundo virtual criado por Ford e Arnold.
Talvez esse mundo perfeito seja a maior mentira e incongruência de toda a série. Quando você olha para Ford, acompanha MiB, assiste a alguém como Logan, se pergunta: é possível um mundo com homens assim alcançar a igualdade que eles narram existir fora do parque temático? Tenho certeza de que não.
Enquanto Westworld é aclamada por seus grandes feitos técnicos ou elogiada pelas personagens femininas que apresenta, parece passar batida a representação da masculinidade que é feita na série. Repare bem. São algumas das piores características frequentemente associadas ao masculino que mais aparecem em tela.
PODER E SOLIDÃO MASCULINA
Robert Ford, em tese, não é todo-poderoso. Há um conselho acima dele que pode (e deseja) retirá-lo do cargo. Alheio ao conselho, ele age conforme um deus, como o próprio fala algumas vezes, dobrando outros personagens a seus caprichos.
O acúmulo do poder, como de costume, é acompanhado de uma profunda solidão, que a incrível atuação de Anthony Hopkins nos permite alcançar. Ele mantém conversas frequentes exclusivamente com anfitriões – o antigo Bob e Bernard, basicamente. Seus sentimentos só escapam em micro expressões, em conversas tão íntimas que não passam de devaneios. Uma forte demonstração é a conversa com Dolores. Podemos dizer que conversar com uma androide, que tem a memória frequentemente apagada e sequer se lembra do histórico que envolve ambos é conversar consigo mesmo.
Onde está o sentimento de amizade de Ford? Se foi há mais de 30 anos, com a morte de Arnold? Ele é incapaz de gerar novas relações genuínas, novas amizades, de modo que seus outros contatos com humanos ficam restritos à buscas e/ou demonstrações de domínio.
É como um chefe de família ou dono de empresa que apenas manda e desmanda, perde a compaixão que o torna capaz de compreender aqueles à sua volta e em algum nível dependem de si. Ainda que elevada a algumas potências em cena, essa falta de compaixão é o que minimiza decisões tão graves como ordenar a morte de Theresa. O próprio Ford não é mais uma mera pessoa, no nível em que não diferencia o valor da vida virtual e da real, e isso não é estranho frente à solidão que ele sente em meio a outras vidas reais.
A esse empresário ou “chefe” de família, apenas amizades antigas (Bob ou Bernard) conseguem remeter a momentos mais humanos e frágeis, portanto só com eles há conexão de verdade. Só com eles emoções mais empáticas ou vulneráveis aparecem.
HOMEM QUE É HOMEM
A relação entre William e Logan representa muitas das relações reais entre homens. Existe uma cortesia superficial, um coleguismo, sempre travado e incapaz de se tornar uma amizade genuína – ou de reconhecer que não deve haver relação – pelas barreiras que o modelo de masculinidade impõe a todo homem desde o nascimento.
No caso, Logan é o padrão, William o “certinho”. O primeiro não consegue conceber um homem que não corresponda ao “Padrão Homem” como parte de sua família (e mais importante, de sua empresa). O segundo é o perfil da timidez e introversão desde cedo intitulada por rótulos, sobrepujada através do bullying (como loiro, magro e hétero, William ainda escapa de muitas formas que intensificariam esse bullying).
Então Logan assume como missão levar William ao local que o “transformará” em “homem de verdade”.
O resultado dessas reações é bem conhecido na série, com a virada de personalidade e até explosão de William. O tratamento dado a essa transformação é sempre da “libertação da sua verdadeira natureza”. Essa ideia é tão comum, mas tão comum, que me assusta como não se percebe a tremenda falácia nela.
Não temos como saber se William libertou sua verdadeira natureza, ou se qualquer homem que libera agressividade de modo instantâneo após um longo período está libertando qualquer coisa intrínseca. Não temos como saber, pois o evento ocorre em uma fase em que é impossível diferenciar o quanto da ação é “natureza”, e o quanto é “aprendizado”. Se todo homem que não é agressivo simplesmente não “liberou” seu potencial agressivo, é porque estamos estabelecendo, aqui e sempre, que todo homem sempre tem natureza agressiva. E se acreditamos nisso, acabamos ensinando ininterruptamente que a agressividade é a natureza do homem, para os homens e mulheres em formação (crianças).
Logan conhece a agressividade, convive com ela desde cedo, a nutre e manipula. É lugar comum para ele, que representa tão bem o modelo padrão de homem. Não soa estranho dizer que a agressividade é parte de sua natureza. Mesmo ele, no entanto, não sabe lidar com a explosão que é a liberação de William.
William não libera sua natureza verdadeira no episódio 9, ao matar todo o acampamento de confederados em volta de Logan. Ele é levado à agressividade, uma característica que nunca conheceu, e, portanto, não sabe usar ou canalizar. As únicas formas de agressividade que conhece são as que viu, provavelmente estereotipadas em mídias afins.
Repare, como você tem contato com a agressividade? Se não é em um ambiente controlado (como em uma academia de artes marciais), é provável que o maior contato com ela desde cedo ocorra vendo filmes e outras representações audiovisuais – ao menos para quem tem o dinheiro para ir a Westworld – ou em ambientes que desumanizam, como a guerra. Essas mídias e ambientes não mostram a agressividade de forma madura ou equilibrada, mas estereotipada e caricata. Sendo a única forma que William tende a conhecer, será a única forma que ele saberá reproduzir.
O que acontece quando o homem que nunca viveu essa agressividade tem ela liberada de repente, após grande acúmulo e pressão, sem dosagem? William acaba reproduzindo tanto a sua forma caricata de violência que ela se torna parte de sua natureza. Não porque necessariamente nasceu com ela, mas porque não foi ensinado sobre o caminho de volta.
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COMPETITIVIDADE DO HOMEM
A caracterização se associa diretamente ao clima de eterna competitividade entre os homens. Em um ambiente como o Velho Oeste, a principal forma de se mostrar “mais homem” é atirando. Não faltam tiroteios em Westworld. Ainda que Armistice e Dolores tenham merecido lugar entre as mais hábeis atiradoras da história, são os homens que costumam se divertir com esses momentos. MiB, Logan, o convidado que aparece com a esposa no primeiro episódio e mata Hector, William eventualmente. Em contraposição, apenas uma convidada no episódio 2 mostra gosto pelos tiroteios.
Logan “mede” William ao longo dos episódios, estimulando essa competitividade ao ver se o parceiro está agindo conforme espera. Os gestores do parque provocam os convidados, sempre buscando alimentar a sensação de desafio antes de entregar vitórias de bandeja, sem que os pagantes percebam, como no eterno roubo do cofre do Mariposa.
O próprio Lee Sizemore, como chefe criativo, cai em desgraça tomado pela competitividade – seu maior problema é ter em Ford um adversário na função.
A cultura em torno da competitividade cria homens imaturos para lidar com dificuldades e derrotas, como é o caso do próprio Sizemore. O mundo pertence a este homem, ele é o melhor, e por algum capricho não é reconhecido como tal. A reação? Enlouquecer, se embriagar, culpar tudo e todos, mijar na maquete virtual em público, jamais olhar internamente e desenvolver as perguntas necessárias. Por que caí? Como sair desse ciclo de competição inexplicada em que fui inserido? Quem quero ser quando me levantar?
CULTURA DO ESTUPRO
Uma das grandes reflexões de Westworld é sobre a diferença da nossa vida em comparação à vida dos anfitriões. Não o fato de sermos humanos e lá viverem androides, mas o fato de levarmos nossa vida de forma similar aos ciclos narrativos. Seguimos conduzidos por dias iguais aos outros, com pequenas improvisações, pequenos acasos, raros questionamentos. Quase à deriva.
As pessoas do mundo real (da série) tem no parque temático, em tese, a libertação de seus próprios ciclos narrativos. Pagam caro para usufruir da liberdade em um ambiente de outra época. Quão assustador é que essa liberdade seja, paradoxalmente, se deixar dominar por instintos e reflexos de violência, no lugar do domínio da rotina ou das leis e convenções sociais?
A principal demonstração da “liberdade” em Westworld é a banalização do sexo e do estupro. Convidados chegam aos montes direto rumo ao bordel ou ao modo mais rápido de estuprar uma donzela (geralmente Dolores). O que isso diz sobre os homens? Mesmo em uma cena de sexo como a de Maeve, onde ela deseja ser morta por seu objetivo maior, que envolve acordar no centro de reparação dos anfitriões, a forma como ela morre só é possível pois um homem é facilmente provocável ao ponto de matar uma mulher com as próprias mãos.
Em sua busca pela “natureza” de William, Logan estimula que esse faça sexo com anfitriãs do bordel, com Dolores, até que seja violento com elas, desde que seja alguma forma de relação que mostre desapego, que não mostre amor. Se formos lembrar que William é noivo da irmã de Logan, fica claro o pouco valor que a mulher ainda tem no imaginário do homem. A própria irmã pode ser traída, desde que seja numa demonstração “máscula” de William (isso porque em Westworld o mundo evoluiu… sei).
Poderia ser criado um parque temático onde pessoas de fato vivam por alguns dias uma vida diferente. Mas o parque criado oferece poucas opções de vida, realmente. Parece que um convidado, ao chegar, pode apenas buscar sexo como quiser e atirar em alguns androides. É adentrar numa versão anterior de mundo, menos evoluída, e manipulada para ainda menos controle e “prestação de contas”, de forma que um crime como o estupro deixe de ser crime – afinal, são androides, não humanos.
A pintura feita sobre o homem em Westworld revela não um anseio por liberdade real, mas por se deixar dominar. É abdicar do controle sobre a própria vida, que por alguns dias fica à mercê apenas dos instintos e dos aprendizados inconscientes. Ao invés de assumir controle total, diminuir a influência do ambiente externo sobre sua vida por alguns dias, o homem que vai à Westworld busca reduzir suas possibilidades, agir no automático, o exato contrário de obter mais controle.
MASCULINIDADE E A FALTA DE HOMOSSEXUALIDADE
Já tratamos aqui sobre como homem não é sinônimo de heterossexual. O sexo de nascença ou o gênero de identificação não representam a orientação sexual de uma pessoa. Ainda assim, nesse “evoluído” mundo futurista da série, apenas um personagem masculino demonstra desejos homossexuais: Destin, o funcionário que também curte necrofilia.
A série consegue retratar a homossexualidade associada apenas a um personagem que causa nojo, tanto pelos enquadramentos escolhidos como pelos outros desejos sexuais criminalizados que ele nutre. O que isso diz sobre a visão dos autores quanto a homossexualidade?
QUAL A NOSSA REFERÊNCIA PARA A MASCULINIDADE?
O que mais me assusta ao pensar no tema a partir de Westworld é me questionar onde estão as boas referências de masculinidade.
As características mais nobres parecem vir não dos homens humanos, mas dos anfitriões. Teddy é motivado basicamente por Dolores, mas não deixa de combater a ideia de abuso quando lembra das atrocidades de MiB para com a donzela e o confronta.
Bernard é extremamente gentil. Quando descobre sobre o domínio que sofre, é convicto em sua busca por liberdade, tendo a coragem de confrontar seu dominador e criador (Ford). Mas mais interessante é a coragem que apresenta em enfrentar suas dores, as agruras que encarar as memórias escondidas por Ford revelam. Encarar seu íntimo, ao invés de escondê-lo como fazem os homens com bebidas, tiros e sexo em meio a um mundo de terra.
Hector é líder de uma gangue de ladrões, um líder sem qualquer vergonha do poder de Armistice dentro de sua equipe, ou de seguir Maeve quando confrontado com sua realidade de subjugação.
Talvez eles consigam ser boas referências pois não foram criados para cumprir papeis de homens, como nós somos, como são os convidados do parque.
Eles foram criados para cumprir papeis que servem à narrativa, antes de tudo. Nos dão duas grandes lições: ao servir e ao questionar o domínio das vozes em suas cabeças. Nossos ditos instintos, nossa “verdadeira natureza”, nada mais são do que essas vozes, esses devaneios nos comandando reagir, jamais pensar. É delas que precisamos nos libertar, revendo a masculinidade tóxica que aprendemos a reproduzir.
Afinal, “estes devaneios violentos têm fins violentos”.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.