Nota: o texto contém spoilers do filme “Corra!” (Get Out), como você pode imaginar.
A primeira cena de um filme de terror ou horror é sempre uma demonstração do próprio elemento que levou a audiência até a sala de cinema. O susto somado à morte da cuidadora de idosos japonesa na primeira cena de “O Grito” é um perfeito exemplo dessa marca do gênero terror.
É assim com a primeira cena de “It: A Coisa” e a morte de Georgie. O início de “Jogos Mortais” estabelece Adam e Gordon já capturados pelo vilão. “O Chamado” começa com a maldição dos sete dias fazendo sua primeira vítima do longa.
Essa tradição do gênero existe por alguns motivos. Primeiro, ela estabelece bem cedo um “payoff”, a recompensa que o público do gênero terror espera, aumentando a satisfação. Filmes de terror têm seu sucesso medido pelo nível dos sustos e/ou do medo provocado. A falta desses elementos no início do filme pode entediar esse público. Então uma certa competição pela “melhor primeira cena de terror” acontece dentro do gênero.
O segundo motivo que vale destacar é que essas primeiras cenas sempre funcionam para estabelecer o valor da história, e gerar sua primeira mudança. Digamos que você não saiba que verá um filme de terror. Ao ingressar no cinema, a primeira cena, em tese uma apresentação, já termina com um acontecimento de horror, uma provocação de pavor. Mesmo para a audiência “avisada”, a tensão era somente uma promessa, e ao final da primeira cena, está realizada. A abertura acaba por sempre cumprir o objetivo principal da maioria das cenas: mudar o valor da história.
Robert McKee trata sobre esse conceito em Story, definindo uma cena como uma ação que representa um conflito e que resulta na mudança de valor na condição de um personagem.
O ideal é que toda cena seja um evento da história.
Por evento da história, McKee está falando de qualquer situação que gera essa mudança de valor.
A luta final de qualquer filme de Rocky Balboa representa bem a mudança de valor. A competição resulta em vitória ou derrota. Seja qual for o resultado, uma mudança de valor foi conseguida.
Michael Corleone passa por várias mudanças de valor: medo de perder o pai, vingança dos que tentaram assassiná-lo, amor e casamento na Sicília, dor pela perda da esposa, aceitação em se tornar o Don, consumação do seu poder matando os chefes das outras famílias.
Uma mudança de valor pode ser sutil como ir da felicidade à tristeza, ou trágica como um personagem perdendo a vida (vida/morte).
Os filmes de terror absorvem esse conceito, e o resultado de suas aberturas é de uma mudança de valor para o medo, geralmente a partir da curiosidade do público e ignorância/ingenuidade dos personagens iniciais.
“Corra!” não é diferente nessa tradição do gênero.
Você está lá, tranquilo, de boa na lagoa, andando na rua (ou assistindo um filme), até que é sequestrado. Digo, se você for um homem negro (posteriormente descobrimos que mulheres negras também são alvos).
Omiti uma parte da definição de McKee sobre cena de propósito. Ela é a ação que “…transforma a condição de vida de um personagem em pelo menos um valor…”
A cena inicial aqui estabelece o valor do medo ou pavor, e ao mesmo tempo o valor do conflito entre supremacistas brancos e pessoas negras, envolvidos no tema do racismo. Nós ainda não entendemos perfeitamente o peso desse evento, mas já sentimos o valor do racismo embutido na cena (com a ajuda do carro, totalmente branco).

Descrição da imagem: Andre anda na calçada, seguido por um carro branco desconhecido, à noite.
Muitas cenas provocarão essa mudança de valor de forma evidente. São as viradas de atos ou o próprio clímax final. A revelação de Rose (Allison Williams), por exemplo. Quando Chris (Daniel Kaluuya) descobre que ela era parte do plano da família Armitage, ele encara e ainda se recusa a aceitar a verdade: a única pessoa que ele acredita ter na vida o enganou desde o início. Pior, o enganou buscando sua própria vida como preço. É uma virada extremamente brusca, com valores de confiança e amor sendo estraçalhados. Medo e traição tomam conta.

Descrição da imagem: três cenas. Na primeira, Chris, pedindo a chave do carro à Rose. Na segunda, Rose, revelando que já tinha a chave e não pode dá-la. Na terceira, Chris, com a mão no rosto, entendendo sua situação.
A cena onde Chris é hipnotizado pela primeira vez por Missy, a mãe (Catherine Keener), é outro exemplo claro. O protagonista sai de estranhamento e susto pelo passeio fora da casa para o embaraço de ser chamado pela mãe para uma conversa. Na mesma cena o embaraço se transforma em pavor graças à hipnose e o “Sunken Place” (lugar submerso, em tradução livre). Na cena seguinte, Chris acorda na cama e seu estado já mudou para dúvida sobre se aquilo aconteceu. Uma cena que já começa mudando o valor da anterior.
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Não é à toa que McKee defende que cada cena seja um evento da história, uma ação que transforme valor. Ao menos para histórias que seguem a estrutura narrativa mais comum, início, meio e fim.
Essas histórias movem personagens e nos movem de A para Z. Elas precisam traçar caminhos para chegar lá. Talvez a primeira cena de uma história vá de A para B, e estaremos mais perto de Z assim. Ou vá direto de A para E. O tamanho do passo não importa aqui.
A questão é, qual o propósito de uma cena que comece em J e termine em J? Que não avance a história?
A cena expositiva
É grande a chance de que uma cena que não avance a história seja “mera exposição”. Filmes e séries tentam fugir dessa situação, que já se tornou uma marca do que não fazer.
Contudo, uma história é capaz de sobreviver sem algum nível de exposição? Imagine assistir a qualquer Guerra nas Estrelas (Star Wars) sem as palavras inicias subindo na tela. Ou “Senhor dos Anéis — A Sociedade do anel” sem a narração inicial de Galadriel (Cate Blanchett).
A exposição existe para cobrir a falta de informações que o público tem sobre a trama. Uma falta que talvez não consiga ser suprida se apenas os momentos mais dramáticos forem apresentados. Ela alcançou, então, um status de mal necessário. É trabalho de roteiristas e produções criarem formas de reduzirem as exposições ao mínimo necessário. Torná-las divertidas ou dramáticas, se possível.
É comum ver filmes como Missão Impossível trabalharem com cenas que explicam planos, como Ethan Hunt (Tom Cruise) se preparando para a tal tarefa impossível para conseguir um artefato ou informação sem o qual o vilão não será vencido. Essas cenas são naturalmente chatas, então roteiristas as enchem de piadas ou de flertes entre Ethan e seu par feminino no filme.
Elas podem ser bem conduzidas, no entanto. Como nessa cena de “A Chegada”.

Descrição da imagem: Louise escreve no quadro a pergunta “Qual o seu propósito na Terra?”
Louise (Amy Adams) explica para o Coronel Weber (Forest Withaker) por que é necessário ensinar vocabulário básico para os alienígenas. O público precisa dessa mesma explicação. Porém, o contexto da cena é de pressão dos chefes do coronel por resposta, e a consequente incredulidade da necessidade de se ensinar nomes e pronomes. O sucesso que Louise obtém ao explicar o conceito é uma tomada de confiança. Portanto, há uma mudança de valor: pressão e desconfiança viram tempo e confiança. A cena se torna relevante.
Outros filmes como “A Rede Social”, com basicamente todas as cenas de litígios e negociações de acordo, apresentam exposições de maneiras criativas e até brilhantes.
Em “Corra!”, talvez a exposição mais explícita se dê quando Chris está preso à poltrona de algodão (o algodão não é uma coincidência, sendo um dos grandes símbolos de plantações com trabalho escravo nos EUA). O cego Jim (Stephen Root), que receberá seu corpo, aparece na TV explicando o procedimento.

Descrição da imagem: Jim, na tv, explicando o procedimento para Chris.
Jordan Peele, roteirista e diretor do filme, precisava trazer para o público o conhecimento sobre como pessoas brancas assumiam os corpos de pessoas negras. Então a cena apresenta uma justificativa: os corpos “recipientes” aceitavam melhor a nova mente quando essa explicação ocorria. Ainda assim, a cena é um pouco chata, pois a justificativa não se conecta bem ao tema do filme, portanto, não consegue mexer com os valores da história.
A cena melhora quando Chris pergunta, por que pessoas negras? Entendemos o real propósito daquela comunidade e de Jim, ter “seus olhos”, intensificando a incredulidade de Chris quanto à loucura de tudo aquilo.
No entanto, essa exposição não alcança uma mudança de valor simultânea tão forte quanto o exemplo de A Chegada. Em parte porque o maior objetivo de Peele ali era a metáfora ao racismo da nossa realidade, a partir da negação de Jim de seu próprio racismo. Mas esse papo aprofundamos em outra oportunidade.
A cena de apresentação
Existem muitos tipos de cenas que podem ser destacados aqui, mas pensando em valor e estabelecimento de história, creio que apresentação deva ser a última. Não estou falando aqui da abertura do filme, mas de qualquer apresentação. E nesse momento, “Corra!” brilha.
Vamos a partir da pós-abertura. Vimos o sequestro de um rapaz negro, Andre. O filme mostra uma floresta, na visão de um carro em uma estrada. Duas coisas acontecem aqui. A primeira, uma música africana (Sikiliza Kwa Wahenga) toca. Nossa falta de costume de escutar músicas africanas ajuda a tornar a percepção desse som como “exótica”, o que auxilia a ambientação do filme que tem elementos surreais. Além disso, a música africana mostra que esse “misticismo” será visto a partir de uma perspectiva negra.

Descrição da imagem: Visão da floresta na introdução do filme
O segundo significado aqui, que é uma teoria minha, é que essa cena representa Rose fazendo o caminho da casa Armitage até a cidade de Chris, rumo a fazer sua próxima vítima. Não precisa ser o dia da viagem especificamente, nada é estabelecido temporalmente.
Então saímos da floresta, ainda nos créditos iniciais, e vemos uma fotografia de Chris em seu apartamento. Uma montagem segue mostrando outras fotografias, espalhadas pelo apartamento, até que o protagonista apareça.

Descrição da imagem: fotografia de uma comunidade negra americana no apartamento de Chris.
Primeiro detalhe relevante de sair da floresta para o apartamento: a música mudou (Redbone, escute. ESCUTE). A mudança da música é uma mudança de tema. Essa cena não apresenta os mesmos elementos, o mesmo propósito, que a cena anterior, da floresta.
O importante de perceber isso é que o contrário também será relevante. Ou seja, tudo que aparece ao som da mesma música está inserido no mesmo tema.
Voltando, vemos as fotografias, vemos Chris.

Descrição da imagem: Chris em frente ao espelho.
Então bum, vemos Rose.

Descrição da imagem: Rose escolhendo doces.
A música continua (Redbone).
Quando entrou a música que representa o “mundo de Chris”, o primeiro elemento de destaque foi a fotografia, o último foi Rose. Todos os outros elementos como seu cachorro vieram depois, sem destaques, sem closes, em meio a diálogos. Fotos e Rose são o mundo de Chris, são sua vida. É um estabelecimento fortíssimo de valor na história.
Agora perceba como isso se conecta ao final. Ao fato de Chris conseguir matar toda a família Armitage, mas não conseguir matar Rose. Enquanto isso, o refrão da música grita “Stay woke!” [permaneça acordada(o)!]. Todos os significados essenciais do filme estão nessa apresentação.
Rodada bônus: Rose é o grande plot twist de “Corra!”. Existem várias formas de perceber, ou ser enganado, em um plot twist. Uma das formas mais interessantes de tentar adivinhar é com o figurino.
Primeiro Chris:

Descrição da imagem: duas cenas com Chris, mostrando sua roupa azul.
Sua cor principal é o azul, misturada ao cinza, sem grande contraste, dando um tom de azul escuro.
Agora, a comunidade supremacista branca que engloba a família Armitage:

Descrição da imagem: membros da comunidade branca do filme ao redor de Chris. Setas apontam para as peças vermelhas nos figurinos da comunidade.
Repare que o elemento comum de praticamente todos os figurinos é a presença do vermelho, indicado pelas setas em detalhes como aros de óculos, gravatas e outras peças de roupa.
Agora vejamos a evolução do figurino de Rose:

Descrição da imagem: quatro cenas mostrando Rose com diferentes figurinos.
Ela começa no azul de Chris, como a namorada em quem ele confia (e nós também). Sua segunda cor é o roxo. Além de ser uma cor que representa mistura de azul e vermelho, é a cor da morte no cinema. Provavelmente uma dica de Peele de que a personagem morreria mais tarde.
O terceiro figurino tem o… vermelho. Bastante. É com essa roupa que ela manipula Chris durante a festa, o afasta para que ele não veja o “bingo”, e finalmente os segredos da família Armitage são revelados. O mesmo vermelho que vimos usado pelo resto da sua comunidade.
No final, já estabelecida como a grande vilã, ela assume a roupa de maior supremacia… branca. Estávamos falando sobre valor na história, não é? O valor está traduzido no figurino, e sequer precisou ser um filme de época.
Por último, o ainda não citado, nosso melhor amigo, Rod (LilRel Howery):

Descrição da imagem: Rod ao telefone, falando com Chris.
Azul, como Chris. Obrigado, Rod.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.