Nota do autor: o texto contém spoilers da 5ª temporada de Game of Thrones e do quinto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo.

Em 2016, a série Game of Thrones viverá o maior desafio de uma obra adaptada em toda a história: desgrudar-se da saga original e seguir à frente desta.

O Desafio

O mundo das artes não está familiarizado com a adaptação de trabalhos não terminados. Originais inacabados, quando publicados, geralmente o são no estágio em que foram interrompidos – muitas vezes por morte do autor. Houve casos em que outros profissionais completaram o original, mas raramente as produções sofreram adaptações.

Uma exceção é a história “The Mystery of Eldrin Wood”, de Charles Dickens, cuja intenção era publicar doze volumes. O autor, no entanto, morreu após o sexto livro, causando uma interrupção na história que tornou eterno o tal mistério de Eldrin Wood. Motivo? Seu assassino não foi revelado a tempo. Os volumes foram adaptados para um filme e um musical no qual cabia ao público escolher quem era o assassino.

A série da HBO, no entanto, vive situação inédita. A obra original, As Crônicas de Gelo e Fogo, permanece em produção, rumando para o sexto livro (de sete prometidos). O autor George R. R. Martin não se intimida pela pressão de escala global que sofre de fãs e imprensa para acelerar a entrega dos livros. Apesar da promessa recente de se esforçar para entregar Ventos de Inverno antes da exibição da 6ª temporada, o ritmo de Martin contribuiu para o que era inimaginável no início da série televisiva: ao final da 5ª temporada, dia 15/06, a adaptação alcançou a cronologia das publicações.

As críticas

Os produtores já puderam sentir na pele parte do desafio de 2016. O arco (enredo) de Bran Stark alcançou os livros já na 4ª temporada, resultando na decisão de dar um “ano sabático” ao personagem – fazendo os fãs da série que não leram os livros se perguntarem: “o que aconteceu com Bran?”. Os arcos de Stannis Baratheon e Sansa Stark ultrapassaram ou mesmo divergiram dos livros no início ou ao longo da 5ª temporada, concentrando-se neles as maiores polêmicas.

Sansa e Theon

Fãs de Game of Thrones se dando as mãos, à espera da 6ª temporada.

Cada desvio que a série toma em relação aos livros ocasiona uma enxurrada de críticas, como no caso do estupro sofrido por Sansa. O próprio Martin respondeu sobre o caso, esclarecendo que uma adaptação não deve ser idêntica ao original e que é impossível adaptar seus livros fielmente.

Algumas das revoltas são frutos de puro apego dos fãs às crônicas, como as recentes críticas às decisões de Stannis. Dentre os fatos que (ao menos ainda) não ocorreram nos livros, o desenrolar mais surpreendente da série foi quando Shireen (filha de Stannis) foi queimada na fogueira. Prato cheio para o desespero dos leitores mais apegados à família Baratheon, com frases como “Stannis jamais faria isso nos livros!”.

Stannis hater

Se Arya estiver procurando por um novo nome para sua lista, tenho algumas sugestões: Stannis Baratheon (8x)

Dificuldades logísticas à parte (já que Shireen não está junto do pai nessa etapa dos livros), a premissa para a revolta é equivocada. O Stannis da série, especialmente ao longo da 5ª temporada, foi construído em direção à decisão de acatar a ideia de Melisandre e queimar a própria filha em nome de uma vitória na guerra. Inúmeras cenas desenvolvem o desespero do personagem, a perda de controle, das esperanças, o enlouquecimento interno, até a tomada da trágica decisão.

Ainda que o Stannis da série tenha diferenças para o original, também é uma premissa complicada achar que o sobrevivente dos irmãos Baratheon jamais tomaria tal decisão nos livros. O personagem não tem POV (point of view, ou ponto de vista, a técnica narrativa usada por Martin, onde cada capítulo é contado pela visão de um personagem específico).

Primeiro, enxergamos Stannis no livro pelos olhos de Davos, amigo e maior devoto do pretendente ao trono, além de bastante afeiçoado a Shireen. É difícil imaginar que Davos ache concebível a decisão que Stannis tomou na série, portanto, dicas desse rumo simplesmente não conseguem surgir em seus capítulos. Depois passamos a enxergá-lo pelos olhos de Asha (algo que não acontece na série), e o distanciamento não permite ver o desenvolvimento de uma decisão como essa.

GoT-S5E10-Stannis

Ainda bem que morreu, depois do que fez! Ou não morreu?

A dúvida

Misturando esse apego dos fãs aos livros, ao real fracasso de parte das adaptações – como o decepcionante arco de Dorne na última temporada – fica a grande dúvida: os produtores são capazes de tocar a série, sem um livro pronto como base? Mesmo que Martin consiga entregar o sexto livro a tempo, o lançamento deste não teria a velocidade de distribuição para ser completamente usado nos roteiros, na preparação de elenco, na produção dos episódios. Também não alcançaria os fãs, em escala mundial, com a velocidade dos episódios da HBO. E sequer começamos a falar do sétimo livro e da 7ª temporada…

É conhecido o fato de que Martin contou a David Benioff e DB Weiss (produtores do show) o que acontece até o final da história, e eles têm a liberdade criativa para fazer a série seguir – e mesmo a necessidade, já que não há orçamento no mundo capaz de adaptar as Crônicas com perfeição -, contudo, as frases de impacto, as reviravoltas chocantes, não estarão lá, escritas, na hora de dirigir as cenas mais difíceis. Todas as cenas realmente marcantes, que ficaram na memória das temporadas, estiveram nos livros: morte de Ned, Casamento Vermelho, morte de Joffrey, de Oberyn, e o recente final de Jon.

Olly esfaqueando Jon

Jon morreu? Só saberemos em 2016…

A partir de 2016, seremos todos Jon Snow’s: não saberemos de nada. Depende de Benioff e Weiss determinar se o desafio, digno d’A Muralha, será a glória da série, ou a tragédia.


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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