Jordan Peele estreou no cinema com “Corra!”. Uma estreia desse porte poderia criar sobre ele uma expectativa impossível de ser superada.
Ou ele poderia fazer um filme como “Nós” e deixar a gente impressionado pela segunda vez. “Nós” (“Us”, no título original, fazendo também referência ao nome dos EUA em inglês, “United States”) ficou na minha mente por um bom tempo após o lançamento.
Com todos os simbolismos que o filme carrega, com as inúmeras pistas pagas com precisão nas recompensas, o que mais me travou no filme foi pensar na protagonista Adelaide (Lupita Nyong’o). Por causa do plot twist no fim? Sim e não.
Spoilers daqui em diante.
No final de “Nós”, o plot twist inicialmente tem aquele efeito que vemos em histórias como “O Sexto Sentido” ou “Clube da Luta”. Descobrimos que Adelaide e Red as duas personagens “siamesas” interpretadas por Lupita, estão trocadas. Ainda crianças, quando se encontraram na casa de espelhos, Red capturou Adelaide, a prendeu no subterrâneo e trocou de lugar com ela na superfície.
Durante o filme, torcemos pela “protagonista errada”. Torcemos por Adelaide, esposa e mãe que só quer proteger sua família e que teme sua “sombra” desde que passou pela casa de espelhos. No fim, descobrimos que ela na verdade nasceu como Red, trocou de lugar com a verdadeira Adelaide e somos obrigados a rever todos os eventos da história em nossa cabeça.
No entanto, vamos pensar bem sobre esse efeito. Estávamos de fato “torcendo errado”?

É verdade que Red, ainda criança, ao trocar de lugar com Adelaide, assume um papel que costumamos associar a vilões. Adelaide era uma criança inocente, alheia a todo o passado de experimentos que criou as sombras no subterrâneo. No entanto, e no presente? Daqui em diante, vamos seguir um combinado.
Vou escrever “Red/Adelaide” para mencionar a criança Red que se torna a Adelaide adulta. No caso contrário, a criança Adelaide que é raptada e se torna a Red adulta, usarei “Adelaide/Red”. Vamos seguir a ordem cronológica de suas vidas.
Red/Adelaide é a protagonista que acompanhamos ao longo do filme. Ela se tornou esposa e mãe. Conseguiu nutrir uma família comum, saudável, daquelas que costumamos desejar ou entender como desejável desde crianças. Ter amigos. Viajar em férias de verão.
Quando a família é atacada por suas sombras, temos empatia por Red/Adelaide, pois seu objetivo é primal. Sua sobrevivência e a de quem ama. Seu objetivo é legítimo e tem valor positivo.

Só que o mesmo ocorre do outro lado. Adelaide/Red, raptada e trocada de lugar ainda criança, é a vilã em nosso ponto de vista até que o plot twist ocorra. Nesse ponto, revemos todo o filme, revemos porque a julgamos, entendemos sua inocência quando criança. Entendemos seu desejo por reconhecimento e dignidade humana para ela, sua família e todas as outras sombras. Entendemos seu desejo por vingança. Ela se torna merecedora de nossa torcida, pois seu objetivo é voltar à superfície. Voltar a viver a vida que é originalmente dela.
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Ainda assim, Adelaide/Red está atacando a família por quem aprendemos a torcer ao longo do filme. A família das sombras não ataca apenas a protagonista, ataca Gabe (Winston Duke), o marido, Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex), os filhos. Os três são inocentes, não foram trocados quando crianças.
Já do lado de Red/Adelaide, ela “traiu” nossa confiança por ter trocado de lugar com a menina inocente do início.
Por quem devemos torcer então? As duas têm objetivos legítimos, positivos. As duas matam em nome de seus objetivos. As duas são justificáveis. Na verdade, quando pensamos em por que devemos torcer para uma, percebemos que os mesmos motivos devem nos levar a torcer pela outra.
O que o plot twist faz não é exatamente ressignificar todos os eventos por uma troca de sentido completa da torcida. Ele ressignifica todos os eventos equilibrando as motivações e conflitos de ambas as personagens. No fim, não sabemos para quem torcer.
Podemos aprofundar essa conclusão para perceber como isso não ocorre à toa. Apenas uma comparação de motivações e conflitos é capaz de nos proporcionar protagonistas e antagonistas que dividam a nossa torcida?
Para construir essas duas personagens e alcançar esse efeito, é necessário construir uma personagem só. Uma personagem que possa ser projetada em duas telas, uma em frente à outra. Christopher Vogler e outros autores falam sobre o arquétipo da Sombra em livros como “A Jornada do Escritor”. Contudo, essa construção psicológica da protagonista vem de antes. É a concretização de algumas ideias de Carl Jung.
Infelizmente não há dúvida de que o ser humano é, no todo, menos virtuoso do que imagina ser. Todos carregam uma sombra, e quanto menos ela está embutida na vida consciente do indivíduo, mais escura e densa ela é. Se uma inferioridade é consciente, a pessoa sempre tem a chance de corrigí-la. Além disso, ela estará em contato com outros interesses, então é continuamente sujeita a modificações. Mas se é reprimida e isolada da consciência, ela nunca é corrigida.
Carl Jung, “Psicologia e Religião”
Jordan Peele desenha os personagens de “Nós” como personificações das ideias propostas por Jung. Luz e Sombra são partes de uma mesma pessoa. A sombra reside no inconsciente, fadada ao desconhecimento. Mas ela é parte integral do ser.

Quanto mais reprimida essa sombra, mais escura ela se torna. É exatamente a repressão a que são submetidas as sombras do filme, criadas por experimentos desconhecidos ao público na superfície. Nem as próprias sombras sabem exatamente suas histórias de criação.
Seus movimentos, copiando os movimentos dos corpos na superfície, são erráticos, descoordenados. As sombras não têm a chance de serem corrigidas, como seus movimentos exemplificam.
Quem tem movimentos mais precisos e alguma capacidade de fala? Adelaide/Red. Porque ela não nasceu como sombra. Suas capacidades são reprimidas a partir da troca, como são todas as sombras desde o nascimento. Essa dinâmica torna concreta o quanto essa repressão é prejudicial na construção do ser, à medida que atrofia as capacidades a princípio plenas da Adelaide criança.
No outro andar, Red/Adelaide passa pelo processo contrário. Ela é a sombra tornada visível na luz. Suas incapacidades passam a ser corrigidas. Ela não sabe falar, por exemplo, até que aprende.
Mas nenhuma das duas facetas dessa mesma mulher protagonista têm acesso a um estado de equilíbrio. Adelaide/Red se torna uma sombra que subjuga seu potencial mais consciente. Sua voz, por exemplo, se torna gutural.
Red/Adelaide amassa sua sombra em um baú em sua mente, portanto, mesmo aprendendo a falar, sua habilidade de comunicação permanece incompleta, como uma pessoa introvertida.
O fato de o homem ter um lado sombrio é terrível, convenhamos, pois esse lado não é feito apenas de pequenas fraquezas e defeitos estéticos, mas tem uma dinâmica francamente demoníaca. É raro que o homem, o indivíduo, saiba disso. Parece-lhe inconcebível que possa, em algum ponto ou de alguma forma, exceder-se a si mesmo. Mas se deixarmos que esses seres inofensivos formem uma massa, em determinadas circunstâncias essa massa pode dar origem a um monstro delirante. Cada indivíduo não passará, então, de uma célula minúscula no corpo do monstro; querendo ou não, já não terá outro jeito senão participar do desvario sanguinário da besta, apoiando-a na medida de suas forças.
Carl Jung, “Psicologia do Inconsciente”
Nesse problema da “falta de equilíbrio”, Peele constrói o monstro delirante que faz rodar toda a trama do filme. A comunidade de sombras se revolta, executando o plano de Adelaide/Red, e cria o tal desvario sanguinário na superfície. As sombras, eternamente reprimidas, não surgem em busca de equilíbrio, mas de substituir as consciências que residem na luz, na superfície. As sombras se tornam a massa de que Jung fala.
Essa massa monstruosa não só conhece os “originais”, como tem na repressão de anos o treinamento para a violência. As sombras estão acostumadas aos pensamentos e comportamentos mais animalescos. Não são moldadas por amarras sociais que governam a superfície. Sua capacidade para a violência supera a das pessoas “originais”.
Por isso, Red/Adelaide e sua família são as personagem capazes de sobreviver de alguma forma. Especialmente em Red/Adelaide reside a força do indivíduo que nasceu como sombra. Especialmente no ato final, é perceptível como ela se torna mais animalesca, mais gutural, na tentativa de matar Adelaide/Red e recuperar Jason.

Sua inimiga, Adelaide/Red, é a mais capaz das sombras por ter alguns traços da consciência em seu comportamento. Ela é a pessoa mais próxima do equilíbrio proposto por Jung ao longo do filme, mas é a sombra que a domina. Sua consciência é parte da sombra.
Quando finalmente dá o golpe final, Red/Adelaide grita da mesma forma que as sombras gritavam ao atacar a família pela primeira vez. Como alguém forçado a reprimir sua sombra, ela precisou trazer qualidades dessa sombra à superfície para conseguir derrotar o monstro delirante à sua frente. Red/Adelaide termina o filme superando sua contraparte como a pessoa mais próxima do equilíbrio proposto por Jung. No caso dela, sua sombra se torna parte de sua consciência.
A troca das personagens quando crianças é genial não pelo efeito de “plot twist“, de possível surpresa para o público. A importância dessa troca está no fato de que, sem ela, toda essa construção Junguiana das personagens não seria possível e não nos levaria à torcida dividida. Sem ela, sequer a construção do universo da trama seria possível.
Já estamos acostumados, mesmo que por senso comum, a pensar em lógicas de luz e sombra, de consciente e inconsciente. Em geral, tememos o desconhecido e tendemos a torcer pela consciência, mais confortável, menos temível.
É na troca que somos forçados a encarar como a sombra é parte da mesma humanidade, sem desculpas. Afinal, Red/Adelaide, nascida na sombra, se torna uma humana plenamente capaz após trocar de lugar e se desenvolver na superfície. Adelaide/Red, nascida na luz, perde sua humanidade a um ponto quase irreconhecível ao ser reprimida de forma brutal e sem um pingo de culpa.
É graças à troca que podemos, genuinamente, nos colocar no lugar de ambas as situações, ver quão “por acaso” é a nossa sorte de ter vidas menos reprimidas e o preço que seria cobrado de nossa humanidade caso os “dados” tivessem jogado contra o nosso favor.
Em “Nós”, não sabemos muito bem para quem torcer, mas talvez a pergunta para essa história deva ser diferente. Deveríamos torcer para alguém?
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.