Na vida, conflitos surgem quando há a necessidade de escolha entre situações consideradas incompatíveis. Essas situações podem ser bilaterais (emprego x namorada ou saúde x lazer) ou ter várias camadas, onde há apenas uma escolha possível (liberdade x família x saúde x emprego).
Estamos cercados de conflitos. Eles acontecem a todo momento, em uma escala pequena ou grande, importantes ou superficiais, causados por você ou a você. Conflitos com nossos pais, com nosso(a) namorado(a), no emprego, na faculdade, e, especialmente, com nós mesmos.
Estar vivo é estar perpetuamente em conflito.
Nas histórias, o conflito também existe, sempre elevado à máxima potência. Afinal, como Robert McKee ensina: “em uma história, nada se move para frente se não for através de conflito”. Narrativas que só mostram pessoas felizes, tudo dando certo e nenhum desafio ou transformação não conquistam a audiência. O conflito dá vida às histórias e é a alma do storytelling.
Obs: temos de estar sempre atentos aos dois extremos: as histórias sem conflito (sempre muito tediosas) e as histórias recheadas de conflitos (igualmente tediosas, porque vão contra outra regra muito importante do storytelling).
Formas de Conflito: Interno, Pessoal e Extrapessoal
As formas de conflito são muito simples, e são o que chamamos de “força do antagonismo”, justamente por irem contra o protagonista.
O conflito interno é entre o protagonista e ele mesmo.
Exemplo:
Em Sniper Americano, Chris Kyle vê-se preso em um dilema interno, ao perceber uma mãe e seu filho agindo de forma suspeita, sobretudo quando a criança começa a se aproximar de seus companheiros com um objeto na mão (possivelmente uma bomba). Veja a cena aqui (sem legendas). O conflito interno aqui é claro: matar uma criança desarmada ou proteger seus companheiros. Para outra pessoa, essa decisão poderia ser fácil. Não para Kyle.
O conflito pessoal (muito comum nas comédias) é entre o protagonista e os personagens secundários (pai, mãe, namorado(a), parentes, amigos, etc.).
Exemplo:
Em Entrando Numa Fria Maior Ainda, Greg (ou melhor, Gaylord) entra em recorrentes conflitos com seu sogro e seus pais nada convencionais. Ele quer a aprovação de seu sogro, e vê isso ser cada vez mais difícil ao levá-lo para conhecer seus pais.
Ele entra em conflito com o sogro porque seus pais são malucos; em conflito com seus pais, porque ele quer que eles sejam diferentes do que são; com sua esposa, porque tudo dá errado; até mesmo com a criança, ao ensiná-lo, sem querer, a falar “asssssshole”.
O conflito extrapessoal é entre o protagonista e uma instituição; ou qualquer outra coisa, desde que seja exterior a ele e em relação a algo não-humano.
Exemplo:
O exemplo mais clássico é 007 (qualquer um dos 26 filmes). O conflito principal (na verdade, o único) é entre James Bond e o vilão. Você pode pensar que é um conflito pessoal, mas, na verdade, Bond briga contra a instituição do mal, não uma pessoa em si. As bondgirls não se encaixam num conflito pessoal porque são encontros apenas recreativos. E James Bond nunca tem conflitos internos. Às vezes, no início, ele pode ficar em dúvida se vai atrás ou não do vilão; mas ele sempre vai. Isso nunca pode ser considerado um conflito.
Complicação x Complexidade
Obs: Essencialmente aqui, complicado não quer dizer “difícil”, nem complexo quer dizer “Ingmar Bergman”.
O que separa um filme decente de um filme bom (ou um filme bom de um filme excelente), é a forma como os conflitos são abordados. Filmes decentes têm conflitos apenas em uma esfera (sim, 007 é um filme decente, nada mais); filmes bons têm conflitos em duas esferas. E os filmes excelentes têm conflitos nas três esferas.
Uma história complicada é uma história onde há conflito apenas em uma das esferas. Costumam ter um elenco grande (como 007, com o vilão e todos os seus infindáveis capangas), apresentar várias locações (James Bond sempre dá uma pequena volta ao mundo) e personagens maniqueístas (ou seja, essencialmente bons ou maus; nada além disso).
Histórias complexas apresentam conflito nas três esferas; frequentemente, ao mesmo tempo. Exatamente como na vida.
Imagine-se no trabalho que você odeia – poucas pessoas estão satisfeitas no trabalho -, rodeado de colegas de trabalho que você não suporta, pensando consigo mesmo o que você está fazendo com sua vida. Conflito extrapessoal, pessoal e interno, tudo ao mesmo tempo!
Vivemos isso constantemente, e sequer percebemos. É mais comum do que imaginamos, e é o que faz a vida ser interessante (embora, na maior parte do tempo, pensemos simplesmente que estamos de saco cheio). A vida é uma busca pela resolução de todos esses conflitos; mas, quando um é solucionado, outro surge, e assim sucessivamente.
Voltando ao mundo das histórias, o melhor exemplo que posso dar é Breaking Bad (mas darei outros).
O exemplo, claro, serve melhor se você já viu a série. Mas se não é esse o caso, dá para entender, embora haja possíveis spoilers.
Walter White é um professor de química ultra qualificado, ganhador de um Prêmio Nobel, que vive uma vida medíocre. Tudo muda quando ele é diagnosticado com câncer no pulmão. Para quem já acompanha nossos textos, esse é o Incidente Incitante. Sem perspectiva de futuro, com um filho com problemas e outro bebê a caminho, ele precisa primeiro ter dinheiro para pagar seu tratamento caríssimo, e, depois, ter certeza de que sua família ficará financeiramente bem quando ele se for.
Vou poupá-los dos pormenores, porque não é útil agora. Ele descobre que faz a melhor metanfetamina do mundo e vira um produtor. A partir daí, sua vida começa um ciclo de conflitos, um atrás do outro; muitas vezes, concomitantes.
Walter White é um personagem complexo porque enfrenta conflitos nas três esferas: interna, pessoal e extrapessoal. Sempre ao mesmo tempo.
- Interna: ele sabe que o que está fazendo é errado, mas dá dinheiro. Ele fará isso por pouco tempo, até ter dinheiro o bastante para deixar sua família bem quando ele se for. Seu conflito então é: fazer o errado pelo motivo certo x fazer o certo. Nenhuma das escolhas é fácil; todas têm consequências.
- Pessoal: primeiro, com sua esposa. Ele é constantemente obrigado a mentir e manipular a pessoa que mais ama, achando que o faz pelo motivo certo. Segundo, seu parceiro, Jesse Pinkman, que faz uma burrada atrás da outra, mas Walter precisa dele, pois é seu único contato no mundo das drogas (mais tarde, a relação deles vira uma relação pai e filho, o que aprofunda ainda mais esse conflito pessoal). Outros conflitos pessoais surgem, pois outros personagens entram na história.
- Extrapessoal: o mais importante, o câncer. É um conflito, pois é uma força de antagonismo, que o impede de fazer algumas coisas. Depois, o próprio mundo das drogas, com seus traficantes e usuários. Mais tarde, contra a polícia, pois ele está sempre sendo investigado pela DEA (órgão federal de combate às drogas) .
Veja como o protagonista tem conflito nas três esferas, geralmente ao mesmo tempo. Enquanto ele pensa consigo mesmo se o que faz é certo ou não, ele precisa mentir para a mulher e manipulá-la, enquanto luta para entrar (e sobreviver) no mundo das drogas e não ser capturado pela polícia; tudo isso enquanto luta contra o câncer.
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Mais Exemplos
Simba, em O Rei Leão, precisa enfrentar sua culpa por achar que matou seu pai (interno), enquanto lida com Nala, que diz que ele precisa voltar e tomar seu lugar como rei (pessoal), ao mesmo tempo em que deve lutar contra Scar (vilão; portanto, extrapessoal).
Em O Poderoso Chefão 2, Michael Corleone também enfrenta conflito nas três esferas, especialmente quando descobre que Fredo o traiu (os conflitos são interligados e uma decisão envolve todas as esferas; genial, como sempre). Interno, porque ele é seu irmão, mas o traiu; como uma traição dessas pode passar impune? Pessoal, porque Michael precisa tomar uma atitude ao mesmo tempo em que Fredo explica porque fez o que fez (porque é o irmão mais velho, mas Mike que cuida dele, faz tudo pra ele, foi o escolhido do pai, depois de Sonny). Extrapessoal porque envolve o tema mais importante da trilogia: família (uma instituição). Matar seu irmão certamente prejudicaria a família como um todo.
Eddard Stark, em Game of Thrones, é outro ótimo exemplo. Em Porto Real, ele enfrenta essas três esferas: interno, pois é honrado demais para mentir, mas deve fazer isso caso queira salvar sua família; pessoal, pois entra em conflito com o rei, com Cersei, com Jaime, com suas próprias filhas, Mindinho e Varys; extrapessoal, porque seu maior adversário é a família Lannister (uma instituição).
Em Star Wars Episódio V, na lendária cena em que Darth Vader diz a Luke que é seu pai, temos também um conflito nas três esferas. O conflito extrapessoal (ou seja, contra o Império) está sempre presente; o conflito pessoal com Vader está em andamento. Mas, quando Vader diz “Luke, eu sou seu pai!”, Luke se depara com um conflito interno: se juntar a seu pai ou tentar matá-lo. Se juntar a ele significa trair seus amigos; tentar matá-lo pode significar sua morte.
Poderia continuar dando muitos exemplos (fiquemos felizes por estarmos bem servidos de ótimas histórias, com ótimos personagens!), mas o objetivo é notar que conflitos são importantes não apenas porque fazem a história ir para frente, mas porque desenvolvem os personagens. Suas decisões vão moldando sua personalidade e, às vezes, mudando ela também. Você não é a pessoa que era um ano atrás devido às escolhas que fez; escolhas essas criadas por conflitos. Novas escolhas geram novos conflitos, que iniciam sempre um novo ciclo, de aprendizado ou não. Isso depende de quem escolhe.
Sinta-se livre para dar outros exemplos e esclarecer dúvidas, se for o caso.
Você também pode ler outras análises de filmes e séries aqui.
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Carioca, que abriu sua própria empresa para poder ter tempo de escrever e falhou miseravelmente. Uma pessoa intensa que encontrou na escrita a única forma de extravasar tudo que passa dentro de si.