Primeiramente, se não assistiu a nenhum episódio da última série fenomenal da HBO, Big Little Lies, corra. Ela contém apenas sete episódios e foi finalizada em 02/04/2017.

Grande elenco, atuações incríveis, roteiro afiado, edição linda e uma trilha sonora que te fará correr rumo ao Spotify. É impossível não lembrar de Chloe, a menina de 6/7 anos que já é a maior DJ que você respeita.

Quando a Jéssica me pediu para escrever sobre como a série utiliza a trilha sonora, me questionei como poderia evitar simplesmente relacionar letras de músicas e acontecimentos — fazê-lo é inevitável, como veremos, mas como ir além?

Inspirado pela playlist com a trilha da série que estou ouvindo NESSE MOMENTO (tá lá no final do texto), lembrei de duas expressões: diegese e quarta parede.

Cuma?

Para quem assistiu à série, imagine que você está lá, em Monterey, no café, conversando com Madeline Martha Makenzie, Celeste Wright e Jane Chapman. Se você não assistiu, imagine que está na Terra Média, ao lado de Aragorn, pronto para defender o Desfiladeiro de Helm (O Senhor dos Anéis, As Duas Torres).

Isso é Diegese. O mundo onde acontece a narrativa. Tudo que ocorre dentro do plano ficional, como as ações das personagens, os diálogos entre personagens, os eventos ambientais, as mudanças de cenário, estão contidos na diegese.

Um evento diegético. Já imaginou uma descrição tão “culta” para essa cena?

O diálogo acima, por exemplo, acontece inteiramente dentro da narrativa, por isso podemos dizer que é um evento diegético.

Agora imagine o que acontece se, por acaso, uma personagem ou elemento da história acontece fora da dimensão da narrativa? Fora do mundo onde vivem todas as personagens? Podemos dizer que o elemento está fora da diegese.

É aqui que entramos no campo da famosa expressão “quebra da quarta parede”. No exemplo corriqueiro, que você talvez conheça, quarta parede é a barreira imaginária que separa o elenco/palco do público no teatro. Quando uma atriz olha para a audiência e fala diretamente com esta, está quebrando a quarta parede, extrapolando o mundo da narrativa, interagindo conosco, com a realidade, formando um elo.

Na TV ou no cinema, a quarta parede é a câmera — e do nosso ponto de vista, a própria tela por onde assistimos à obra.

Frank Underwood

Frank Underwood ®

O olhar para a câmera é a marca registrada de Frank Underwood em House of Cards. Esse tipo de olhar e até diálogo com o público é a maneira mais conhecida e menos sutil de quebra da quarta parede. Acontece massivamente em Deadpool, por exemplo.

Contudo, será que é a única forma?

Nesse exemplo, um personagem foi o elo entre a diegese (o mundo da narrativa) e o mundo real. Talvez, se encontrarmos mais elementos fora da diegese, encontremos novos elos, novas formas de quebra.
Será que os personagens sabem sobre textos surgindo na tela? Estou indo além das legendas aqui. Veja esse exemplo:

Enchantress - Suicide Squad

Peço desculpas ao público pelo filme usado

Em todas as introduções de personagens, Esquadrão Suicida apresenta uma montagem com informações que não leremos a tempo, as quais os próprios personagens não fazem ideia estarem acontecendo. São cenas ocorrendo fora da diegese.

Agora veja uma típica cena de Sherlock interagindo com texto (série da BBC, outra obrigação para você que chegou até aqui).

Login Sherlock

Aqui é a digitação de um login, em muitas cenas a interação é com o celular. Sherlock basicamente popularizou o padrão de exibição de digitações em celular nos filmes atuais.

O curioso nessas cenas é que nós estamos vendo exatamente o mesmo conteúdo que as personagens, ainda que com uma edição diferenciada. É um elo entre diegese e mundo real, logo uma quebra de quarta parede. Sutil, não é?

“Até quando vamos falar de outras histórias?”, você deve estar se perguntando. Ok, vamos para a nossa protagonista. Se você teve a chance de assistir ao menos uma vez à abertura de Big Little Lies, pode pular o vídeo — até parece, duvido que não queira lembrar dessa lindeza.

A trilha sonora não passa despercebida, não é mesmo? Porém, as personagens não fazem a mais vaga ideia que essa trilha está tocando para nós. Ainda que a abertura não seja uma cena real, dá para pegar a ideia. Na dúvida, “2001: Uma Odisséia no Espaço” resolve. Os primatas com certeza não fazem ideia da orquestra que escutamos.

Pouco lendária.

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Assim como ocorria com os textos de Esquadrão Suicida, normalmente a trilha sonora não é de conhecimento de qualquer elemento do mundo na narrativa. Está fora da diegese.

Então Big Little Lies chega e faz isso:

Pausa para respirar. Tem muita coisa acontecendo aqui.

Primeiro, a trilha existe para nós, mas está nos ouvidos de Jane Chapman (Shailene Woodley). Ela canta, inclusive, totalmente consciente da mesma música que nós escutamos. Estabelecido o elo, quebramos a quarta parede.

Efeitos sonoros quebrando a quarta parede são cada vez mais comuns. O exemplo banal é o toque de celular: uma música começa a tocar e para quando uma personagem atende, para nossa surpresa.
No entanto, nunca vi uma história levar a quebra via trilha sonora/efeitos sonoros a um nível tão alto, com tanta frequência.

A cena acima vai além da quebra. A letra da música fala exatamente da situação de Jane. Sem precisarmos de uma segunda pessoa em cena, sem precisarmos de um monólogo em que a mulher explique ao público o que sente via narração, a música funciona como o espelho para o diálogo. Traz uma força tremenda para a revelação das emoções e da história de Jane.

Em outra cena, cujo vídeo não consegui, Chloe está com seu iPod no banco de trás do carro, enquanto Madeline dirige. Sabendo que ela e o pai (Ed) estão brigados, nossa DJ favorita sugere colocar River (Leon Bridges) para tocar. Não dá para não fazer as pazes com essa música, diz a pequena.

Em seguida, seus pais fazem as pazes. A música é usada não só para alimentar nossas playlists pelos próximos meses, mas como um complemento ao diálogo entre mãe e filha, aprofundando a relação entre elas. Mostra também a empatia de Chloe, percebendo a situação dos pais e atuando diretamente por sua via favorita.

Ainda por cima, a música mostra o que acontecerá, já que Madeline e Ed fazem as pazes. Chloe ❤

No fim do sexto episódio, Ziggy canta para a mãe Jane a música “Papa was a Rolling Stone”. É um tiro de tão forte a relação da canção com a trama dos dois (se tem medo de spoilers, não veja a letra).

Todos os episódios têm ao menos uma demonstração dessa. A última música de cada episódio, como no primeiro vídeo de Jane, é sempre gutural, literal, nas revelações de roteiro e de personas. A última música de toda a série representa perfeitamente o seu final.

Infelizmente, eu não poderia mostrar tudo sem quebrar alguns direitos (a série é recente, afinal) e entregar muitos spoilers, então vou parar por aqui. Repare nas letras, nas tramas e na edição (músicas tocando no som do carro, nos fones ou ao alcance de botões de Chloe para jogar um som ambiente naquela cozinha perfeita, tudo formando a trilha sonora).

Ah, tenho que cumprir a promessa:
https://open.spotify.com/user/1218819246/playlist/33bKfGu8eb4pCPFYrFTlra


Você também pode ler outras análises de filmes e séries aqui.

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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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