A cada novo conceito, técnica ou mesmo nova visão a que tenho acesso em storytelling, minha mente começa o trabalho de tentar replicar o conceito em outras obras.
É a melhor forma que encontrei para de fato aprender. Bater de frente com um conceito até que fique claro como ele se apresenta em uma história, ou se nem aparece ali. A cada publicação, esse é o exercício sendo posto para escrutínio público.
O canal Lessons from the Screenplay (LFTS), uma das boas inspirações que tenho e que já foi citado por aqui, disseca a relação entre Batman e o Coringa no filme “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, buscando entender o que faz um bom antagonista. Tem legenda em português, se puder, dê play que vale a pena.
O principal ponto colocado no vídeo é que protagonista e antagonista devem competir pelo mesmo objetivo. No caso do filme, a “Alma de Gotham”. Esse fator garante um conflito direto entre ambos e oferece muitas oportunidades para a intensificação do conflito.
É esse fato que torna Loki, por exemplo, um vilão tão mais interessante em Thor do que Ronan em Guardiões da Galáxia. Os dois irmãos disputam o trono, de modo que nosso interesse se guia para a relação direta entre eles. No caso dos Guardiões, defender a galáxia de Ronan acaba sendo uma necessidade, mas nenhum herói da equipe tem um objetivo em que compete com o vilão. No máximo, Drax quer se vingar de Ronan.
Para onde nosso interesse vai em Guardiões? Para as relações internas da equipe. No primeiro momento eles disputam o orbe, depois precisam trabalhar juntos para sair da prisão, depois voltam a competir por uma prioridade do objetivo de cada um.
É inspirado nessa noção que terminei a 5ª temporada de House of Cards refletindo sobre a relação entre Claire e Frank. Esse é um estudo sobre o casal mais complexo da atualidade. Teremos spoilers de todas as temporadas.
Francis Underwood
A série é sobre poder, isso não é novidade.
Um grande homem uma vez disse, tudo é sobre sexo. Exceto o sexo. Sexo é sobre poder.
A frase de Frank, oriunda da primeira temporada, mostra como o poder é o último propósito, a última instância.
Olhando para a história de modo superficial, vemos essa disputa pelo poder de forma objetiva.
Frank queria ser Secretário de Estado. Ao ser negado tal papel, passa a conspirar contra o presidente eleito, Garret Walker (Michel Gill), em vingança. Seu objetivo não é só derrubar Walker, é substituí-lo.
Francis chega à vice-presidência, então à presidência. Porém, seu mandato é curto, um cumprimento do mandato de Walker. Não há legitimidade perante o povo, já que ele não foi eleito, só assumiu após uma renúncia.
A falata de legitimidade torna seu poder temporário, incapaz de construir um legado. O que seria um legado, que não uma demonstração de poder pela perenidade de um nome?
Portanto, na 3ª temporada, a trama muda. Agora que o assento mais alto foi alcançado, ele precisa ser legitimado, para que o poder seja mantido, se estabeleça.
Francis busca se reeleger, passando pelos antagonismos de Heather Dunbar (Elizabeth Marvel) nas primárias e pelo republicano Will Conway (Joel Kinnaman) nas eleições.
A eleição é vencida. Ao longo da 5ª temporada, o personagem de Kevin Spacey trata o povo como um bebê, sendo ele o pai que ensina o certo e errado. A Casa Branca é a sua casa.
Contudo, todas as jogadas que o levaram a essas vitórias geraram caos. Ele não tem o Congresso como apoio, a imprensa o caça, tentativas de derrubá-lo surgem de todos os lados.
Frank percebe que o cargo de presidente não o garante poder absoluto, mesmo quando eleito. Ele sempre estará sob escrutínio. Na primeira temporada, como líder da minoria, ele exercia poder das sombras sem sofrer o mesmo número de pressões e represálias.
E se ele jogar a partir das sombras? Claire está eleita vice, pode ser presidente, quer ser presidente. O protagonista é capaz de planejar sua queda, de forma que ela não o prejudique no longo prazo, não prejudique sua esposa, e o casal possa manter o poder a partir dos dois lados. Da luz e da sombra. Do Executivo e do setor privado.
Francis executa, pois seu desejo é o “poder por trás do poder”.
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Claire Underwood
A personagem de Robin Wright começa a trama como CEO de uma ONG. Sua atuação no meio civil auxilia Frank a elaborar projetos de lei, e ter a influência do marido no Congresso favorecia projetos da ONG.
Com a promessa de que Francis viraria Secretaria de Estado, essa influência mútua se expandiria para o mercado internacional, a partir das relações que Frank poderia nutrir com embaixadores e governantes.
Um ganha-ganha.
A quebra da promessa de cargo não muda apenas os rumos do protagonista, que vira seus olhos em direção à vingança, mas também os de sua esposa. De repente a ONG não faz mais diferença, se torna até um atraso com o tempo e energia que toma.
Claire deixa o setor privado e passa a se dedicar inteiramente a elaboração de planos que alcem o marido à presidência.
Na 3ª temporada, com Frank presidente, Claire assume o papel de primeira dama. Um papel de destaque, porém figurativo.
É nessa temporada que muita gente começa a sentir uma queda em House of Cards. Há de fato uma mudança. Nos dois primeiros anos, vimos um casal alinhado, ainda que diferente de tudo que conhecemos, em prol de um objetivo único e claro.
O objetivo foi alcançado, e ambos passam a redefinir seus rumos. Cada um passa a olhar em uma direção própria, sem garantia de alinhamento.
Claire, no entanto, está presa a uma posição frágil. Ela perdeu poder se comparada à sua posição no início da série, ainda que tenha ganho mídia.
No final da 3ª temporada, antes da separação temporária, ela diz:
Nós estávamos fazendo você mais forte, e agora me sinto fraca, pequena, e não consigo suportar mais esse sentimento.
Então a personagem passa a demandar e reconquistar poder, agindo como embaixadora, se tornando candidata à vice-presidente, sendo eleita no cargo antes de Frank e até assumindo a presidência interinamente.
Após o plano de renúncia do marido, Claire assume a presidência com um longo mandato pela frente. Ela chega ao ápice de poder em sua vida.
Mas quando é solicitado que ela dê o perdão presidencial para que Francis exerça seu papel a partir do setor privado, ela nega.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo, os pôsteres das quatro primeiras temporadas. Repare como Claire cresce em aparição, até chegar à igualdade na 4ª.
Terapia de casal
Como citado, as duas primeiras temporadas refletem um caminho com objetivo bem definido, em que Frank e Claire se unem para conquistar.
As 3ª e 4ª temporadas refletem os conflitos ocorridos a partir do momento em que o casal se depara com um momento de descoberta, de novas perguntas e caminhos.
O objetivo, entretanto, não muda. Só fica menos evidente. Porque desde sempre o objetivo era poder.
Frank talvez fosse Secretário de Estado de Walker por 4 ou 8 anos antes de tentar a presidência. O cargo o daria experiência em situações internacionais. Após uma carreira de 20 anos no Congresso, mais do que o suficiente para ser um nome forte em uma eleição.
Sua sede de poder aumentou justamente porque seu caminho para tal foi negado. A vingança até satisfaz o protagonista, mas é o exercício de poder da execução da vingança que realmente o interessa.
O próprio diz para os espectadores, na 5ª temporada, às vias de entregar o cargo, que ama Claire, mas talvez ame mais o poder.
Eu jamais diria “talvez” falando dele. É o que alimenta Frank em todas as relações. A lealdade total, por ser a máxima demonstração de seu poder, é o que sempre espera dos outros. Quem não demonstra essa lealdade é usado e descartado. Não só figurativamente.
Quando relacionamos a conclusão do vídeo sobre Batman e o Coringa com House of Cards, podemos perceber como os embates entre Frank e Mark Usher (Campbell Scott) ou Raymond Tusk (Gerald McRaney) são mais interessantes do que os embates com Heather Dunbar ou Garret Walker.
Pessoas como Tusk e Mark, que são suas maiores adversárias em potencial, atraem Francis. Não há demonstração mais forte de poder do que dobrar alguém com a mesma vontade, com o mesmo objetivo. Conquistar a lealdade de quem almeja poder é o ápice.
Portanto, Claire é o ápice.

Pela primeira vez, Claire está à frente de Frank, no pôster da 5ª temporada. Compare com a foto de capa, lá em cima, uma cena da mesma temporada. Frank olha para Claire. Claire olha para frente, como faz no pôster. Para o futuro, talvez?
A lealdade da esposa é o maior troféu que Frank pode obter. Pois ele é atraído pela sede de poder dela. É isso que ele ama nela.
Sempre que Claire demonstra dúvidas sobre sua própria vontade, parece ter outros desejos que não o poder, Frank se irrita ou perde o interesse.
Como ela pode ser ingênua ao ponto de ainda se apaixonar?
Ele diz isso não porque é incapaz de se apaixonar; ele já se apaixonou dessa forma, por um amigo que ficou no passado e agora está morto. Ele não tem mais distrações.
Quando Claire alcança o topo do mundo, se torna a mulher mais poderosa do mundo, nada pode ser uma demonstração de poder maior do que ter a lealdade dela.
Claire, por sua vez, sempre carregou um conflito interno em relação ao seu desejo por poder. Sempre esteve ali uma dúvida entre vivê-lo e viver um amor ou outro estilo de vida mais… humano. Isso era Adam Galloway (Ben Daniels), isso era seu conflito com a mãe, isso era Thomas Yates (Paul Sparks).
Acontece que nessas relações ela também precisava se submeter. Yates estava sempre falando de suas vontades: fugir dali, ficar ali, não se conformar com sair dali.
O final da 5ª temporada é o final de duas construções para Claire. Ela finalmente aceita que poder também é seu objetivo último. E ela entende, ou melhor, finalmente aceita que a relação com Francis sempre será uma disputa por poder. Mesmo seu cargo é um “presente” do marido. Em suas palavras, ele a fez presidente.
Então ela mata Tom, uma distração para seu objetivo. A morte de Tom é parelha à Travessia do Primeiro Limiar, famoso estágio da Jornada do Herói, de Joseph Campbell. É o estágio em que o herói cruza a fronteira entre o mundo comum e o mundo da sua aventura. É a escolha de Neo entre a pílula azul ou vermelha, em Matrix.
Mesmo com todo o caminho que Claire já percorreu, todas as difíceis escolhas, ela nunca tomou a frente de fato. Ela sempre esteve à reboque de Frank, no máximo forçando estar ao lado dele. O substituindo apenas quando ele esteve incapacitado. Esse era seu mundo comum. Matar Tom é cruzar a fronteira que apenas Frank havia cruzado. Ela chegou longe demais para parar agora.
Então ela completa a travessia e nega o pedido de Francis. Não, ela é a presidente. Não importa como ela chegou ali. A vez dela chegou.
Até perante os espectadores essa mudança existe. Primeiro Claire começa a olhar para a câmera, na última cena da 4ª temporada. Na 5ª, temos inúmeras dicas de que ela quebrará a quarta parede.
Ela quebra. Da segunda vez, ela quebra encerrando a temporada, nos avisando sobre sua vez. Ela também tomou para si o poder do protagonismo.
Minha vez
O maior conflito da série sempre prometeu ser o casal. Os Underwood são os protagonistas da história, e são os antagonistas de si próprios. Os antagonistas perfeitos, um do outro.
Voltando ao vídeo do canal LFTS, o primeiro ponto que o autor Michael aponta sobre o Coringa é ser “excepcionalmente bom em atacar as maiores fraquezas do protagonista. Já vimos no início da 4ª temporada que esses são Frank e Claire, um para o outro. Alguém se arrisca a dizer quem ficará com o poder no fim?
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.