Protagonismo é um assunto à princípio óbvio. Protagonista é o personagem principal, aquele com quem devemos criar empatia.
Isso é claro para 99% dos filmes. Mas quando perguntamos, por exemplo, quem é o protagonista em Game of Thrones, ficamos em dúvida. Na primeira temporada, Ned Stark era a escolha óbvia.
Até ele morrer.
E depois? Talvez em outro texto.
Em Garota Exemplar, parece óbvio que Nick (Ben Affleck) é o protagonista. No entanto, se olharmos para os conceitos de storytelling, vemos que isso não é verdade.
Antes de entrarmos no mérito da questão, vamos a esses conceitos – três para ser exato.
Protagonista
É o personagem que toma decisões importantes, e sofre as consequências dessas decisões. O protagonista também influencia as circunstâncias dos outros personagens, e move a história para frente.
Personagem Principal
Da forma mais simples possível, são os olhos pelos quais vemos a história.
Pela lógica, todo personagem principal é protagonista, e todo protagonista é personagem principal.
O que não é, necessariamente, verdade.
O exemplo clássico é “Um Sonho de Liberdade”. Red (Morgan Freeman) é o personagem principal (além de narrador). Conhecemos a história de Andy (Tim Robbins), o protagonista, pela visão de Red.
Outros exemplos não faltam: O Sol é para Todos, Exterminador do Futuro, Os Falsários (Die Fälscher) e A Vida dos Outros (Des Leben der Anderen).
Antagonista
Personagem, grupo de personagens ou instituição que se opõe ao protagonista.
Em Batman Cavaleiro das Trevas, temos como principal antagonista o Coringa, mas não é o único. A máfia e todos os outros criminosos; inclusive a polícia, em alguns momentos.
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Garota Exemplar
Em princípio, Nick é o protagonista. É com ele que começamos a história. É a ele que somos inicialmente apresentados. A história é sobre ele, aparentemente.
É a ele que o Incidente Incitante ocorre – perceber que a esposa foi sequestrada. Ele liga para a polícia. Ele ajuda na busca, falando tudo sobre o que sabe. Faz um apelo aos moradores da cidade. Ele age, age, age.
Protagonismo = ação
Protagonistas agem. Essa é sua essência.
Nick age. Portanto, ele é o protagonista…
… pelo menos até a metade do filme. Todavia, ele desde sempre é o personagem principal.
Em princípio, temos como antagonista algo desconhecido, um criminoso que levou a bela e popular mulher de Nick, Amy (Rosamund Pike)…
… até a metade do filme.
O que acontece após a metade?
Descobrimos que Amy não foi sequestrada; ela forjou seu próprio sequestro (e todo o contexto) para que seu marido fosse preso pelo crime que de fato não cometeu (e nunca existiu).
Então, a partir do meio do filme nos é revelado a antagonista: Amy.
Só que não.
Veja bem: sem a decisão de Amy, não haveria história. Se ela não forjasse o próprio sequestro, Nick não voltaria para casa, encontraria a casa revirada, chamaria a polícia, e tudo o que acontece na primeira metade do filme.
O Incidente Incitante da história parece ser Nick encontrando a casa revirada e a esposa desaparecida. Mas isso na verdade é só a consequência do Incidente Incitante de Amy – depois de sentir o casamento indo por água abaixo, ela vê Nick com a amante, na mesma cena em que vimos com a Amy (a névoa de açúcar, o passar de dedo nos lábios, o beijo). Isso faz com que ela tome uma atitude, que em sua mente psicótica faz todo o sentido.
Com isso, temos ela como protagonista.
Mas como? Ela não age de fato até o meio da história.
E daí?
Sem a ação dela, a história não existiria. E a ação dela, cronologicamente, veio antes de tudo que vimos Nick fazer. Sua ação é sem significado sem a ação anterior de Amy.
Podemos até falar que, como em Psicose, o protagonismo foi substituído — no caso da lendária obra de Hitchcock, a cena do chuveiro muda tudo. Neste caso, há uma mudança no tempo presente. Em Garota Exemplar, há apenas a mudança de contexto.
Nada de fato muda, o que muda é nossa percepção sobre os fatos.
Ela que manipula o marido, ela que quer puni-lo, ela que forja a cena do crime, ela que foge. Ela que faz amizade e é traída. Ela que pede para encontrar Desi (Neil Patrick Harris) e pede ajuda a ele – manipula ele também. E, novamente, é traída e aprisionada. Ela que, ao ver a entrevista que Nick dá, como se tivesse morrendo de saudades dela – voltando a ser o marido que ela queria que ele fosse – arma um plano para fugir de seu cativeiro, assassina Desi, culpa ele pelo sequestro, e volta para casa, livrando o marido do crime que ela queria que ele fosse culpado.
Nick continua como o personagem principal. Lembra do conceito? Ele é apenas um brinquedo nas mãos de Amy, sendo jogado de um lado para o outro, como uma marionete.
Mas esse não é seu único papel na trama.
Por que Amy fez o que fez?
Ela nunca foi uma garota comum. Ela não queria o que as garotas comuns queriam. Ela não queria encontrar um homem, se apaixonar, ter uma família, e toda aquela baboseira. Ela não era assim.
Até que conheceu Nick. Ele fez com que ela começasse a desejar isso. E ela fez de tudo para ser essa garota.
Só que as coisas começaram a ir ladeira abaixo. Nick se tornou um acomodado. Deixou de ser o homem que ela conheceu e fez nascer o seu desejo de ser uma mulher comum.
E todo o encanto acaba quando ela o vê traindo ela.
Nick, então, tornou-se um obstáculo à vida que ela queria e não poderia ter mais. Um obstáculo que deveria ser transposto. Todas as ações que ela toma são nessa direção.
Na mente psicótica de Amy, o plano dela fazia total sentido. Ela deveria punir Nick por despertar um desejo nela e depois ignorar.
Portanto, Nick, além de personagem principal, era o antagonista.
Garota Exemplar é uma história sobre um casamento cheio de falhas, tanto do marido quanto da esposa – ambos cometeram erros terríveis. Ambos tomaram decisões extremamente egoístas – Nick decidiu se mudar para o Missouri sem consultar a esposa; Amy decidiu emprestar dinheiro aos pais sem consultar seu marido.
Depois da fuga de Amy na manhã no quinto aniversário de casamento deles, Nick também agiu e tomou decisões que afetaram a trama como um todo — continuar a ver sua amante, mesmo sabendo que isso seria um risco enorme; esconder descobertas da polícia; depois de perceber que Amy estava armando contra ele, de ir na entrevista usando o relógio e a gravata que ela lhe deu, falando coisas amorosas sobre ela, coisas que ele sabia que ela estaria ansiosa por ouvir; e a mais importante delas, decidiu ficar com Amy no final, pois sabia que se separar dela só pioraria as coisas.
Porém, a ação mais importante de toda a história, a ação que criou a necessidade de tomada de decisões de Nick, foi de Amy. Se Amy não tivesse tomado a atitude que tomou, de fugir e forjar seu próprio sequestro para incriminar Nick, a história não existiria.
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Carioca, que abriu sua própria empresa para poder ter tempo de escrever e falhou miseravelmente. Uma pessoa intensa que encontrou na escrita a única forma de extravasar tudo que passa dentro de si.