Nota: o texto a seguir tem spoilers do filme “Capitão Fantástico”.
Algumas histórias podem desafiar quem as escreve de uma forma única. Em enredos que representam ideias em que acreditamos, teorias a que aspiramos, podemos deixar de executar uma atividade essencial da história: desafiar nosso protagonista ao máximo.
Por exemplo, a masculinidade é um tema caro para mim, como você pode ter percebido em alguns textos aqui do blog. Digamos que eu crie um protagonista que representa o meu ideal de masculinidade. Ao jogá-lo em uma história, cheia de conflitos e visões opostas, uma coisa curiosa pode acontecer. Meu instinto como escritor pode proteger o protagonista dessas outras visões. Porque, em última instância, proteger a representação criada do meu ideal é proteger o meu ideal. É proteger a mim mesmo.
Essa configuração não interessa ao público porque a história deixaria de ser um filme. “Seja bem-vindo à minha palestra sobre masculinidade”. O resultado seria uma audiência entediada, ou pior, se sentindo enganada, que reservou um tempo para se engajar em uma jornada emocional e recebeu em troca uma apresentação de argumentos “pró alguma coisa”.
Em essência, uma venda.
Portanto, se eu quero criar uma história sobre esse tema, eu preciso “desligar” o que seria o meu ideal e voltar ao estágio das perguntas – ou apenas assumir que é nesse estágio que eu realmente estou. Qual é o ideal de masculinidade? Existe um ideal? Partindo dessa abertura, de perguntas sem respostas prontas, eu permito que o protagonista esteja vulnerável – até mesmo a acreditar em algo em que eu não acredito. Com isso, eu estou vulnerável. Torna-se mais fácil que o público também fique vulnerável, pois enxergará na tela uma jornada emocional de alguém lidando com perguntas honestas, sem respostas embutidas.
O que estou exemplificando com a masculinidade é o processo de Matt Ross, roteirista e diretor de Capitão Fantástico, sobre a paternidade.
Em entrevista para o site Collider, ele falou sobre o início do roteiro:
A primeira ideia era radicalmente diferente. A gênese tinha a ver com ter filhos e questões sobre cuidar dos filhos e paternidade especificamente. Tenho duas crianças e eu estava em conflito sobre quais eram meus valores e o que eu queria passar para elas. Então eu coloquei diferentes tipos de pais e de cuidados de filhos. Brinquei com várias ideias – pais muito permissivos, muito restritivos e então criei esse personagem (Ben, o pai interpretado por Viggo Mortensen) – muito disso foi aspiracional, parte foi autobiográfico. A verdade – como em tudo, você tem uma ideia sobre algo que você pode escrever e isso muda. Pessoas refletem sobre isso ou você ganha novas ideias e talvez sua ideia original seja radicalmente diferente do que o final acaba se tornando. Não é um teorema. Você não senta e prova um ponto. Você começa com uma ideia inicial e ela cresce e cresce. A matemática da narrativa muda.
Repare como seria fácil que o filme transformasse Ben em um tipo de superherói – um “Capitão Fantástico”. Ele representa aspirações de Matt e também sua biografia. Ele é o personagem escolhido para caminhar pelas dúvidas mais fortes de Matt. Qualquer medo inconsciente que o autor tivesse, como descobrir uma verdade que ele não se sentisse capaz de compreender, poderia fazê-lo proteger o protagonista – para se proteger.
Não é isso que acontece com Ben. Ele tem muitos traços que nos fazem torcer por ele. É um ávido crítico das piores qualidades do sistema capitalista em que vivemos. Seus filhos demonstram amá-lo fortemente. Sua relação com as crianças é próxima e genuína. As crianças são saudáveis, fortes fisicamente e intelectualmente. O início chega a dar a impressão de que ele simplesmente acertou em tudo.

A família reunida no ambiente da floresta onde vivem. Da esquerda para a direita: Nai, Zaja, Bodevan, Rellian, Kielyr, Vespyr e Ben
Aos poucos, começamos a encontrar as rachaduras. Um dos filhos, Rellian (Nicholas Hamilton), na verdade se ressente do pai. Ele sofre pela perda da mãe e culpa o pai por ela – na visão do garoto – não ter sido tratada pela medicina tradicional mais cedo. A partir dessa dor, ele passa a questionar todo o modelo de educação do pai – como dar facas de presente para crianças, ou fazer escaladas onde qualquer um poderia morrer. O próprio Rellian machuca uma mão em uma escalada e precisa se virar para seguir, só recebendo instruções do pai, mas sem ser salvo por ele.
Bodevan (George MacKay), o filho mais velho, logo no início completa um ritual e se torna adulto dentro daquela concepção antisistema. Ele auxilia o pai no gerenciamento de toda aquela vida isolada na floresta. No entanto, ele aplica para várias faculdades escondido com a ajuda da mãe antes de ela falecer. O jovem se interessa por uma garota quando a família viaja para a cidade, mas fica claro que, mesmo tendo cumprido um ritual e se tornado um adulto, ele não tem qualquer habilidade social para navegar no mundo. Até seu nome, dado com o intuito de ser único no mundo, acaba o isolando desse mesmo mundo.
Ben passa a ser confrontado ao longo do filme pela raiva de Rellian e o anseio de Bodevan de se relacionar socialmente. As facetas negativas da educação isolada começam a se revelar: pelos riscos físicos, pela inabilidade social. Crescer daquela forma, aparentemente, tornava as crianças capazes de viver apenas daquela mesma forma, incapazes de explorar outros caminhos de vida.
Na mesma entrevista, Matt complementa sua visão sobre a construção da história:
O filme é uma mídia muito pobre para entregar uma mensagem. Eu não estou tentando fazer isso. Estou apenas tentando perguntar uma série de questões e, quem sabe, você possa desenhar suas próprias conclusões sobre qualquer significado que possa haver ali ou qual ponto existe ali.
Ben é testado por Rellian e Bodevan, mas resiste. O modelo de paternidade que ele desenvolveu não é um mero capricho, mas uma conexão emocional com sua esposa falecida. Ele precisa ser ainda mais desafiado para enxergar sua escolha com outros olhos.
É nesse ponto que Capitão Fantástico confronta os dois extremos, quase ao mesmo tempo. Rellian se revolta e se refugia na casa do avô, Jack (Frank Langella). O avô representa todas as normas sociais padrões. Ele culpa Ben, seu genro, por sua filha ter vivido um estilo de vida que não compreende e por ter morrido longe. Então ele aproveita a raiva de Rellian e confronta Ben com todos os riscos que sua educação traz para as crianças. Chega a usar a força da sociedade: sua riqueza, privilégios políticos, a polícia, de modo a se tornar o representante legal de seus netos.
Do outro lado, como plano de Ben, uma das filhas, Vespyr (Annalise Basso), deve escalar a casa do avô e “resgatar” Rellian do quarto em que o garoto está. Vespyr é uma filha “devota”. Ela acredita na educação dada pelo pai, não questiona seu método. Ao escalar a casa, ela escorrega, cai, se machuca feio. Vai parar no hospital.

Escondidos no escuro atrás de um tronco de árvore, a família faz o plano para Vespyr resgatar Rellian
No resultado desse embate, Ben é forçado a confrontar o peso de suas escolhas. A consequência de tentar provar o seu próprio ponto recai sobre uma de suas filhas, de alguém que nem o questionava. Esse é o momento de crise do protagonista.
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Não devemos temer testar nosso protagonista ao máximo, pois é daí que surgirá algo mais próximo da verdade que precisamos enxergar, da jornada que o público desejará acompanhar. Ben acaba se transformando em um novo tipo de pai, menos radical do que o modelo que apenas sobrevive na floresta, mas sem ceder a todas as normas sociais de um mundo doente. Ele tenta achar um ponto de equilíbrio. Esse fim permite a nós, como público, questionar cada argumento e ação presentes no filme e pensar o que combina mais com a nossa visão. Acreditamos mais no modelo social vigente? Mais na quebra de paradigmas, em uma vida fora do sistema? Em que partes da vida estamos abertos a questionar as normas, em que partes preferimos seguir?
Capitão Fantástico apresenta várias possibilidades, mas não é uma palestra. Na última cena, sabemos que Ben equilibrou sua visão de alguma forma. Mas somos forçados apenas a contemplá-la. Não conhecemos seus novos argumentos, não descobrimos exatamente o que mudou. Só ganhamos pequenas dicas de uma nova rotina. Diferente de uma palestra, fica para o público o trabalho de preencher as lacunas como quiser preenchê-las.

Na última cena do filme, a família sentada à mesa. As crianças comem e fazem dever de casa. Ben apenas observa a janela.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.