Na última semana, assisti ao piloto de The Night Of, a série que estreou aos domingos às 22h, na HBO, no nobre horário deixado vago por Game of Thrones.
Os oito episódios planejados para a temporada já foram exibidos, mas esse parece o tipo de seriado que demora a ser descoberto por muita gente. O episódio prendeu minha atenção, então, resolvi começar um novo exercício aqui: acompanhar a temporada, fazendo um review a cada episódio. O objetivo não é necessariamente desvendar a charada final antes de assisti-la em tela. Não faço ideia se será uma grande série, se terá continuações. É mais sobre aplicar as ideias de storytelling que trabalhamos, para absorver mais da obra e aprofundar a minha (e quem sabe a sua) experiência. Apenas digo que o primeiro episódio promete – e vai que descobrimos algo antes?
Sem spoiler
Um de meus canais favoritos no YouTube é o CineFix. Alguns de seus vídeos abordam conceitos de audiovisual com uma didática que, quem sabe um dia, alcançaremos aqui no AdR. Por que não nos inspirarmos neles? Se você viu Sicario ou não se importa com spoilers do filme, veja o vídeo abaixo, sobre o conceito de Tensão:
Incrível, não é? Tendo esse conceito mais palpável, uma coisa curiosa aconteceu ao longo da minha experiência com o episódio de estreia de The Night Of. Enquanto acompanhamos a noite do protagonista Nasir, tensão foi a palavra que resumiu o que senti. Caso você não tenha visto o vídeo acima, a tensão se baseia em uma forma de promessa, uma quase-certeza. Nós, espectadores, sabemos que chegaremos a algum tipo de evento na tela – violência, no caso de Sicario -, porém não sabemos quando, onde, como. Cada cena fortalece a promessa, através do ponto de vista do protagonista, que é usado como o ponto de vista do próprio espectador (comum quando ambos não sabem o que acontece em seguida, o que fortalece a empatia e a catarse). Cada uso da trilha sonora converge a trama para o evento que está por vir. A espera não é apática, pois o suspense está instaurado; a espera se torna angustiante, com mais e mais promessas. Até que o evento chega e libera toda a tensão carregada ao longo do episódio.
Durante e após os 75 minutos do episódio, posso adiantar que fiquei muito tenso.
Serei mais detalhado sobre o desenvolvimento do conceito na próxima sessão, com spoilers. O que The Night Of indica, que eu possa falar sem revelar os segredos?
- Um protagonista americano, de origem muçulmana, promete uma série de abordagens à situação americana de preconceito, racismo e o estereótipo do muçulmano como terrorista. O episódio chega a mostrar um negro sendo islamofóbico com Nasir, um bom lembrete de como todos nós carregamos e reproduzimos preconceitos, mesmo nós que sofremos alguns de seus tipos.
- A relação da polícia e do sistema judicial com esses estereótipos. Pessoas islâmicas, negras, brancas; quais as diferenças de tratamento dadas pelas autoridades a cada grupo?
- A montagem do sistema em direção à resolução de um crime. Além dos preconceitos, que incentivos movem policiais, advogados, testemunhas, vítimas, promotores, juízes.
Com esses pontos, já é possível visualizar o potencial da série como crítica social, independente da própria trama. Mas uma review de fato não existe sem spoilers, então vamos aos detalhes.
Com spoiler
A abertura lembra um pouco a de True Detective, talvez por alguma identidade audiovisual para as séries policiais da HBO, talvez coincidência. Tomara que a série siga a qualidade da 1ª temporada de True Detective, não da 2ª.
Desde a primeira cena, ocorre uma caracterização do jovem Nasir. A aula de cálculo que assiste é a primeira indicação de seu perfil de estudante, depois o diálogo no vestiário do time de basquete da faculdade, para o qual ele contribui de fora, como tutor de um atleta. Ele é um fã de basquete, que discute com o irmão sobre os jogadores do time do New York Knicks, da NBA. Esses elementos aparecem para entendermos as decisões de Nasir ao longo do episódio, como o incidente incitante.
Para sua surpresa, o jovem Naz é convidado para uma festa do time de basquete da faculdade. O convite não acaba com o equilíbrio que tanto abordamos aqui no AdR. Tudo depende da decisão de Naz – os maiores sucessos, via de regra, se movem graças às decisões dos seus protagonistas, não a eventos que ocorrem com eles.
Caso o jovem preferisse não ir à festa, o que mudaria? Nada. Mas ele decide ir à festa. Porém, o equilíbrio continua. Seus pais não gostam que ele vá à festa, mas não fazem força para o impedir. Se a ida não era o obstáculo, não há perda de equilíbrio. Ele tem um plano comum – ir de carona com um amigo. Basicamente, mais um jovem indo se divertir.
Contudo, o amigo desiste da festa. Naz perde sua chance, a não ser que… Ele pega as chaves do táxi do pai, e parte rumo à festa.
Agora sim. O perfil de Naz nos foi apresentado o suficiente para sabermos que essa decisão é uma quebra de seu comportamento. Pegar o táxi do pai é uma decisão forte, que terá, no mínimo, consequências com a família . É a decisão que move o episódio, a primeira a alterar o equilíbrio do protagonista.
Dirigindo o táxi, começa a construção da tensão que pincelei acima. Um carro passando por um pedágio pode representar muitas coisas simbólicas em um filme, como pode ser um mero detalhe visual. Mas nós confiamos no diretor porque temos um pacto implícito com ele. Sabemos que tudo que ele mostra na câmera deve ter relevância. O bom diretor não quebra esse pacto: suas escolhas de ângulos, de elementos exibidos, são conscientes, têm objetivo.
Então, no pedágio, o diretor nos mostra Nasir através de uma câmera de trânsito. Enquadra na placa do táxi. Não precisamos conhecer a filmagem de uma câmera de pedágio, que não influencia em nada o caminho para a festa, a não ser que ela seja relevante para a história.
Sabemos o que filmagens de câmeras de rua representam. Nove a cada dez vezes, são elementos de evidência, provas. Com isso, sabemos que algo grave acontecerá em torno do jovem. Provavelmente um crime. Mas como? Quando? Será na festa?
A filmagem da câmera do pedágio é a promessa de um evento, criando a tensão.
Alheio a nossos devaneios, Nasir segue seu caminho em direção à festa. Aprendemos aos poucos que ele está perdido – outro contexto mostrado para apoiar uma decisão futura. Em meio à sua confusão, uma bela garota entra em seu táxi.

Nova York não é um lugar indicado para se perder.
O natural era rejeitar a corrida, como fez da primeira vez, mas agora é diferente. Naz está perdido, dificilmente chegará à festa. Uma garota entra em seu táxi, misteriosa, aparentemente indiferente ao frágil protesto do protagonista. Então ele aceita levá-la onde quer.
A decisão não é só justificada pelo contexto anterior, como revela uma visão sobre a natureza de Nasir – talvez uma visão dos roteiristas sobre a natureza humana. Mesmo tomando uma decisão rebelde como a de pegar o táxi do pai escondido, seu comportamento padrão ainda é o de seguir, de cumprir expectativas, de ser prestativo. Se alguém pede, ordena, ele faz.
Além da decisão, temos a garota sempre através do ponto de vista de Nasir. Enquanto ele está no táxi, só a vemos através do retrovisor. Essa escolha de direção a mantém tão misteriosa para nós quanto para o protagonista. Não vemos mais do que ele vê, sequer vemos seu corpo. Quando param no posto de gasolina, a enxergamos por fora do táxi, como Nasir e como o desconhecido presente no posto.

A garota sem nome
Aqui, mais câmeras, junto à área de abastecimento e na loja de conveniência. Mais tensão. O desconhecido no posto mostra interesse pela garota no banco de trás do carro amarelo. Ele pode ser testemunha de algo futuro, uma evidência tanto quanto às filmagens das câmeras. Porém, também há algo estranho nele. Em seu interesse, na abordagem que faz, no seu estilo de vestir e seu carro – que não condizem com o ambiente. Aos nossos olhos, ele pode se tornar testemunha, mas é ainda mais um suspeito de algo que não conhecemos: mais tensão.
Interessante perceber que ainda estamos na Apresentação, o Ato Um. Conhecemos Naz, a garota, mistérios estão rondando, mas ainda não vivemos um evento de nova quebra brusca do equilíbrio. Estamos apenas vendo pistas sendo plantadas.
A garota cativa Naz – como é de se esperar, menos pela beleza, mas principalmente pelo interesse que ele recebe, ao qual não está acostumado. É o que o mantém na ironia de seu perfil. Usa uma droga pois a garota pede, seu perfil obedece. No entanto, seu perfil não é o de quem usa drogas, pois não é o que se espera do filho/estudante exemplar. Basta uma única decisão rebelde no início, e Naz pode “voltar” a ser o mesmo de sempre; o caminho e o destino já serão completamente diferentes.
Na entrada da casa da garota, ambos passam por dois negros, e um deles faz uma piada que mostra a islamofobia citada no início. O protagonista já está sob o efeito de uma droga, saindo da normalidade por um instante, em desafio, para depois recuar. É o suficiente para que o rapaz até então calado da dupla de homens olhe com uma atenção profunda para o casal prestes a entrar na casa.
O olhar parece até bizarro. Mais uma vez, alguém atravessa o caminho dos dois com um potencial para testemunha – ainda não sabemos do quê. Novamente, esse alguém também tem um potencial suspeito, parece ir além de uma mera testemunha. Era um olhar de interesse.
Nota: as duas potenciais testemunhas até o momento, que também parecem suspeitas, são dois homens negros. Vamos ver qual o objetivo da série com essa decisão, ou se é só um estereótipo inconsciente.
Eles chegam à casa, e fiquei pensando se a cabeça de veado pendurada na parede era uma homenagem à primeira temporada de True Detective, simbolizando Carcosa. Talvez seja mero detalhe, mas ela sempre é focada quando alguém passa por ela, tal qual as câmeras de tráfego. Haverá uma câmera naqueles olhos?
Primeiro, a garota segura a faca e ouvimos um “Uh-oh”. Não era sobre a faca, mas a garota toma um susto, e o espectador também. A coincidência é deliberada. A faca terá relevância. A garota leva o gato para fora, e conhecemos um portão auxiliar – que não é trancado. Agora, seja lá o que venha a acontecer, aquelas testemunhas estranhas do caminho realmente se tornam elementos com poder de ação. Mais tensão.
Nós a vemos cortar limões; em seguida ela usa a faca no jogo com a mão. Eles continuam sem saber os nomes um do outro – por que ela mantém o anonimato? Eles estão bebendo mais e se drogando mais, e Naz fura a mão da garota. Eles se beijam, transam, o episódio navega com a música – não sem antes vermos a mão ensanguentada da garota passar por lugares como o corrimão da escada; durante, vemos marcas nas costas de Naz. Mais provas, mais tensão em meio ao entorpecimento de ambos.
Quando o protagonista acorda, a trilha se extinguiu e o diretor trabalha com o silêncio. A situação condiz com a vida. Não temos uma música de fundo nos avisando sobre os momentos de aflição, alegria, qual a nota certa para gozar. Os eventos que mudam a vida de uma pessoa ocorrem no mais profundo “silêncio que precede o esporro”, como diria O Rappa. Assim, Naz caminha para o clímax do Ato 1, o evento que mudará sua vida.
Uma série, com seus muitos episódios, pode replicar a mesma estrutura em vários níveis, como já abordamos no Paradigma. Por episódio, por trama, por temporada, para a série toda.
Quando ele encontra a garota morta, sua vida muda. É o clímax da Apresentação do episódio, mas para a série, é mais. Para os oito episódios que temos pela frente, esse é o evento que justifica a história. É o incidente incitante de The Night Of.
Um grande mérito do episódio foi retratar o desespero de Naz desse momento em diante. Uma pessoa morreu na frente dele, alguém que estava com ele, transou com ele, e a associação de que ele está na merda (encrencado não resume tão bem, sinto muito) é instantânea. Não se espera de um garoto nessa situação a completa razão, o pensar em cada passo. Esse tipo de narrativa está reservada a Liam Neeson, Bourne, 007.
Ele está desesperado e tem todos os motivos para agir conforme isso – sendo frágil, influenciável, tendo rompantes.
O comportamento do protagonista também se adiciona à tensão que vinha sendo alimentada. Quando se espera que ela extravase, o contrário acontece: ela escala. Como ele pode escapar? Será preso? E todas as evidências no caminho?
Richard Price e Steven Zailian, roteiristas (o último também é o diretor), pegam essa última pergunta e jogam para o alto. Como dissemos, Naz está desesperado. Estado de espírito que só pode atrapalhá-lo e produzir mais evidências contra o garoto. Vemos ele passando a mão pelo mesmo corrimão com sangue, esquecendo a chave do carro, quebrando o vidro da casa quando retorna – o que atrai uma terceira testemunha, um vizinho –, pegando o frasco de cocaína e a faca, provável arma do crime. Uma avalanche de decisões ruins.
No táxi, a direção da trama continua. Naz vira em uma esquerda proibida e atrai uma patrulha policial. Mais tensão aqui é eufemismo. Tudo pode dar errado, sua mão ensanguentada pelo vidro marcando o táxi, a insistência da policial em cumprir seu trabalho (mesmo em conflito com seu desejo de ir pra casa após o fim do turno), e a faca em seu bolso. Então o jogo vira para ele ser liberado, e desvira, com Naz tendo que acompanhar a patrulha. O táxi fica parado, reservando um conflito futuro entre o protagonista e o pai.
Agora, junto a dois policiais, somos levados com o garoto para uma cena de invasão de propriedade – a casa da garota. Não sei como o nome da série não é The Night of Shit (A Noite da Merda, tradução livre). O vizinho está presente, mas não reconhece Naz, nem sabe determinar a raça do suspeito. Policiais se agrupam para entrar na casa, e quando o inevitável é descoberto, uma profusão de pessoas é aglomerada, de um detetive chamado para o caso, Box, até o retorno casual do homem que foi preconceituoso com Nasir, ao passar pela mesma rua.

Ei, vim testemunhar um crime sem meu amigo.
A todo tempo, somos levados de volta ao desespero do protagonista, levado para a delegacia. Ele não matou a garota – até aqui, não acredita que matou, pelo menos – e a situação parece sem saída. Tudo soa factível, até fugir dali. À sua volta, ele vai sendo cercado, a tensão crescendo. O vizinho chega, mais policiais chegam, Box chega, e ele vai sendo encurralado antes mesmo de ser preso – com a faca no bolso. Mais tensão.
Alcançamos o tempo onde a Confrontação deve acabar, e nos encaminhamos para a Resolução. É Naz sendo chamado para testes pelo infortúnio dirigindo o táxi. Vemos sua mão na grade da recepção e lembramos do sangue, e começa uma revista.

Naz por 100 segundos sem respirar.
A policial é minuciosa na revista. Ouvimos Box falar sobre o assassinato de Andrea (finalmente conhecemos o nome da garota) enquanto o policial que esteve na apreensão de Naz pede informações ao garoto. São exatos 100 segundos entre o início da revista e a faca ser retirada do bolso do casaco, batendo com a descrição simultânea de Box. Muito tensos 100 segundos, e a tensão finalmente explode. O garoto tenta fugir, não consegue, a segunda testemunha chega, sendo o homem que o reconhece.
A filmagem do pedágio ocorre aos 7 minutos de episódio. A cena da revista na delegacia se encerra aos 55 minutos. São 42 minutos construindo e escalando a tensão até esse momento, de forma similar ao feito no filme Sicario, no vídeo do início do texto. Sensacional.
O Ato Três é a conclusão do episódio, mas como é comum das séries, seu papel também é preparar o terreno para os próximos episódios. Agora Naz está preso, ainda que preventivamente. Vemos como a força policial, centrada na figura de Box, assume o garoto não só como principal suspeito, mas como culpado. Basta seguir o processo para confirmar a tese, um julgamento antes do tribunal.
O personagem de Box é promissor devido à atenção que dá ao olhar o garoto e aos detalhes do processo. Seu olhar pode suscitar a esperança de ele enxergar inocência no menino, eventualmente. Mas esse não parece o tom da série, e a possível impressão já é contradita na ação do detetive. Ele manipula Nasir de modo a conseguir o máximo de informações, sem quebrar nenhuma etapa do processo legal – nem fornecer ao suspeito a oportunidade real de um advogado ou defensor público.
A policial que prendeu Naz tenta ir para casa depois de algumas horas extras cumpridas – sem sucesso, pois a investigação é o mais importante para a administração policial. O interrogatório de Box ao negro que testemunhou contra Naz fortalece o cuidado do detetive com o processo legal – e a predisposição racista de um policial com um negro. O homem branco que era testemunha foi ouvido primeiro, liberado primeiro, e nunca são mostrados conflitos com ele no interrogatório – pois não há. Com o negro, há uma potência de que uma testemunha vire culpado de outros crimes próprios, alguém pisando em uma sala de armadilhas.
Nos primeiros dois blocos do episódio, Richard e Steven plantaram tensão ininterruptamente, até chegarmos ao destino de Naz. No último bloco, a necessidade muda. Eles querem abordar as nuances (ou escancarar as incoerências) do sistema judicial, do trabalho policial, então plantam aqui as possíveis aberturas para essas falhas.
Contudo, Naz importa. Como um brinde para guardarmos para os episódios seguintes, uma mentira no testemunho. O companheiro de caminhada da testemunha, aquele homem do olhar fixo em Andrea e Naz entrando na casa, não é citado. Por que ele está sendo protegido?
O protagonista também ganha um advogado, John Stone, que reconhece o desafio que será uma investigação liderada por Box. Do lado da família, o pai busca seu filho até o final, e o conflito pessoal que o garoto enfrentará começa a se desenhar. O pai sai para encontrar o filho e não encontra seu táxi. O desespero para proteger ganha seu primeiro estímulo para virar uma desconfiança, em uma família de cultura conservadora. Estará Naz sozinho?
Na próxima noite, descobrimos.
Gosta da série? Você pode ler as reviews dos outros episódios de The Night Of aqui.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.