“Samson and Delilah” ou “Sansão e Dalila” é parte de uma história bíblica do Antigo Testamento. O judeu de força descomunal (graças a seus cabelos) se apaixona por uma mulher de um povo inimigo, os filisteus. Eles formam um casal, contra as indicações culturais de ambos os povos, até descobrirmos a traição de Dalila.

Ela corta os cabelos de Sansão, que sem sua força é preso e tem a visão tirada. Após algum tempo, é levado como atração para uma festa ao deus Dagom. Incapaz de proteger o povo de Israel, Sansão ora a Deus pelo retorno de sua força. Com a prece atendida, ele derruba as colunas do prédio onde ocorria o evento, morrendo junto com três mil filisteus.

A história escolhida para dar nome ao sexto episódio me fez perceber o caminho percorrido pelos criadores na segunda metade da temporada. Antes, em “The Season of the Witch”, temos uma caça a Duane, mas também uma caça à Naz: as câmeras de trânsito, o exame toxicológico, o uso da faca na opinião de um legista.

Nasir continua sendo abordado por ser o protagonista, mas The Night Of nos dera quatro suspeitos desde o início, então hora de abordar os dois últimos.

Finalmente reencontramos o homem do carro funerário no posto de gasolina. E que reencontro.
A primeira bela escolha narrativa é dar a Chandra, não a John, o papel de confrontação. Primeiro porque precisávamos de uma variação, segundo por dar à advogada tempo de tela para desenvolver sua importância na trama. Um conceito de construção de personagens aponta que, quando a pessoa autora encontra um bloqueio criativo, uma boa saída pode ser colocar a personagem em questão em uma situação com a qual ela não está acostumada.

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Entrando em um lugar com essas portas vermelhas….

Tanto Chandra não mostra em seu perfil um hábito de lidar com homens intimidadores como nós não fomos apresentados a essa possibilidade até então. É colocada frente a um homem extremamente misógino – não o machismo padrão, mas além, com uma visão de total desprezo pelas mulheres, com base na história de Sansão e Dalila. Mr Day (Esau Pritchett) causa arrepios por suas opiniões e por como se dirige a Chandra. O principal detalhe, no entanto, é a passagem do esmalte vermelho nas unhas do cadáver feminino na maca. Mais uma vez a cor vermelha, em uma cena que já seria bastante ameaçadora por si só. Será a promessa de uma violência futura de Mr Day, ou a comunicação sobre a possível violência que ele já cometeu?

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A sequência do encontro e o efeito do mesmo sobre Chandra joga sobre o suspeito um grande alvo do público nas costas, a sensação de que ele é a resposta para o caso (especialmente com a não menção de Duane, corroborando sua fuga). No entanto, enquanto para um o título do episódio é literal, para o outro ele se encontra nas entrelinhas.

John não cuida de Mr Day, mas não perde seu enfoque padrão. É ele o responsável por perseguir pistas sobre Don. São revelações de calibre. O ex-marido da mãe de Andrea é um personal trainer com histórico de enriquecimento através de fortunas de viúvas. A última cena do episódio estampa o projeto de Johnny Bravo em seu modus operandi, com uma aparente nova vítima.

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John tem outros dois pontos de destaque. Um é a forma como se aproxima de Chandra quando esta se mostra abalada pelo encontro com o possível assassino. É aquela parte do personagem que responde a suas necessidades mais inconscientes e nos impede de nos apaixonar por ele de vez. O lado positivo é a aparente cura do problema de seus pés. É um dos pontos altos de Sansão e Dalila. Turturro mais uma vez arrasa mostrando a alegria do advogado após tantos episódios de expressões melancólicas. Ele coloca sapatos!

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Uma das teorias da internet relaciona o estado dos pés de John com a situação de Naz. Em dois episódios, a defesa encontrou três suspeitos e boas evidências para gerar dúvidas no júri, o que é uma grande melhora, especialmente após todas as estratégias apresentadas pela promotoria em “The Season of the Witch”.

Dá medo que os pés de John piorem nos dois últimos episódios, afinal não temos qualquer suspeita do motivo de a receita chinesa ter funcionado. Porém, não podemos esquecer que a situação de Naz até pode ter melhorado subjetivamente, aos olhos do público. Mas ele ainda tem um buraco muito fundo sendo cavado sob seus pés – com a ajuda dele próprio.

Naz se submete ao uso de drogas, faz uma tatuagem, vende tempo de uso de seu celular, faz mais flexões em uma cena do que eu consigo fazer em um dia. Por fora, a transformação em criminoso está completa.

Seu passado também segue revelando detalhes inesperados, como a descoberta de Box sobre o garoto que ele quase matou na adolescência. O primeiro dia de tribunal é um desastre. Ele chega com uma camisa indevida e precisa trocar na última hora. O trabalho da Promotoria mostra com bastante força a facilidade de se atribuir o homicídio ao garoto.

Esses momentos são contrastados com cenas em que o preso faz uma ligação para Chandra no meio da noite, ou mesmo quando não aceita a camisa oferecida por Freddy para ir ao julgamento. Usando os termos da biologia, Naz se tornou um criminoso em seu fenótipo (as caraterísticas visuais), mas seu genótipo (características genéticas) continua dúbio, conflituoso.

A grande questão que segue é, qual será o seu conflito com Freddy? Ele mantém posições, como a questão da camisa, mas nada que faça ameaças ao poder. Se junta nas drogas, no xadrez, não se rebela contra o papel que é esperado dele no esquema criminoso. A relação entre os dois é trabalhada de forma tão inteligente que chego a me sentir respeitado pelos criadores.

Isso porque sabemos que Freddy é inteligente, sabemos que Naz também é, e seria muito chato cair nos clichês de uma rebeldia que não enxerga as consequências óbvias, ou de um tirano que perde a paciência e se torna violento por bobagens como o uso de uma camisa.

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“Ainda vou transformar você em um preso de verdade”. Lembra quem foi a última pessoa a dizer isso?

Respondendo a legenda da imagem: foi Calvin, o homem do óleo de bebê com a água quente.

O conflito não reside em como os dois se tratam, mas no próprio conflito interno de Naz. É esse o papel do garoto abusado por outro dos capangas de Freddy. A posição frágil, violentada do garoto incomoda Naz em seu âmago, é difícil de ser ignorada. O abusador não gosta da ideia de Naz se intrometer, portanto já tivemos a ameaça de morte ali. Mas o grande risco não se resume a uma briga entre protegidos de Freddy. O grande perigo é saber como este reage quando Naz não for capaz de conter seu conflito e o problema escalar, arriscar a estrutura de poder do chefão.

The Night Of consegue nos navegar por essas tramas principais sem deixar de evidenciar o dano ocorrido à família por todo o caso. A dificuldade da mãe e do pai em conseguirem emprego, a realidade até pouco mostrada do irmão mais novo. Como lida um jovem com tanta discriminação (no caso, islamofobia)?

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Quando a discriminação é parte integral do sistema, se rebelar contra ela se iguala a se rebelar contra o próprio sistema. Não é à toa que a resposta vem através de uma pichação.

Voltando a Naz, além de seus conflitos e seu contexto de piora ou melhora, o interessante é que temos pela primeira vez ele se lembrando. Cenas do piloto, “The Beach”, aos poucos são trazidas de volta por um olhar entorpecido de quem se lembra após o uso de drogas. Mas é o próprio fato de estar entorpecido que nos dá algo além. Naz não estava sóbrio na noite do crime. É possível que aos poucos, nos dois últimos episódios, enquanto o protagonista mergulha nas drogas, tenhamos acesso a lembranças desconhecidas e reveladoras.

Por último, uma das coisas que mais gostei em Sansão e Dalila foi o retrato do julgamento. Como ele é chato. Estamos acostumado a cenas empolgantes, retóricas ágeis, complexas e idas e voltas surpreendentes. Um discurso de um promotor ou aquela defesa preparada na semana anterior mudam a cabeça de todo um júri. Isso é tão fantástico quanto é fantasioso. The Night Of começa a desfazer essa imagem da exceção dos julgamentos, nos mostrando a regra, desde a exibição do vídeo que o júri é obrigado a ver.

O julgamento é arrastado, a promotora Helen é entediante, Chandra até vai bem, mas somente por ser extremamente breve e direta ao ponto, não deixando a insegurança tomar conta. O tribunal passa imagens e mais imagens, vídeos e mais vídeos, segundos e até minutos de silêncio apenas para que alguém consiga pausar o frame no momento certo e quem sabe convencer o júri de sua própria narrativa.

Quase como alguém que busca as imagens “certas” do episódio para fazer uma review.

Gosta da série? Você pode ler as reviews dos outros episódios de The Night Of aqui.


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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