Ordinary Death começa por seu título. Box olha para um corpo, uma mulher negra, morta a facadas. Onde está a mídia, o público na rua, o mutirão de policiais, a atenção dada ao caso de Andrea? Por que essa morte é tratada de forma tão… Ordinária?

A diferença de audiência
É notável a semelhança do estado dos corpos das duas vítimas. Assisto o episódio sem conseguir desligar a impressão de que é Duane Reade o assassino da última. Será a indicação de que é o assassino da primeira?
A visão de banalidade sobre o fim da vida perpassa todo o episódio, no mesmo ritmo que a série sempre percorre. Impressiona que ela consiga manter esse ritmo lento, de cenas que tomam seu tempo para enquadrar o personagem ou o cenário, enquanto precisa acelerar a trama pois está no seu final.
O mérito de tramas meticulosamente construídas é a capacidade de chegar nos momentos decisivos sem forçar. É o que acontece em praticamente todo o enredo. A proximidade de John ao gato, a transformação de Naz, a infelicidade e dúvida de Box, o terror que se torna a vida da família muçulmana. Tudo desenvolvido em detalhes de modo que (quase) nada agora é estranho.
A atuação de destaque no episódio vai para Bill Camp. É extremamente palpável a angústia de Box com a chegada da aposentadoria. Sem qualquer diálogo ou narração, acompanhamos sua entrada na festa promovida pelos colegas, como alguém se remoendo. Ele precisa beber, em um clima solitário e escuro, para conseguir preencher um documento para a aposentadoria, que apenas indica seu caminho ao escolher a opção “Ordinary Death”.
É um tremendo trabalho de atuação e fotografia transmitir tanto apenas em imagens. Box se remoe não só porque não sabe o que fazer com o resto de sua vida, mas porque sabemos desde o início que ele nunca esteve muito à vontade com a imagem de Naz como assassino, ou como um assassino tão brutal pelo menos. Agora ele sabe também o que deixou escapar, os dois (ou três, se adicionarmos Don Taylor) suspeitos que ele não descobriu, e que estavam à vista.
Naz pode ser o culpado, mas ele pode ser inocente. Essa dúvida corrói Box em uma belíssima sequência, em que vemos sua infelicidade sobreposta pelo caminho do garoto, rumo à última morte do episódio, o assassinato de Victor. Mesmo sem ver o que acontece dentro de Riker’s Island, ele sabe o que acontece. Sabe que a vida de Naz está destinada a um futuro bem diferente de alguém que marca “Ordinary Death” em sua ficha de aposentadoria.
O episódio cria outras contraposições. A mãe de Naz também está corroída pela dúvida. O que a destrói é o sentido contrário. Naz pode ser o inocente, mas ele pode ser o culpado. Quando essa ideia não soa mais estranha, absurda, impensável, a mãe já não tem mais um filho. Ela nunca mais olhará para Nasir do mesmo jeito. Não é apenas o garoto que parece ter mudado para sempre.

A violência que sofre a família no vermelho de um sabonete líquido
A cena em que ela sai da côrte e é confrontada por Chandra no banheiro… Que poder. É o tipo de situação que só se destaca em meio a um julgamento reproduzido aqui, em The Night Of. Imagine a mesma cena em Law and Order ou outra série que apresente tribunais. São tantos argumentos fortes, enquadramentos dando forças à Defesa e Promotoria, cortes de câmera voltados a gerar tensões que, quando a mãe não aguenta e sai, a impressão é que a discussão causou o movimento. Que um argumento chave foi capaz de desequilibrar até a mãe, que sai correndo vendo a iminente derrota do filho. Não é à toa que aqui a produção da HBO teve a coragem de chamar Law and Order pelo nome durante o episódio.
O tribunal sempre soa legal, agitado, as grandes viradas acontecem no calor do momento. Ficamos ávidos pelo grande argumento que vai mudar todo o caso. Chandra até vai bem em Ordinary Death, consegue levantar pontos importantes para quem busca a “dúvida razoável”, mas nada aqui é sobre uma romantização do processo. Safar Khan não reage a uma foto, a uma prova da Promotoria, a uma fala de Helen. Quem a derruba é a dúvida acumulada. Tão crua e fria quanto o processo que corre, como se a vida de Naz já não contasse.
E mais do que um movimento que tire Safar da côrte, o que conta é a sua saída. Aí está outra mensagem da série. Esqueça o advogado brilhante, porque se a mãe não consegue sentar e acompanhar o filho, é essa a imagem que vai marcar o júri, o entediado grupo de pessoas que assiste por horas a fotos brutais e negações por plausibilidade. Eles lembrarão da mãe saindo. Ponto.
Além dos bons momentos de Chandra, a grande cena do tribunal em Ordinary Death é a troca entre Helen e o detetive particular Dr. Katz. A experiência do detetive o torna a pessoa mais confortável entre as envolvidas com a Defesa, alguém que já esteve nessa posição e sabe dominar o papel de testemunha. Helen, apesar de não projetar muito carisma, carrega a mesma experiência, nos proporcionando uma espécie de dança. O objetivo de todos os jogadores é o convencimento do júri, então todos trabalham as palavras na tentativa de sair com a última demonstração de força.
John, que agora é o cara que usa sapatos, não poderia ficar sem uma aflição. Sabíamos que ele ia se apegar o gato, o felino que ainda parece chave importante para a revelação do caso no último episódio. Não entendi, porém, a cena com seu filho. Em nenhum momento foi construída uma distância como essa entre John e o garoto, que parece menos interessado no pai justamente quando este consegue usar sapatos.
Pareceu uma cena voltada apenas a mostrar que John estava sendo seguido. Sua vigia a Don Taylor era óbvia, tanto que foi descoberta. O fato de ele sequer ser citado ainda no tribunal, no entanto, me faz refletir se há tempo de uma virada crível que o envolva no crime, ou se ele é apenas o golpista de senhoras.
O grande problema do episódio, no entanto, é o beijo de Chandra e Naz. Eu até acho que esse clima foi construído em alguns elementos anteriores. Mas outras construções foram ignoradas. De repente ela não parece capaz de pensar nas câmeras que podem complicá-la no caso, ou de lembrar da nova mentira que descobriu pouco antes, no mesmíssimo tribunal. Naz hospitalizou não uma criança, mas duas. Chandra arregala os olhos, não consegue segurar sua surpresa frente a nova mentira. E depois o beija?
Uma pena que temporariamente o episódio tenha saído desse tipo de questionamento, ou das burocracias do sistema, onde é muito forte. Naz é o exemplo de pessoa que sofreu bullying, pela nacionalidade, pelo estereótipo nerd. É totalmente compreensível sua revolta, seu escape pela violência, levando em conta o seu sofrimento. Ao mesmo tempo, personagens não deixam de destacar como apenas Naz reagiu violentamente. A compreensão que temos de sua dor deveria apaziguar o julgamento sobre suas reações.
Não é certo reagir hospitalizando pessoas, mas também não podemos reduzi-lo a “o único que reagiu violentamente”. Afinal vimos também como outros colegas se mostraram agradecidos à Naz através de mensagens. Sua dita violência, usada como narrativa para explicar como o assassinato de Andrea poderia ser um ato natural à Naz, pode também ser a violência de um vigilante, daquele que aguentou se levantar e bater de volta.
Viagem minha? Talvez. Mas por que você acha que nosso presidiário é quem prestou atenção à Petey? É o seu senso de justiça que torna palpável a violência seguinte, o assassinato de Victor.

Nem melhor nem pior, apenas diferente?
A personalidade de Naz, no entanto, não tem qualquer feito positivo frente aos impactos na comunidade. É assustador pensar que, na vida real, Trump fora eleito poucos meses depois dessa cena:
Outro ponto forte, novamente, é a relação do garoto muçulmano com Freddy. Mais uma vez o respeito à inteligência dos espectadores. Freddy perdeu a mamata de seus negócios, sente que Naz sabe por que e o questiona. Nasir responde. Sem reflexão, sem hesitar, porque sua mente já entendeu sua relação com Freddy, já entendeu sua própria motivação frente à Petey e Victor.
Como uma boa narrativa, essa decisão ainda é coroada com o retorno do inalador, pouco antes a grande arma de demonstração de Chandra da incoerência de Box no caso. Desde o início do episódio dois, o inalador, o grande motivo para aquele episódio se chamar “Subtle Beast”, estava esperando por sua reaparição como elemento da história. E volta em dose dupla.
Quanto à pergunta chave, sabemos que The Night Of está mais interessada em mostrar os produtos do sistema judicial do que em revelar uma trama de suspense policial. Realmente acredito que a definição dessa última parte ficará como um extra no episódio final, podendo depender do gato, de uma virada de Box e principalmente do testemunho de Naz, à medida que este tem flashes sobre a noite de “The Beach”. Então, qual a sua aposta para o assassino de Andrea?
Gosta da série? Você pode ler as reviews dos outros episódios de The Night Of aqui.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.