Nota: O texto possui spoilers do terceiro capítulo da primeira temporada de Black Mirror: The Entire History of You
“The Entire History of You” apresenta um dispositivo implantado atrás da orelha das pessoas onde é possível para um indivíduo guardar todas suas memórias visuais e projetá-las em telas através dos olhos. A interessante tecnologia é bastante funcional para lembrar precisamente de momentos felizes ou para tornar mais lúdica a narração de histórias vividas para seus amigos.
As aplicações do HD de armazenamento de memórias visuais também são úteis para fins de segurança. Liam, antes de embarcar em um avião, passa seu HD pessoal para que sejam verificadas as atividades que realizou nas últimas 24 horas. Através dessa ferramenta, seria impossível um terrorista guardar segredo de que tem uma bomba na mala.

Projetando suas memórias em uma tela de vídeo através dos olhos
O segredo, porém, desencadeia a tragédia central do episódio.
Liam desconfia da forma com que sua esposa, Ffion, conversa com Jonas em uma reunião de amigos. Voltando para casa, ao pressionar agressivamente Ffion, ela confessa que os dois já tiveram um relacionamento no passado. Ffion tenta desajeitadamente esconder a duração do relacionamento, aumentando a revolta do marido.
Ao lembrar-se de Jonas dizendo no jantar que se masturbava vendo as lembranças das suas transas no passado, Liam vai à sua casa, tomado pelo ciúme, exigir que o ex de sua esposa exclua as suas memórias com Ffion de seu HD. Ali, Liam descobre outro segredo: que Ffion e Jonas tiveram um recente encontro, omitido pela sua exposa.
Em casa, ele exige que Ffion mostre-lhe este encontro. Além da cólera desencadeada pelo ciúme e pela traição descoberta, Liam temia que Jonas fosse o pai do filho do casal. A cena de Liam assistindo à traição de Ffion é uma das mais chocantes da primeira temporada.

As suas memórias visuais organizadas em um menu amigável
A reação de Liam perante a traição de Ffion termina com o casamento de ambos. Ela é tão irresistível que Liam, no final do capítulo, perturbado pelo ciúme e tentando fugir das memórias, retira o chip de armazenamento nele instalado.
O mundo apresentado no episódio não é tão distante assim…
A aplicação de armazenamento de memória é um exemplo de transumanismo, um movimento que busca formas de utilização da tecnologia na alteração da condição humana, a fim de superar as limitações do homem: intelectuais, físicas e psicológicas. A expansão das capacidades, a partir da condição natural, pode chegar a níveis tão extensos que seria possível chamar os seres resultantes de pós-humanos.
O biohacking apresenta já na atualidade aplicações rudimentares de transumanismo. Com a filosofia hacker do Do it Yourself, já foram desenvolvidos dispositivos como colírios para melhorar a visão no escuro, chips subcutâneos que dão informações da temperatura do corpo em tempo real e um sexto sentido capaz de perceber os campos eletromagnéticos ao seu redor, implantando um imã na ponta dos dedos.
… e nem precisa ser um geek biohacker para experimentá-lo
O dispositivo apresentado no episódio serve também de alusão a coisas muito menos underground do que experimentos de biohacking. As câmeras instaladas em espaços públicos, o footprint da navegação na internet e as redes sociais cumprem o papel de HDs de memórias e os dados gerados podem ser acessados através de vazamentos, ou, para os mais desconfiados, pelos próprios operadores dessas facilidades.
Existem exemplos de constrangimentos graves causados por esses vazamentos, como traições descobertas através do Facebook e até no Google Maps. Um caso recente, de escala mundial, foi o vazamento das informações de usuários do site de encontros extragonjugais Ashley Madison.

O pedido de segredo da capa do Ashley Madison acabou sendo ignorado pela própria empresa.
Em “The Entire History of You”, uma tecnologia altamente sofisticada amplifica um processo dos mais instintivos e viscerais possíveis, o ciúme. Seja na bomba atômica, na aviação de guerra ou na memória pessoal futurista, a tecnologia por vezes esbarra nas limitações mais primitivas humanas, resultado de uma evolução tecnológica que não é acompanhada por uma evolução humanistíca. E esse é um problema que parece estar bem longe do alcance do transumanismo e afins.
Publicado originalmente no Medium por Gustavo Barreto.
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