Nota: O texto possui spoilers do quarto capítulo da segunda temporada de Black Mirror: White Christmas

Um jovem, Harry, utiliza-se de um serviço para auxílio em relacionamentos amorosos. O mentor, Matt, recebe em vídeo tudo que o cliente está vendo e o auxilia através de um ponto auditivo, dizendo-lhe como deve agir. A perversão da brincadeira está no fato de que outros clientes além de Harry veem em tempo real a jornada do rapaz. As redes sociais são os meios onde o mentor busca informações complementares sobre os interlocutores do jovem, a fim de interagir em certos círculos, ou descobrir informações que possam gerar empatia com seus alvos amorosos.

Harry entra de penetra na festa de Natal de uma empresa, onde conhece e se relaciona com uma das convidadas, Jennifer. Os dois compartilham de bastante insegurança. Ele, obviamente de abordar mulheres; ela, de conviver em um mundo onde a socialização lhe é desagradável.

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Jennifer

Jennifer se sente muito à vontade com o jovem, por ele, obviamente com orientação do mentor, demonstrar a mesma agonia com a vida social que ela. Tanto que ela o convida para ir a sua casa. Lá, tudo conspirava para uma noite de sexo entre os dois, a despeito do nervosismo do rapaz. Jennifer traz duas bebidas para relaxar. Ou não.

Ao dar a bebida ao jovem, ela conta sobre sua angústia pelo fato de que centenas de pessoas observam tudo que ela faz através de seus olhos. Na verdade, ela queria se libertar de tudo isso e o convite ao rapaz foi para ir junto com ela nessa viagem purgatória. E a forma que ela encontrou para se libertar do processo foi a morte, caminho pavimentado pelo veneno misturado à bebida dele. Tarde demais para ele quando percebeu isso.

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O homicídio de Harry

O serviço opera a partir de três tecnologias: captação visual através dos olhos, transmissão em tempo real via internet e redes sociais. As duas últimas já são cotidianas da nossa época, mas a terceira não. No capítulo, ela é chamada de Olhos Z — em The Entire Story of You, tecnologia similar já havia sido apresentada — e tem outras funcionalidades que não a gravação e transmissão de imagens em tempo real.

Quando o mentor presencia o assassinato de seu cliente, tenta rapidamente apagar todas as provas, em vão. Como lhe faltou discrição para a tarefa, sua mulher percebeu e foi questioná-lo. Ele teve que confessar seu ofício, até ali secreto. Ela, revoltada, bloqueou Matt— esse serviço também baseado na tecnologia dos Olhos Z, onde a pessoa fica incomunicável com quem a bloqueou e vice-versa.

Todavia, o serviço de ajuda em relacionamentos não é o principal trabalho de Matt. Ele presta um outro serviço, onde é instalado um chip no cérebro de uma pessoa, por uma semana. Nesse período, o chip — chamado cookie — absorve comportamentos do cérebro e, após a retirada, é capaz de emulá-los.

No caso em específico, a cliente, Greta, utiliza seu cookie para gerenciar suas tarefas diárias. Hora de acordar, ponto da torrada, compromissos são gerenciados pelo cookie emulado do seu cérebro. Ninguém melhor do que você mesmo para gerenciar a sua vida. Por ser a emulação de um cérebro humano, o cookie não se acostumou tão facilmente à rotina tão entediante de ser uma secretária pessoal. Para isso, Matt dispõe de algumas ferramentas para domar o cookie. A principal delas, é acelerar o tempo do cookie, simulando meses de solidão. Basicamente, um método de tortura. No fim das contas, Greta escraviza sua versão emulada em um chip.

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Matt e a projeção do cookie de Greta

Tudo isso foi Matt contando sua história para Potter, com quem dividia um casebre. Potter tinha um relacionamento, segundo ele, quase perfeito com Beth. Ele descobriu acidentalmente que ela estava grávida. Ela, ao saber da descoberta, disse que não iria continuar a gravidez, provocando a fúria do esposo. Bloqueou-o e saiu de casa. De quebra, saiu também da cidade, se demitindo do emprego.

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Beth e Harry

Meses depois, Potter encontra Beth na rua. Mesmo bloqueado, ele conseguiu perceber a gravidez avançada da ex-esposa. Ela não desfez o bloqueio e, numa estranha discussão, através da parede branca, Potter foi para a delegacia.

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A revolta de Potter com o bloqueio de Beth

Desde então, ele mantinha um hábito natalino. Ir à casa do pai de Beth e, de longe, poder ver o espectro de sua esposa e do bebê — o bloqueio se estende aos filhos de quem solicitou — que, com o passar dos anos ele descobriu ser uma menina. Anos depois, Beth morre em um acidente de trem e Potter tem a chance de realmente conhecer sua filha, já que o bloqueio foi desfeito. Novamente, vai à casa do avô da criança, onde ele consegue, pela primeira vez ver o rosto da criança. Nesse momento, a surpresa: ela carrega traços orientais como seu amigo. May, a filha de Beth, foi fruto de uma relação extraconjugal e isso causou toda a reação de sua ex-mulher. A relação dos dois era muito menos perfeita do que parecia para Potter.

Entrando na casa do pai de Beth, ele tenta o expulsar. Os dois tem uma briga e Potter dá um soco que mata o idoso. Potter foge, deixando a criança na casa sozinha até ser preso.

E o que causou o encontro entre Potter e Matt, no casebre, que depois se descobriu ser o local onde houve o assassinato do pai de Beth? Matt usou o seu trabalho com cookies para arrancar a confissão de Potter. Isso foi feito em um acordo para diminuição de sua pena por voyeurismo e ocultação de informações sobre um homicídio.

White Christmas fala sobre fugas: a fuga de Harry — e de todos os outros voyeurs — do medo de encarar sozinho um encontro amoroso, de Jennifer, da socialização (ou do fato de que centenas de pessoas viam seus movimentos pelos seus Olhos Z), de Matt de dizer que é testemunha de um assassinato e ter que expor seu serviço ilegal, de Greta, de cuidar adequadamente de sua vida, de Beth, de anunciar que havia traído Potter e de Potter de aceitar a realidade do fim do relacionamento. E muitas dessas fugas são mediadas pela tecnologia, seja pelo coaching de Matt a Harry, ou o bloqueio que as mulheres exercem através dos olhos Z ou o cookie de Greta. A tecnologia novamente é um leme que se direciona no sentido dos anseios humanos e não, como muitos ainda a veem, uma panaceia para os males da vida.

O episódio também apresenta algumas questões éticas. É discutível, no mínimo, uma estratégia de confissão forçada, como a feita por Potter. É uma tortura indolor. Assim como a escravização que Greta faz de sua representação no cookie, usando métodos de tortura para domesticá-lo. E o cookie, é um ser humano, ou não?

A última dessas discussões é o acordo de Matt. Não lhe é dita a contrapartida até ele conseguir extrair a confissão de Potter. No fim, ele sai das grades, mas recebe um bloqueio de todas as pessoas. Seria isso muito diferente de viver para sempre numa solitária? Um bom questionamento. Ainda mais, num dia de Natal.

Publicado originalmente no Medium por Gustavo Barreto.

Procurando pela 4ª temporada? Começamos uma série de análises detalhadas sobre os episódios recém-lançados.
Você encontra essas análises e as reviews dos outros episódios de Black Mirror aqui.


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Passo boa parte das minhas horas vendo esportes, no netflix, no bar ou perdido em textos na net. Nas restantes, escrevo no Medium e aqui sobre isso


Gustavo Barreto

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