Nota: O texto a seguir tem spoilers do primeiro capítulo da terceira temporada de black mirror.

Imagine viver em um mundo onde a sua reputação fosse quantificável em pontos, gerados através de avaliações alheias, e esses pontos pudessem ser utilizados em descontos de aluguéis, filas preferenciais de aeroportos e outros privilégios que hoje só podem ser adquiridos através do consumo. Ademais, quanto mais pontos você possui, mais fácil é o seu acesso a alta sociedade. Essa é a proposta do terceiro episódio da primeira temporada de Black Mirror.

Nele, a protagonista, Lacie, encontra-se à busca de um apartamento para si e seu irmão. Àquela altura Lacie já tinha uma ótima nota, 4,2 de um máximo de 5,0. Ela encontra a casa dos sonhos, porém o aluguel está fora do seu alcance orçamentário, exceto pelo fato de que um ganho de 0,3 pontos na sua nota lhe daria um generoso desconto. Lacie então trabalha para alcançar essa pontuação, buscando cativar as pessoas ao seu redor. Como elas lhe são desconhecidas, fatalmente essa interação é bastante artificial e até caricata.

A dinâmica do jogo da reputação inclui que cativar pessoas com rankings melhores tem um efeito dominó positivo, ao mesmo tempo que andar com pessoas com pontuação menor pode fazer a impopularidade da pessoa respingar em você. Eles fizeram algo de ruim para conseguir essa baixa reputação e se aproximar deles seria, de alguma forma, compactuar com seus erros e isso causa mal julgamento de outras pessoas, que vão dar notas baixas para quem se aproxima dos piores ranqueados.

Lacie então encontra nas redes sociais Naomie, uma ex-colega de colégio e busca a aproximação. Naomie a convida para o seu casamento, repleto de convidados com alta reputação, a oportunidade perfeita para Lacie atingir a pontuação necessária para conseguir o desconto em seu aluguel.

O mundo cor-de-rosa, onde as pessoas são artificialmente gentis com as outras, fica explicitado pelo figurino e pela decoração candy-color do início da série e da cena do casamento. Mesmo a casa da protagonista, que ficaria em um bairro de classe baixa, é muito mais bonita do que uma periferia de um filme comum.

Uma vizinhança de classe não muito alta em Nosedive. Reparem que ela tem o viaduto que é comum nas representações desses lugares em obras cinematográficas. Mesmo assim, bem mais bonitas que nos filmes tradicionais.

O ponto é que nós já vivemos em um mundo onde a reputação abre portas, gera privilégios e até dinheiro. Conseguir bons contatos é um meio de garantir uma carreira profissional bem-sucedida, aumentando a sua riqueza. Nesse processo, existem atitudes bastante artificiais como a bajulação ou a postura pasteurizada do bom profissional. Tal postura esconde traços do ethos de cada um, que sejam distantes dessa postura padrão, ou coisas mais delicadas como a vida fora do trabalho e até o gênero. O meio político é um outro exemplo disso e essa dinâmica é brilhantemente retratada em House of Cards. A aproximação com os marginalizados, como mendigos, travestis, prostitutas também abaixa a reputação no mundo real. A quantificação só deixa as coisas mais agudas, justamente pela possibilidade de explicitar e comparar a reputação de cada um.

Contudo, nem todos querem entrar no jogo da gentileza artificial do mundo cor-de-rosa e têm ojeriza à superficialidade dos jogadores. O taxista que leva a protagonista ao aeroporto lhe dá uma nota baixa, justamente por isso. Os personagens não afeitos a esse jogo, como o irmão da protagonista, o taxista e a caminhoneira usam roupas em tons cinzentos.

Susan, a caminhoneira de Nosedive

Lacie não consegue sempre manter a compostura. Ao saber do cancelamento do seu voo, inviabilizando a participação no casamento de Nancie, ela tem uma crise histérica e é avaliada negativamente por todos que estavam ao seu lado, da forma mais anti-empática possível. O episódio deflagra um ciclo vicioso em sua vida. Tenta ir para o casamento de carro, mas pega um modelo caindo aos pedaços por não ter reputação suficiente para mais. No caminho rumo ao casamento, é avisada por Naomie de que não deveria mais ir à celebração pela sua reputação que abaixou muito nas últimas 24 horas e aquilo causaria um impacto negativo à Naomie.

Diante dessa notícia, Lacie se vê no fundo do poço, distante do objetivo de conseguir o aluguel de sua casa nova. Porém, quando não há mais nada a perder, a liberdade é total. Dotada dessa plenitude, Lacie chega ao casamento da colega e denuncia toda a futilidade daquele mundo de aparências e as escolhas feitas e escondidas por Nancie para atingir esse status.

É o apogeu da redenção de Lacie, que começou quando ela pela primeira vez ofendeu alguém sem se preocupar com o status, no grupo de cosplayers, passou pela carona com a caminhoneira, que no passado buscara a aceitação como Lacie fazia naquele momento e viu a inutilidade dessa jornada e se encerrou na prisão. Lá, paradoxalmente, ela se libertou da última amarra que tinha ao mundo de relações superficiais: a lente através da qual ela fazia as avaliações e pode insultar e ser insultada, sem medo de ser feliz, o colega de cadeia.

A grande angústia desse capítulo é saber que o mundo desenhado não está muito longe do qual habitamos. Sistemas de reputação já são usados em aplicativos como o Uber e o AirBnB, onde os usuários e os provedores de serviço são avaliados. Não é muito difícil de imaginar que um dia esses sistemas poderão se unificar e gerar apenas uma nota de avaliação. A exposição e o julgamento da vida nas redes sociais no episódio é bastante próxima do que já vemos hoje.

Como conseguiremos nos salvar de uma distopia tão próxima? Pensar menos no futuro e perceber mais o seu redor com um olhar crítico, certamente é mais útil. E se você parar de falar palavras em inglês, como invite, top-down, target, só porque seu chefe fala, eu já fico deveras agradecido.

Publicado originalmente no Medium por Gustavo Barreto.

Procurando pela 4ª temporada? Começamos uma série de análises detalhadas sobre os episódios recém-lançados.
Você encontra essas análises e as reviews dos outros episódios de Black Mirror aqui.


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Passo boa parte das minhas horas vendo esportes, no netflix, no bar ou perdido em textos na net. Nas restantes, escrevo no Medium e aqui sobre isso


Gustavo Barreto

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