Nota: O texto possui spoilers do primeiro capítulo da primeira temporada de Black Mirror: The National Anthem
O primeiro capítulo de Black Mirror conta a história do rapto da Princesa Susannah, duquesa de Beaumont e membro da família real britânica. O seu sequestrador faz uma única exigência. Extremamente inusitada e bizarra: que o primeiro ministro, Michael Callow, transe com um porco ao vivo em rede nacional.
O capítulo traz várias provocações sobre a nossa sociedade. Dessas eu tirei três para melhor comentar abaixo: a política maquiavélica, o voyeurismo sádico, e o que é a arte.
Política Maquiavélica
Maquiavel defende n’O Príncipe que, para um príncipe, mais importante do que ser virtuoso é parecer ser virtuoso, conselho esse que parece ser levado à risca na política contemporânea dos marqueteiros que decidem eleições. O zelo pela imagem do primeiro ministro fica claro no início do episódio, quando o governo liga para todas as redes de televisão, a fim de abafar a notícia de que houve uma chantagem a Michael Callow, com ameaças de boicote aos canais caso a notícia fosse divulgada. Mesmo com o vídeo da ameaça já postado no YouTube, a imprensa tradicional ainda é vista como avalista da informação, definindo se o vídeo seria real ou uma mera piada.
Depois da divulgação da história, o principal ponto para a decisão de Callow de obedecer ou não à imposição do sequestrador, são as pesquisas instantâneas de opinião. À medida que os ventos da opinião pública iam para um lado ou para o outro, seguia a decisão do primeiro ministro, culminando na aceitação da imposição. A discussão ética do dever do principal funcionário público do Reino Unido em zelar pela vida de uma cidadã, ou até a obrigação que um súdito teria em uma monarquia com a corte real, ficaram à margem da questão estética da imagem do político perante à sociedade. Achariam ele forte por se submeter ao desafio, ou nojento por protagonizar aquela cena?
Voyeurismo sádico
Durante a idade média — e mesmo nos tempos de Jesus Cristo — eram habituais espetáculos de apedrejamento e outras punições violentas em praças públicas. Avançando um pouco a história, trocaram-se os personagens do espetáculo do sofrimento. Eram os escravos os chicoteados nos pelourinhos perante famílias completas, num típico passeio de domingo.
Chegando ao século XX, com a quase extinção da escravidão, deu-se um ar de civilidade à sociedade e essas atrações foram extintas. Porém, o exercício do sadismo coletivo necessitava de novos meios.
Com a difusão das mídias, criou-se a noção de celebridade, uma pessoa que se torna superexposta através da fama e através da admiração criada perante o público. Se, no início, o enfoque era sobre amenidades reveladas por elas em revistas, como hábitos e anseios pessoais, de forma a tornar essas quase divindades em humanos, não tardou o surgimento de publicações que mostravam o lado obscuro da vida das celebridades. No conjunto de tudo que elas queriam esconder estariam relacionamentos extraconjugais, abuso de drogas, entre outros. Estavam definidas as novas vítimas do sadismo coletivo.
Saber os podres de uma personalidade é, além do prazer sádico em si, uma forma de tirá-la de um pedestal de adoração e colocá-la em um nível mais próximo à plebe. Um famoso que tem uma overdose de cocaína, deixa de ser um morador do olimpo inatingível, para ser par do viciado que você encontra todo o dia na rua. A miséria humana aproxima e estimula esse voyeurismo sádico.
O estímulo ao sadismo é maior tanto for o destaque da personalidade e a baixeza do fato. A ideia de um primeiro ministro transando com uma porca, é um prato cheio para ele. A contradição do espetáculo da miséria humana é que, por um lado ela aproxima a grande massa das personalidades e do outro ela anula qualquer empatia do público. É apenas um espetáculo vazio. E, em tempos onde cada um pode ser paparazzo e a exposição da vida já é atração independente da fama do exposto, vide os nudes, a avidez por esse espetáculo se acentua.
O que é arte?
As exposições de arte contemporânea se notabilizam menos pela qualidade das obras do que pela excentricidade das mesmas, como a obra em que um tubarão foi guardado em tanque de formol, e vendida por 6,5 milhões de libras em 2004. O absurdo é tão extremo, que se notabilizou o caso dos óculos que foram deixados no corredor de um museu e todos começaram a observar, achando que tratava-se de uma obra de arte.

Óculos deixados em um museu: até pegadinha é obra de arte contemporânea
Todas essas situações expõem o seguinte questionamento: se, praticamente qualquer coisa pode ser arte, o que é arte?
Um vídeo no YouTube do sequestro de uma princesa, seguido por toda a cobertura televisiva em tempo real da busca pelo cativeiro, com a imagem do suposto dedo da vítima sendo cortado e depois enviado à televisão, se encerrando com uma cena de zoofilia entre o Primeiro Ministro e uma porca pode ser considerado arte?
Foi essa a conclusão apresentada em um encarte de cultura no final do filme: “Talvez esse sequestro tenha sido a primeira grande obra de arte do século XXI”.
E pode fazer sentido: ela incluiu diferentes meios de exposição — a internet e a televisão — , foi ao vivo e teve a sobreposição do papel de espectador e de personagem de todos aqueles que acompanhavam a notícia e acabavam sendo figurantes da peça. Uma espécie de cinema pós-moderno, poderíamos dizer.
Em um momento onde o individualismo questiona muitos valores comuns da sociedade, dado que o “ponto de vista de um pode valer mais que as convenções sociais”, bastaria apenas uma coisa para uma obra ser considerada arte: ter um público.
Conclusão
The National Anthem é um capítulo sobre a falta de empatia nos nossos tempos. Demonstrado pela visão que os políticos têm do eleitorado como um mero indicador de popularidade ou do drama da princesa como trampolim para aumentar a aprovação do primeiro ministro e do público que vê no sofrimento de um indivíduo exposto ao ridículo um espetáculo digno de aplauso. E a falta de empatia não é exclusiva de um setor, uma classe ou uma corrente ideológica.
Epílogo: e se o primeiro ministro fosse um político corrupto?
Não fica claro em nenhum momento da série se a opinião pública considerava o primeiro ministro um político torpe e corrupto.
Nos tempos onde o justiçamento se torna uma postura cada vez mais válida, existiria um público cativo para ver o ministro sofrer apenas como vingança a seus crimes como político.
Publicado originalmente no Medium por Gustavo Barreto.
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