Nota: O texto possui spoilers do primeiro capítulo da segunda temporada de Black Mirror: Be right back.
“Be right back” conta a história de um jovem casal, Martha e Ash, subitamente interrompida por um acidente de carro que vitimou fatalmente o marido.

Ash e Marta. Be right back.
Durante o velório, Sarah, amiga da viúva, conta para Martha sobre um novo serviço onde é possível conversar com pessoas mortas. Não é algo similar às atividades paranormais de falar com os mortos, mas sim uma simulação feita das atitudes da pessoa através de suas postagens em redes sociais.
A primeira reação de Martha é de desprezo pela arrojada proposta de sua amiga. De toda a forma, ela guardou o e-mail de contato desse serviço, possivelmente para um momento onde ele fosse necessário.
Ao descobrir-se grávida de Ash, Martha deparou-se com a solidão e a insegurança do impacto de tão importante notícia. Ela não estava à vontade para se abrir com a família e somente uma pessoa naquele mundo poderia dar-lhe conforto. Era Ash, que, apesar de não estar nesse mundo, era facilmente acessável através de um serviço de simulação de conversas com os mortos.
O homem e a máquina
A máquina entra na vida do homem junto com a revolução industrial em uma relação que experimentou diferentes fases. No início, ela era meramente profissional, onde a interação entre homem e máquina era uma forma de aumentar a produtividade da economia e produzir novos bens. A inovação da economia levou as máquinas para dentro da casa dos trabalhadores, tanto na forma de utensílios domésticos, quantos para fins de entretenimento, como o rádio e a televisão.

Tempos Modernos: O início de uma difícil relação entre homem e máquina
Com o desenvolvimento dos microprocessadores e softwares, as máquinas adquiriram algo que realmente poderia ser chamado de inteligência artificial. Um bom exemplo para notar essa evolução é a trajetória dos videogames: ao compararmos edições de um mesmo jogo de videogame, separadas por 20 anos, é nítido o desenvolvimento gráfico e da inteligência artificial dos personagens.
O estágio mais recente, sobre o qual ainda estamos situados, são as aplicações de big data, onde é possível o processamento de um volume imenso de dados extremamente variados e em alta velocidade, de forma a oferecer sugestões adequadas para o seu estilo de vida, em função do seu footprint, ou seja, do rastro de informação que deixamos ao navegarmos pela internet. Todo esse desenvolvimento tornou mais ubíqua a presença das máquinas e muito mais próxima sua relação com o homem.
E quando essa relação fica íntima demais
Martha estava cada vez mais próxima do simulacro eletrônico de Ash, resolvendo experimentar um produto mais avançado: um androide que teria as feições do seu marido em tamanho real, modelado em função dos dados obtidos de suas redes sociais e capaz de interagir fisicamente com ela.
A chegada do robô tornou mais realista a convivência de Martha com seu falecido marido. A aproximação com a realidade, por outro lado, acelerou os confrontos entre o Ash que morrera e o androide que estava em sua frente. Ao ver Ash materialmente representado, ela sente falta de tudo o que fica oculto na exposição feita por nós nas redes sociais: os defeitos, os momentos ruins e os desejos mais íntimos.
A cena do sexo é a mais emblemática de todas. Justamente quando o ser humano se despe de suas roupas, tanto no sentido literal, quanto as vestes necessárias ao convívio familiar, social e do trabalho, estava Martha, tentando transar com um robô vestido com a etiqueta que apresentamos no ambiente social, nesse caso, o virtual. Como o próprio androide disse:
There’s no sexual response. I didn’t discuss it on line
(Não há registro da minha resposta sexual. Eu não discutia isso na internet)

Uma DR entre Martha e o Androide
O androide de Ash não sangra, age de forma programada no sexo e só se revolta quando isso é solicitado por Martha. Ela não consegue lidar com o papel de administradora de um robô feito para apenas satisfazer seus desejos. Martha leva-o a um penhasco. Ele adverte-a para não pular. Ela pede-lhe para pular e ele se recusa, já que no mundo asséptico das redes sociais, Ash nunca demonstrou vontade de se matar.
No final do episódio, é o aniversário da filha do casal, ali uma menina já crescida. A garota pede mais um pedaço e vai até o porão entregar ao androide Ash. Mas era apenas uma farsa para ela comer mais uma fatia, realizada com a ajuda do seu boneco, que por alguns momentos fez o papel de seu pai na vida de Martha, antes dela nascer.
A economia desenvolve novos produtos a fim de satisfazer necessidades do ser humano, mesmo as que ainda não existem. Esse processo por vezes é tão agudo, que somos tratados literalmente como crianças mimadas — veja o caso dos alunos-cliente das escolas. Durante boa parte da trama, Martha preferiu conviver com o pastiche de Ash a encarar a realidade de sua morte e reorganizar a sua vida através da aproximação com parentes e amigos. Ela foi uma metáfora de como muitos preferem em certos casos o virtual ao real, ainda que aquele seja uma experiência quase esquizoide. Mesmo após ver inviabilizado um convívio natural com o androide ela ainda quis mantê-lo vivo, como um enfeite, a ter que descartá-lo, o que poderia representar em sua mente uma nova morte de seu amado. Uma outra noção esquizoide. Uma outra metáfora para a vida.
Por ora, o desenvolvimento tecnológico não foi capaz de criar um androide com inteligência artificial equivalente à de um ser humano. Mesmo no mundo da série, a distância é grande — apesar de, através do big data, não estarmos muito distantes de um androide como o de Ash. O debate entre o desenvolvimento e a ética em torno da criação de seres com inteligência artificial equivalente à humana, possivelmente será uma das marcas de nosso tão jovem século.
Publicado originalmente no Medium por Gustavo Barreto.
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