Qual o tema do filme?
Da simplicidade de “salvar o mundo” em Vingadores ou na franquia 007 até a eterna análise e discussão de filmes complexos, como Poderoso Chefão, Taxi Driver ou Pulp Fiction, não cansamos da pergunta.
Por vezes, entender o tema de uma história pode parecer uma charada, mas não é só pelo desafio que nos interessamos.
Histórias são pequenas visões de mundo. Elas nos ajudam a tornar a vida inteligível; através de histórias, absorvemos perspectivas além das nossas.
Quando nos perguntamos qual o tema de um livro, um seriado, uma peça, um álbum de música ou um filme, estamos buscando uma ou muitas visões de mundo embutidas ali por uma pessoa ou equipe de autoras/roteiristas.
Claro que seria difícil colocar no colo da pessoa com o dever de parir o roteiro de Velozes e Furiosos 8 a responsabilidade de “entregar uma visão de mundo”. Em franquias como essa, falamos de uma indústria, afinal.
Contudo, tendo a acreditar que cada grande obra, grande história, tem ali a visão de mundo autoral permeando suas nuances. Permeando desde o ambiente até as decisões mais cruciais das personagens, até o clímax.
E nenhuma grande obra tem uma frase como:
“Nota do autor: o tema dessa história é a relação do ser humano com o luto”.
Para que sua visão nos alcance de fato, a pessoa do outro lado precisa embutir sua visão dentro da história. Eventos devem ser criados para confirmar ou confrontar respostas que revelam a tese autoral. E ninguém melhor para ser porta-voz dessa visão do que as personagens, criações autorais.
Assistindo ao filme A Qualquer Custo (título original “Hell or High Water”), me impressionou como todas as personagens, desde as principais até as que apenas compuseram o “ambiente”, tem alguma função na visão de mundo, no tema do filme.
A sinopse: dois irmãos roubam bancos no interior do Texas e são perseguidos por dois policiais.
Sem spoilers, sem desenvolvimentos e sem tema. Pela sinopse, o filme poderia ser sobre a natureza do roubo. Sobre a natureza de policiais. Sobre o sistema criminal. Sobre a masculinidade, já que são papéis estereotipicamente masculinos. Ou sobre a feminilidade, quebrando os estereótipos.
Para explorarmos o tema do filme, precisamos analisar as cenas. Estudar as falas e ações das personagens. Buscar as dicas que o roteiro nos deixa para captar a visão de mundo. A partir daqui, avançando cronologicamente, investigaremos esses instantes, com spoilers.
Na página 9 do roteiro, durante o segundo roubo a que assistimos, ainda no início do filme:
TOBY
Não estamos roubando de você, estamos roubando do banco.
HOMEM VELHO
É a mesma coisa, filho.
TANNER
Nem no inferno é a mesma coisa.
O primeiro roubo dos irmãos movimenta o início do filme com uma apresentação acelerada, dando as primeiras pinceladas sobre os personagens. Não temos nenhuma luz, no entanto, sobre a motivação do ato.
É no segundo roubo que aparece o primeiro conflito de ideias. Na cabeça dos irmãos, há uma separação entre o banco e o cidadão à frente deles. Apenas o banco é o alvo. Para o senhor presenciando o assalto, não há a separação, apenas o roubo.
Não é possível saber, no entanto, qual é a tese defendida no roteiro. Só acessamos a pergunta.
Na página 26 do roteiro, os irmãos conversam no carro sobre o plano que estão executando.
TOBY
Você fala como quem acredita que não escaparemos por isso.
Tanner se inclina para ele.
TANNER
Nunca conheci alguém que escapou de qualquer coisa. Nunca. E você?
Essa é a primeira oportunidade em que Toby questiona Tanner sobre a esperança do último no sucesso do plano. Uma conversa que pode soar superficial, mas é o primeiro momento que expõe em palavras uma ideia trágica, uma noção contrária, de desesperança.
Essa noção permeará todo o roteiro e, com a história posicionada (ladrões, policiais que os caçam, o avanço do plano), cresce o espaço para que essa desesperança seja desenvolvida.
Por volta da página 34, os policiais Marcus e Alberto cruzam com caubóis atravessando a estrada com um rebanho, fugindo de um incêndio.
CAUBÓI
Seria mais fácil se eu só ficasse aqui, de pé, e deixasse (o incêndio) me transformar em cinzas. Me tirar da minha miséria… É o Século XXI e estou correndo com 300 cabeças de gado, contra o fogo, para ver quem chega primeiro ao rio. Não é sem razão que minhas crianças não querem esse caos como vida.
O caubói que participa do diálogo, um personagem pontual e sem nome, aprofunda a noção trágica que acabamos de abordar. Correndo contra um incêndio que devasta a região, sem saber para onde correr ou como continuar quando o fogo passar. Sua tragédia é a miséria, a falta de futuro, até mesmo a falta de sentido em continuar vivendo essa vida.
Alberto chega a questionar Marcus sobre se devem ligar por ajuda, ao que o mais velho responde:
MARCUS
Esses garotos estão por conta própria.
Guarde essa informação.
Na página 37, com os irmãos em casa, o roteiro passa por uma breve descrição:
Toby nota uma prateleira paralela ao teto, logo abaixo dele. Sobre ela estão fotos deles garotos, adolescentes, jovens adultos. Eles são as únicas coisas ali que não estão quebradas ou em desordem.
Ao descrever que basicamente tudo naquela casa, naquele ambiente, está quebrado ou em desordem, a situação de pobreza é estabelecida. Não só uma pobreza financeira, mas de estrutura familiar, de planos, de rumos.
Como um extra, ao dizer que os irmãos não estão em desordem, o roteiro nos mostra justamente que o que eles estão fazendo, o plano de roubos aos bancos, é parte da ordem. Não é só organizado, como é necessário.
Podemos justificar de maneira descontextualizada que a necessidade de roubar dinheiro vem da pobreza simplesmente. Contudo, essa necessidade não justificaria o ambiente desesperançoso que é estabelecido em todo o cenário, em toda a região. O foco poderia ficar na família; para que mostrar os caubóis com o gado?
O roubo é necessário porque virá, de alguma forma, combater essa desesperança. Combater a desordem estabelecida. E a chance de insucesso no roubo, vista por Tanner, é a própria derrota para a desesperança.
Por volta da página 43, Marcus e Alberto aparecem na lanchonete onde os irmãos lancharam, ao lado do terceiro banco, assaltado por Tanner. Marcus faz perguntas a alguns clientes presentes sobre o que viram.
MARCUS
Vocês todos estão aqui há um tempo?
ANTIGO FREQUENTADOR
Tempo suficiente para assistir a alguém roubando o banco que vem nos roubando por trinta anos.
Repare na relação dessa fala com a última cena destacada. Ela acaba de responder sobre a relação do roubo com a desesperança. Os bancos, as “vítimas” dos assaltos, são os assaltantes em primeiro lugar.
O senhor diz, com a anuência de seus colegas, que o banco local os assalta há trinta anos. Mas um banco não faria isso sozinho, ou perderia a clientela. O banco o faz como parte do sistema. É o sistema bancário/financeiro que causa a desordem.
É assim que a pobreza apresentada ao longo da história se estabeleceu.
Logo após, a garçonete que atendeu os irmãos, Jenny Ann, aparece para ser questionada pelo policial. Ele descobre que ela recebeu uma gorjeta em dinheiro, no valor de 200 dólares.
MARCUS
Posso ver as notas com que eles pagaram?
JENNY ANN
Sem chance.
MARCUS
São evidências.
JENNY ANN
São evidências se eles são os ladrões. Até lá, é a minha gorjeta.
Seus olhos se apertam.
JENNY ANN (CONTINUAÇÃO)
E metade da minha hipoteca. Então vá arranjar seu mandado e vir atrás do dinheiro. Estarei usando para manter um teto sobre a cabeça da minha filha.
O interessante em começar a perceber o enfrentamento entre Toby e Tanner e os bancos como um enfrentamento de excluídos do sistema é ver o mesmo conflito acontecendo entre outros elementos.
A garçonete e o policial representam a mesma ideia. Marcus sabe que as notas que eles estão roubando são de baixo valor, não são marcadas. Não é possível rastreá-las, elas não terão qualquer serventia. Elas farão diferença na vida da mulher, enquanto para ele, serão só mais uma embalagem esquecida na sala de evidências, provavelmente até algum policial aproveitar os dólares “dando sopa”.
Ele insiste, pedindo para Alberto pegar esse dinheiro depois. Lembra da cena do caubói? Marcus diz que não pode fazer nada por aqueles rapazes fugindo do incêncio. Ele é, antes de tudo, o protetor do sistema, o representante. É o próprio sistema. É essa posição que justifica o antagonismo entre ele e Toby.
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A desesperança de que falamos se apoia na inércia do ambiente. Assim como com o caubói, com a garçonete ou com a própria terra da mãe dos irmãos, tudo parece se deteriorar, sem mudanças, sem que qualquer coisa possa ser feita sobre. Essa perenidade aparece também na página 68 do roteiro, quando os policiais almoçam em outro restaurante local.
GARÇONETE
Trabalho aqui há 44 anos. Nunca alguém pediu algo que não seja bife T-bone e batata cozida. Exceto uma vez, um idiota de Nova York pediu uma truta, em 1987. Nós não temos uma maldita truta.
É muito sutil como a fala reflete a ambientação da história. Se lembrarmos de algumas cenas atrás, um senhor falou que o banco o roubava há 30 anos. Aqui, um forasteiro vindo de Nova York, o centro financeiro do mundo, aparece pedindo o tipo de prato que o local não serve. Também há 30 anos.
A chegada do sistema bancário é a grande mudança desse local tão inóspito.
Rumo ao clímax do segundo Ato da história, os irmãos precisam que tudo esteja acertado para a finalização do seu plano. Na página 77, eles consultam o advogado que os ajudou no planejamento. Tanner não deixa de ficar intrigado: por que ele os está ajudando?
BILLY
…É o insulto de tudo isso. Aquele rancho vale meio milhão sem o petróleo, mas eles emprestaram o mínimo possível para se livrar, apenas o suficiente para deixar sua mãe pobre, com um retorno garantido. Pensaram que conseguiriam roubar aquele terreno de vocês e sugar o petróleo por 25 mil dólares. É tão arrogante que meus dentes doem… Assistir a vocês pagando aqueles bastardos com o próprio dinheiro deles… (ele ri com o pensamento) Se isso não é texano, eu não sei o que é.
Quem de nós não sente essa raiva quando vemos bancos e mega empresas lucrando bilhões, tomando empréstimos bilionários a partir de dinheiro público, para depois vermos o noticiário tomado por escândalos como no caso da Lava-Jato?
Na cena seguinte, talvez a fala mais significativa de toda a história aparece, em meio a mais um momento de Marcus aproveitando para caçoar/ofender Alberto por sua mestiçagem indígena/mexicana.
PARKER (Alberto)
Você quer viver aqui? Lojas antigas de ferramentas cobrando o dobro do Home Depot? Um restaurante com uma cobra como garçonete? Como você faria uma vida aqui?
MARCUS
Pessoas fizeram a vida aqui por 150 anos.
PARKER
Pessoas viveram em cavernas por cem mil anos, mas elas não fazem isso mais, e estão melhor por isso.
MARCUS
Talvez seu povo fez isso.
Marcus sorri.
PARKER
Seu povo também. Muito tempo atrás, seus ancestrais eram os índios e alguém veio e os matou ou quebrou e os fez mais um. Cento e cinquenta anos atrás, tudo isso era a terra dos MEUS ancestrais. Tudo que você vê. Tudo que você viu ontem. Isso tudo era Comancheria. Até que os avós desses caras tomaram tudo. Agora, está sendo tomado deles. Exceto que não é um exército fazendo isso. (PARKER aponta para o banco) É aquele filho da puta ali.
A última fala de Alberto é incrível. Ele, um policial, um dos protetores do sistema, caçando aqueles que estão enfrentando os bancos, com a consciência de que são os bancos, representantes do sistema financeiro, os atuais invasores, apropriadores. A sua origem mestiça o torna complexo, pois ele sabe como sistemas anteriores aniquilaram seu próprio povo. Até que fossem substituídos por esse modelo mais novo.
Com tudo que vimos até aqui, a construção da visão de mundo no roteiro estabelece fortemente o antagonismo do sistema, que oprime e paraliza regiões, empobrece pessoas, e sai impessoalmente ileso, ainda contando com oprimidos para fazer sua guarda. É contra isso que Toby e Tanner estão lutando, mas não para derrubar o sistema. Para “hackea-lo”. Para tornar os filhos de Toby menos reféns do mesmo, mais privilegiados dentro do mesmo.
A última cena do filme dá uma cartada final, ao mostrar a força com que essa pobreza aparentemente imbatível afeta as pessoas, enquanto Marcus e Toby se confrontam.
TOBY
Eu fui pobre minha vida toda. Meus pais também, e os pais deles antes deles… Como uma doença, passada de geração para geração. E é isso que se torna, uma doença… Infectando todas as pessoas que você conhece… mas não meus garotos. Não mais. Isso aqui é deles agora. Não há conselho que você possa dar a uma criança hoje em dia. Nenhuma lição. Nenhum amor. Nada que garanta que eles terão alguma chance na vida, exceto dinheiro. Eu odeio que o mundo tenha se tornado isso, mas se tornou. E eu te desafio a me olhar no olho e dizer que não é assim.
A pobreza é endêmica. Ela está ali nos 30 anos com os bancos, nos 44 anos com a garçonete rabugenta, e cada vez menos se vê saída. Toby podia ter matado Marcus ali, e o roteiro estaria dizendo que ele venceu o sistema.
Marcus podia ter matado Toby ali, e o roteiro diria que o sistema se vingou dos irmãos que o roubaram.
Talvez eles se matem um dia, mas essa não é a visão de mundo da história. O impasse é exatamente o argumento. O sistema é impessoal: a aparente vitória de Toby, no fundo, não muda nada. Não há vitória de ninguém, o mundo é como é.
Em um intercâmbio com o site de arteterapia Não-Palavra, abordei a visão de mundo exposta pela polêmica série da Netflix, 13 Reasons Why. Fica o convite para ler aqui.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.