Esqueça da tartaruga e do coelho. A moral dessa história não é sobre fábulas.

Quando falamos de histórias infantis, como contos ou fábulas, a moral costuma ser evidente, didática e recebe toda a atenção de quem conta a história.

Quando mudamos o foco para histórias “adultas”, a importância da moral da história se esvai. Já conhecemos morais didáticas e evidentes por todo um período, de modo que nosso interesse por elas decai.

Já histórias com morais complexas ou não óbvias, que desafiam o senso comum ou necessitam mais reflexão, parecem exigir demais de nossas mentes. Temos ritmos agressivos de trabalho, torrentes de informação inundando o cérebro, tornando o ambiente desfavorável para absorvermos significados.

Mais fácil comer pipoca assistindo a explosões em Transformers.

Conecto a superficialidade com que lidamos com histórias com um efeito cunhado pelo crítico Dan Olsen como “Argumento Thermian”.

Os Thermians são um povo da história de ficção científica Heróis Fora de Órbita (Galaxy Quest), que não são capazes de entender o conceito de ficção. Tudo para os Thermians é representação da realidade.

Portanto, quando um Thermian assiste, digamos, à 13 Reasons Why, vai acreditar que é exatamente assim que ocorre um processo suicida. Se a OMS (Organização Mundial de Saúde) se posicionar de forma diferente à da série, o povo Thermian entenderia como um conflito de ideias entre dois registros históricos.

Só que 13 Reasons Why é ficção.

Quando a série apresenta a cena explícita de um suicídio, contrariando a recomendação da OMS, essa não é uma função do universo em que se passa a história. É uma decisão das pessoas envolvidas na criação.

É nesse sentido que críticas sobre representatividade ou questionamentos morais surgem sobre histórias. Quando o estupro de Sansa Stark por Ramsay Bolton é mostrado, na quinta temporada de Game of Thrones (um estupro que não existe nos livros, inclusive), é fácil achar que ele ocorre porque é a “natureza de Ramsay”, a “realidade da época medieval”. O universo criado funciona como a própria razão de certos momentos da ficção existirem.

No entanto, a cena só existiu (e focou na reação de Theon Greyjoy, não no sofrimento de Sansa), pois essas foram as decisões autorais. Quando se critica o propósito de uma cena como essas, o que está em questionamento são as decisões de pessoas, inseridas na nossa sociedade, tomadas por vieses e ideologias. É natural que concepções de mundo dessas pessoas se tornem concepções de mundo embutidas nas histórias. Não significa que toda crítica negativa feita a uma história é bem fundamentada. Significa apenas que ser parte de um universo ficcional não é suficiente para justificar qualquer situação.

Investigando como essas concepções aparecem nos filmes e séries que assistimos, dois textos nasceram na última semana. O primeiro sobre a já citada série adolescente da Netflix. O segundo sobre o filme A Qualquer Custo.

Logo após as duas publicações, uma notícia se espalhou pelas redes: “Em ‘Rock Story’ e ‘A Força do Querer’, mulheres vão denunciar falsas violências de seus companheiros”.

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O contexto da notícia

Poucas semanas antes, o Senado Federal compartilhou uma consulta pública (SUG 7/2017), buscando saber a opinião da população sobre um projeto de lei relacionado ao estupro.

À falsa denúncia de estupro.

O projeto visa tornar essa contravenção em crime hediondo e inafiançável. Afinal, a denúncia acaba com a vida do homem acusado, mesmo que ele seja inocente, com linchamentos virtuais e a classificação de pária da sociedade, certo?

A ideia do projeto até pode chegar perto de fazer sentido para qualquer olhar distante de todo o resto da realidade brasileira. O próprio texto do Huffington Post Brasil traz alguns dos dados:

O Brasil ocupa o 5º lugar entre os países que mais matam mulheres no mundo. Grande parte desses crimes são cometidos por conhecidos das vítimas. Em geral, homens próximos à elas. São seus familiares.

O dossiê demonstra ainda que o feminicídio acontece, em sua maioria, em casos de violência doméstica. Em 50,3% dos casos levantados pelo último Mapa da Violência o assassino era um parente da vítima, e em 33,2% destes casos ele era seu parceiro ou ex.

Ao ouvir as mulheres, o Mapa da Violência constatou que 85% das brasileiras têm medo de serem agredidas fisica e sexualmente. Enquanto que 3 em cada 5 jovens já sofreram violência em relacionamentos.

De acordo com os dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada 11 minutos 1 mulher é estuprada no Brasil. São 130 mulheres violentadas todos os dias.

Outro desafio é também subnotificação.

O medo de expor violências, o temor por represálias ou simplesmente a descrença e a culpabilização da vítima faz com que, todos os dias, mulheres permaneçam em silêncio. Apenas 35% dos casos de estupro são notificados no Brasil.

Para muitas mulheres é díficil falar sobre o que causa dor e, muitas vezes, vergonha. Quem consegue chegar até a delegacia, ainda se depara com o despreparo dos profissionais para receber este tipo de vítima, além de faltar informação sobre os procedimentos de coleta das provas e do exame de corpo de delito.

Investigando as causas deste cenário, o Mapa trouxe outro ingrediente para este panorama: 37% dos homens e mulheres entrevistados concordaram que “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”.

Com todos esses dados, o que fica evidente com esse projeto é que ele apresenta risco de dificultar denúncias reais, muito maior do que o risco de um eventual inocente ser falsamente acusado.

Retornando à notícia do HuffPost, o subtítulo já destaca outra parte da realidade: “As cenas da Globo vão ao ar poucas semanas após os casos de Zé Mayer e Marcos, ex-BBB”.

Dois casos reais de abuso psicológico e assédio sexual, dentro da emissora. A própria tomou medidas como a expulsão de Marcos do programa, e um pedido de desculpas do famoso ator.

A emissora é a própria prova recente de situações da cultura de estupro.

Então, semanas depois, pessoas com poder de decisão em duas histórias da Globo, resolvem representar denúncias falsas de estupro? Em veículos de grande audiência como as novelas?

Convido a rever os dados acima. Depois rever os casos acima. Agora concluir. Faz sentido?

Qual a visão de mundo que essas histórias demonstrarão? A de mulheres “loucas” ou “interesseiras”, perigosas para homens que só estão tentando seguir a vida.

A visão de que um temor real na vida de um homem é ser falsamente acusado de estupro.

Talvez esse fosse um temor real se se tratasse de 50% dos casos.

Infelizmente, esse não é um dado facilmente conseguido. Mas não deixa de ser interessante observar os estudos que tentam chegar a essa resposta:

Em outro levantamento, realizado no Reino Unido e encomendado pelo Crown Prosecution Service há quatro anos, concluiu-se que, em 17 meses de monitoramento entre 2011 e 2012, 35 processos de falsas denúncias de violência sexual foram levados a frente. No mesmo período, registrou-se 5,6 mil casos de estupro.

Gritante e real mesmo é o temor das mulheres de serem estupradas e/ou mortas. Mas isso, a “Globo não mostra”. Talvez a moral da história seja que o negócio dela é faz-de-conta.


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.


Yann Rodrigues

Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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