Prólogo
Em uma época onde o cinema vem dependendo cada vez mais dos efeitos especiais, com filmes cheios de explosões, batalhas épicas, robôs e super-heróis, detalhes importantíssimos vem sendo deixados de lado, como o desenvolvimento de personagens.
Tudo bem, eu posso estar sendo um pouco injusto. Não é que os personagens não venham sendo desenvolvidos, mas eles não tem sido tão bem desenvolvidos como poderiam – e deveriam – ser.
Locke é quase um filme-protesto contra isso. Ele usa a ideia inversa – nada de efeitos especiais, explosões ou batalhas épicas. Apenas um homem, um carro, uma noite, uma rodovia e um telefone.
E consegue alcançar coisas incríveis apenas com isso.
[Obs: Nada contra quem gosta de filmes como Transformers – onde não há praticamente desenvolvimento de personagem – ou filmes de super-herói. Eu mesmo não perco um filme da Marvel.]Locke e a Quebra de Estrutura
Muito embora eu não vá fazer uma análise completa da obra, é importante, como em toda boa história, começar do início.
Começamos o filme no trabalho de Locke. Ele entra no carro, um piano ao fundo dá um ar melancólico à situação. Ele sai pelo portão principal, para em uma esquina e liga a seta para a esquerda.
E espera… Essa espera nos envia um sinal claro – ele está tomando uma decisão. Por quê? Ainda não sabemos, mas essa é a escolha mais importante da história. Isso é raro, e perigoso se não for muito bem feito. Analisaremos isso mais à frente.
Enquanto Locke pesa suas escolhas, e as prováveis consequências que advirão, um caminhão aparece. Seus faróis inundam o carro, a buzina o deixa nervoso.
Esse caminhão não é a toa. É uma analogia à própria vida: nervosa, querendo passar por cima, nos obrigando a tomar decisões sob pressão. O fato de Locke passar a história toda dirigindo, sem parar em nenhum momento, só reforça isso. Ele passa 99% do tempo de filme dirigindo, porque o filme pede isso, mas também porque ele não sabe o que acontece se ele parar. Igual à maioria de nós. Se não continuarmos em frente, o que nos acontece?
Então Locke toma uma decisão. Vira à direita (sua escolha inicial era a esquerda) e sua vida nunca mais será a mesma.
Isso é genial. Uma mudança pequena, parece pouco importante, mas, se formos quebrar a história em pequenos pedaços e analisar sua estrutura, veremos que esse momento é uma aula.
Se você nos acompanha há algum tempo, já leu nossos textos iniciais: Incidente Incitante e Paradigma.
O primeiro diz respeito ao que faz a história “pegar”. Quando você coloca a chave na ignição e gira, o motor ganha vida. Ele “pega”.
Com a história, é a mesma coisa. No caso de Locke, essa virada de chave é o fato de seu filho estar prestes a nascer, em Londres, a duas horas de onde ele está.
Normalmente, colocar o incidente incitante “fora das telas”, ou seja, sem que possamos ver acontecendo, é perigoso. Mas esse filme é genial por isso. Pega a estrutura e usa a seu favor.
No segundo texto, falamos do paradigma. Aqui, é essencial pegarmos a definição de mudança do Ato 01 (apresentação) para o Ato 02 (confrontação): “o ato 1 se desenvolve até que algo ocorra ao protagonista ou seja causado por ele, que reverte a história em outra direção.”
Reverte a história em outra direção. O caminho comum de Locke é sair do trabalho e virar à esquerda. Após saber que ele vai ser pai naquela noite (incidente incitante), ele faz uma escolha e muda de direção! Steven Knight, o roteirista e diretor, levou o conceito ao pé da letra, de forma brilhante.
O mais impressionante é que o ato 1 dura apenas dois minutos. E não é propriamente uma apresentação. Ele não profere uma palavra sequer. Não sabemos absolutamente nada sobre ele.
Mentira, sabemos. Sabemos que ele tomou uma escolha difícil, e incomum. Isso nos diz algo sobre ele, no mínimo.
E as primeiras palavras do filme esclarecem o ato 01, só que já no ato 02. É um recado que ele deixa para a mãe de seu filho fora do casamento: Estarei hoje aí.
Escritores costumam se prender muito à forma, às convenções. Isso faz sentido, claro. Se é uma convenção, é porque é aceito, porque faz sentido. É seguro.
Não quer dizer que seja o único meio.
A maioria esmagadora dos filmes faz a transição do Ato 01 para o Ato 02 entre os minutos 20 e 40. Locke faz com 2 minutos.
O incidente incitante costuma ocorrer até os 15 minutos, ainda no 1° Ato. Em Locke, ocorre aos 3 minutos. No Ato 02. Tecnicamente, ocorre bem antes do filme começar, mas, para nós, ocorre aos 3 minutos.
Até agora, tivemos 3 minutos de filme. Mas tive que usar 20 parágrafos. Essa é a riqueza do início do filme.
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Locke e a empatia
A partir de agora, não preciso mais fazer uma análise tão cheia de detalhes. Vou resumir a história do filme, para refrescar sua memória, e depois vou analisar a parte mais importante: desenvolvimento do personagem.
Da forma mais resumida possível, Locke é a história de um homem que decide, na noite que antecede o dia mais importante de sua carreira, abandonar tudo e ir acompanhar o nascimento de seu filho bastardo. Essa decisão acaba com seu casamento e arrisca arruinar sua carreira, mas ele continua em frente, sem parar.
O roteiro de Steven Knight é maravilhoso. É uma deliciosa mistura de momentos silenciosos que antecedem um bombardeio de diálogos que movem a trama para a frente, sempre revelando mais camadas do protagonista. Cada linha de diálogo é cuidadosamente escolhida para revelar o personagem e adicionar conflito à trama.
Locke pode não ser o personagem mais simpático, mas ele é bastante empático. Podemos não entender como sua mente funciona, ou que tipo de bússola guia seus princípios, podemos até não concordar com suas decisões, mas compreendemos ele, aceitamos, e, quem sabe, até o encorajamos de alguma forma. Chegamos ao ponto de inclusive anteciparmos o que ele fará, mas não de uma forma que diminua a trama, mas a torne mais complexa. Entendemos ele, viramos seu amigo, seu confidente.
Locke é a definição de empatia.
Sem conflito, não há desenvolvimento
Há alguns meses, também escrevi um texto sobre conflitos. Lá, discorro sobre as três formas de conflito: Interno, Pessoal e Interpessoal.
O conflito interno é entre o protagonista e ele mesmo.
O conflito pessoal é entre o protagonista e os personagens secundários.
O conflito extrapessoal é entre o protagonista e uma instituição; ou qualquer outra coisa, desde que seja exterior a ele e em relação a algo não-humano.
O conflito de Locke abrange todos os três. Seu conflito interno diz respeito a manter sua decisão inicial, custe o que custar, e lidar com as consequências. Seu conflito também diz respeito a ter tido um pai ruim no passado e não querer reproduzir esse tipo de comportamento (esse está mais para interpessoal – veja abaixo -, mas pode ser visto como interno, tendo em vista seus monólogos consigo mesmo).
O conflito pessoal é extenso: com seu chefe (Garreth), com seu amigo no trabalho (Donal), com sua esposa e com a mãe de seu filho.
O diferencial aqui é o conflito interpessoal; é ele que torna esse filme tão brilhante. É o conflito de quase todos os seres adultos, não necessariamente os homens: trabalho e família. A única parte que é exclusiva do homem é a característica de ser um pai.
O que mais ocorre é o desenvolvimento da relação entre esses três conflitos.
O melhor momento do filme, a esse respeito, é quando, depois de ter aberto o jogo para sua esposa, ele precisa ligar para ela e pedir que veja um número de telefone que está dentro do bolso de uma jaqueta, no quarto dele. Ele precisa lidar com sua esposa (pessoal), passar por cima do problema deles (casamento – interpessoal) enquanto precisa conseguir um telefone para ajudar Donal (pessoal) a resolver um problema no trabalho (interpessoal). Isso tudo causado inicialmente pelo seu conflito interno, que o fez tomar uma decisão que causou todos esses problemas.
É genial.
O trabalho de Locke
Como o caminhão no início, seu trabalho não é por acaso. Ele é diretor de construção, encarregado por uma imensa carga de concreto que está para chegar. Esse é um dos conflitos mais importantes. Tudo depende dele. 100 milhões de dólares nas suas costas.
Concreto… Quando pensamos em concreto, pensamos em algo forte e sólido. Algo que pode suportar toneladas, que mantém grandes estruturas unidas.
Mas na verdade é delicado e sensível. Se não for manuseado com cuidado, pode ter repercussões avassaladoras – como é mostrado ao longo do filme, pelo desespero de todos os envolvidos.
Locke também parece sólido e forte. Mas ele está numa situação delicada e sensível. Ele precisa manusear a situação com cuidado, correndo o risco de tudo ruir sobre sua cabeça.
Dos conflitos, nascem escolhas
Quando uma situação conflituosa nasce, você precisa fazer uma escolha para sair dela.
Uma escolha de verdade.
Como podemos saber o que é uma escolha de verdade?
Virar direita ou esquerda é uma escolha, mas não uma muito relevante, sobretudo se você puder voltar atrás e refazer essa escolha.
Escolha é ter sua mulher em trabalho de parto ao seu lado e você ter que escolher o caminho mais rápido para o hospital. Essa escolha tem consequências. E você vai ter que lidar com essas consequências.
Em Locke, a escolha é crucial. Virar à esquerda e voltar à sua vida normal e conviver com a decepção de não ter lidado com as consequências de seu descuido no passado e de sua omissão no presente, ou virar à direita, assumir o risco de ruir sua família e delegar um trabalho de suma importância, que é de sua responsabilidade, para não obrigar uma mãe a ter um filho sem pai; um conflito que é seu, e de mais ninguém.
O que é uma escolha de verdade?
De acordo com Robert McKee e John Truby, para ser uma escolha de verdade, ela precisa ser “dentre dois males, o menor” ou “escolha entre A ou B, onde você deve abrir mão de um para conseguir o outro”.
A escolha de Locke se encaixa na segunda opção.

Conflito + Pressão = Mão na cabeça, hora de pensar.
Conflito + pressão = dilema
McKee dizia:
O verdadeiro personagem só pode ser expresso através de uma escolha em um dilema. Como uma pessoa escolhe agir sob pressão é quem ela é – quanto maior a pressão, mais verdadeira e profunda a escolha do personagem.
Pressão é essencial. Escolhas feitas sem nenhum risco significam pouco. McKee ainda dá o exemplo a seguir:
se um personagem escolhe contar a verdade em uma situação em que uma mentira não lhe daria nada, a escolha é trivial, o momento não expressa nada. Mas se o mesmo personagem insiste na verdade quando uma mentira poderia salvar sua vida, podemos então perceber que a honestidade está no núcleo de sua natureza.
O primeiro nome que surge na minha cabeça é Ned Stark. Ele morreu porque decidiu pela verdade quando a mentira poderia salvar sua vida. E escolheu a mentira, para tentar salvar sua família, quando já era tarde demais.
Locke segue o mesmo caminho. Embora não corra risco de vida, ele opta pela honestidade quando a mentira poderia salvar seu casamento e seu emprego. Ele mantém sua posição, e lida de cabeça em pé com as consequências de sua escolha.

“Droga, o texto está acabando.”
Epílogo
Na teoria, parece fácil criar um bom desenvolvimento de personagem. É só saber criar conflitos, obrigar o personagem a fazer escolhas sob pressão e quebrar as regras formais da escrita.
A teoria costuma ser mais fácil que a prática.
A verdade é que Locke é um trabalho incrível, muito difícil de ser feito, mas feito com maestria. O ritmo é frenético. Não há jogadas de câmera, não há transições, não há trilha sonora, nada.
Há apenas a história, a construção brilhante de Locke, e a atuação maravilhosa de Tom Hardy.
Locke é um personagem completo, vivo, bem feito. No final das contas, ele é tão humano quanto você e eu.
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Carioca, que abriu sua própria empresa para poder ter tempo de escrever e falhou miseravelmente. Uma pessoa intensa que encontrou na escrita a única forma de extravasar tudo que passa dentro de si.