A trilha sonora é, hoje, ainda muito subestimada como um recurso essencial no storytelling.

Todos conseguem entender a importância que ela tinha nos filmes mudos, visto que todo filme mudo era acompanhado por uma orquestra que, às vezes, tocava ao vivo no cinema, acompanhando as imagens. Como único som no filme, o andamento da música, volume e estilo ajudavam aos espectadores a entenderem a profundidade emocional da obra quando o diálogo não estava disponível.

Hoje, temos diálogos e efeitos especiais para somar à fotografia, figurino, edição, maquiagem e penteado, etc. São muitos recursos, todos importantes. A trilha sonora tem seu papel fundamental, muitas vezes ignorado (deliberadamente ou não) pelos espectadores.

O exemplo abaixo (bem bobo, por sinal) mostra como a trilha sonora faz total diferença.

Um dos mais poderosos vilões de todos os tempos, cujo tema que é conhecido por praticamente qualquer um que tenha a audição intacta. Mudamos a música, mudamos a emoção que sentimos. Mudando a emoção, mudamos o contexto, e assim mudamos todo o sentido da cena e, muito provavelmente, de toda a obra.

Quando os compositores recebem a história (geralmente com o filme ou série já filmado), eles recebem junto a tarefa de criar músicas para acompanhar e complementar a trama, o tema, o estilo visual e as convenções de gênero da obra.

Quando a complementação é em relação às convenções, ela pode ser feita de duas formas: ela pode seguir as expectativas de quem está assistindo (tradicional); ou pode quebrá-las.

Vamos pensar em True Detective (primeira temporada, a única que realmente conta para mim). É um drama policial aparentemente comum: há um crime e detetives precisam solucionar o crime; enquanto isso, vamos acompanhando o desenrolar de suas vidas pessoais e como o crime as atinge. Convenção de gênero.

Só que True Detective também tem um tema um pouco sobrenatural – o caso que investigam dita isso (ritual satânico). As tomadas aéreas brilhantes mostram a união do verde da natureza às plantas industriais de Louisiana, o que confere um estilo visual diferente… que se torna sobrenatural quando aliado à trilha escolhida pelos produtores. Como essa:

Outra forma de quebrar as expectativas, ao mesmo tempo em que é utilizada para caracterizar um personagem e conectá-lo à sua vida passada, é o que foi feito em Guardiões da Galáxia. Se você já viu o filme, imediatamente relaciona o filme às músicas dos anos 70 e 80. Ela também é um recurso de humor, usada em momentos “inapropriados”.

Recurso semelhante é usado em Perdido em Marte. Mark Watney (personagem de Matt Damon) tem como única conexão com a Terra uma pequena coleção de disco music de Melissa Lewis (Jessica Chastain). A música aqui é utilizada por dois motivos: é realmente um recurso de storytelling, a única maneira (pelo menos no início) dele manter contato com tudo que deixou para trás no planeta Terra; e é um recurso de humor – a primeira coisa que ele fala ao reencontrar Lewis depois de muito tempo é: “você tem um péssimo gosto musical”.

Mas a maior quebra de expectativas que já presenciei foi em Django, de Tarantino.

Um filme sobre escravos. Um rap de Rick Ross (100 Black Coffins, se você quiser saber). E ele ainda fez isso funcionar perfeitamente.

Há a opção de você quebrar a expectativa de uma convenção criando outra convenção. É o que aconteceu com as músicas de Beethoven.

Em Laranja Mecânica, Kubrick usa um trecho da Nona Sinfonia (“Ode to Joy”) como um símbolo de perversão da arte – o antiherói Alex usa essa música para cometer atos de ultraviolência.

Em Duro de Matar (1988) a mesma música foi utilizada novamente em cenas de violência, o que também se repetiu em Psicose, quando Marion está indo ao hotel onde encontrará seu destino fatal, ela também ouve Beethoven, um prelúdio da violência que a aguarda. Em Django (desta vez com “Fur Elise”), isso também acontece, não para incitar a violência, mas para relembrá-la e colocá-la como uma possibilidade iminente.

Nota: o Além do Roteiro tem um grupo no Facebook! Acessa o link, pede para participar e chama as amizades. Você terá acesso às atualizações do Além do Roteiro, a outros roteiristas e entusiastas do assunto e a divulgações de cursos, editais, concursos e outros conteúdos sobre o audiovisual.

As escolhas musicais em The Handmaid’s Tale

As escolhas musicais na série nos mostram duas coisas diferentes. A primeira é que em um mundo em que mulheres são proibidas de ler, não têm acesso a nenhum tipo de tecnologia e nem voz, cabe à trilha gritar por sua protagonista. A segunda é que as músicas escolhidas na série são um lembrete de que apesar de o mundo ter mudado visivelmente, ainda é o mesmo lugar. A vida de Offred não está tão no passado, e as músicas escolhidas para a série ilustram esse fato ao mesmo tempo em que se encaixam perfeitamente aos momentos específicos em que foram colocadas.

De certa forma, a música funciona como um flashback, dando aos espectadores fragmentos da mulher que um dia existiu em Offred. As músicas são uma conexão ao passado, criando uma ponte entre aqueles dias felizes e o presente nada feliz.

A série começa com uma perseguição. Não entendemos exatamente o motivo, mas vemos June/Offred fugindo, desesperada, com sua filha. Algo ruim está acontecendo. Isso é claro pela expressão em seu rosto, mas também pela escolha da trilha. Além de nos deixar tensos, ela tem um tom sobrenatural, muito semelhante ao que encontramos em True Detective.

E a trama da série é surreal – mas não muito. E isso nos assusta mais do que qualquer outra coisa.

Continuamos com escolhas musicais impactantes com a “cerimônia”, logo no primeiro episódio. Se você não se lembra, “cerimônia” é o nome dado ao estupro da aia (handmaid) pelo Comandante. Não é sexo, é estupro. E ter religião no meio só transforma a situação em algo ainda mais surreal – mas, de novo, nem tanto.

O nome da música (hino, para ser mais exato) é “Onward Christian Soldiers” (‘Em frente Soldados Cristãos’ em tradução livre). E como o Comandante deve, por regra, citar Gênesis, Capítulo 30, Versículo 3 (“Respondeu ela: Eis aqui minha serva Bila; recebe-a por mulher, para que ela dê à luz sobre os meus joelhos, e eu deste modo tenha filhos por ela”) antes de dar início à “cerimônia”, não há dúvida de que a série é uma severa crítica a uma possível teocracia cristã.

Ainda no primeiro episódio, temos uma terceira escolha interessante de música, no final, quando toca a música “You Don’t Own Me”, por Lesley Gore. É uma música de empoderamento feminino, que diz claramente “não pertenço a você”. Isso acontece justamente depois dela dizer seu nome de batismo em voz alta pela primeira vez.

No segundo episódio, temos a música “Don’t You (Forget About Me)”, que serve para expandir a narrativa, pois expressa o que Offred, e outras iguais a ela, estão tentando esconder: a necessidade de se rebelar contra um sistema opressivo.

O timing é bastante significativo. A música, usada como um hino no “Clube dos Cinco”, lançado em Fevereiro de 1985, mesmo ano que Margaret Atwood entregaria o manuscrito de seu romance de mesmo nome, que deu origem à série.

Não apenas isso. Offred encontra em Ofglen a chance de sair desse sistema. Há um meio de sair, e ela sabe como. Em seguida, a música animada e a sensação de esperança de nossa heroína – que, por consequência, nos confere a mesma sensação – nos levam a assumir que as coisas irão tender para o lado positivo.

Errado.

Offred deixa sua casa e encontra uma nova Ofglen. Ao mesmo tempo, a música chega à parte que fala “will you recognize me?” (você irá me reconhecer), reforçando a sensação de frustração do momento.

No terceiro episódio, cujo final é certamente o mais impactante de toda a série, temos a música “Waiting for Something”, de Jay Reatard. Interessante notar qual é a capa do álbum de onde foi tirada essa música.

A música tem um som caótico, que ecoa a dor, confusão e raiva que Ofglen sente na hora. A letra também ecoa seu sentimento ao dizer “they won’t get me” (eles não vão me atingir).

Ainda nesse episódio, temos talvez uma das cenas mais impactantes de toda a série – por não ser vista como algo num futuro próximo, mas algo visto hoje em dia. A cena do protesto contra a revogação dos direitos das mulheres.

Essa cena é brutal. A escolha da música foi crucial para termos essa sensação de descrença e terror pelo que está acontecendo – a sensação é palpável. Conseguimos nos imaginar lá. Imaginamos exatamente o que se passa pela cabeça e coração de June/Offred.

A letra é da música “Heart of Glass” um hit do grupo Blondie, dos anos 80 também. Sua letra diz o bastante:

“Perdida por dentro
Adorável ilusão e eu não consigo esconder
Eu sou quem está sendo usada
Por favor não me deixe de lado
Nós poderíamos estar por aí sim.”

Só que essa é uma versão remixada. Usaram a letra da música e a colocaram por cima do “Concerto Para Violinos, Segundo Movimento”, de Philip Glass, precursor de um movimento na música chamado de “minimalista” – mostramos artistas contemporâneos, seguidores desse movimento aqui e aqui.

A peça minimalista de Glass também é da década de 80, o que não é, como já vimos, uma coincidência.

No quarto episódio, Offred restabeleceu seu laço com o Comandante e descobriu o que aconteceu com a Offred antes dela. Quando ela sai de seu cativeiro, imposto pela esposa do Comandante, Serena Joy, ela sai em câmera lenta da casa ao som da música acima, outra música lançada na década de 80 que musicalmente, além de seu próprio nome, denota um movimento constante e repetição de ciclos. Sempre haverá outras aias para substituir as anteriores.

É nesse momento que Offred relembra seus momentos no bunker quando foi espancada até praticamente perder as solas dos pés. Quando acorda, todas as outras aias dão a ela um pouco de suas refeições. Já no presente:

É um momento de solidariedade feminina. Que é reforçado pela última frase do episódio: “Nolite te bastardes carborundorum, bitches.” Não deixe os idiotas te desanimares.

Por fim, a incomparável versão de “Feeling Good” de Nina Simone – uma artista política, ativista dos direitos civis e antiguerra, uma revolucionária. As aias andando ao som de uma de suas músicas, após encarar o sistema de frente, é genial.

Obs: As músicas de Nina Simone são usadas em outros momentos. “I Want A Little Sugar In My Bowl” toca ao fundo do relacionamento entre Nick e Offred finalmente culminar em sexo, o primeiro momento em que Offred pode experimentar prazer naquela terrível sociedade. “Wild Is The Wind” toca em um dos flashbacks do relacionamento entre o Comandante e Serena Joy, que com o florescer de Gilead só decai.

O décimo episódio da obra prima do serviço de streaming Hulu traz de volta à memória do espectador quem são os vilões e os mocinhos da história, além de alertar sobre o perigo dessa perda de foco. Tia Lydia, por exemplo, que já há algumas semanas parecia não ser tão durona assim, desenvolvendo até um certo tipo de empatia no público, teve essa falsa imagem totalmente desconstruída logo no primeiro flashback, reforçando o lado em que ela está nessa guerra.

Depois, ela manda que apedrejem Janine (Ofwarren). Offred é a primeira a se recusar, e todas as outras, uma a uma, unem-se a ela. Depois, elas voltam para suas casas ao som de Nina Simone – uma sensação de liberdade. Só que as coisas não continuarão assim. Logo em seguida Offred é presa e a série termina em um poderosíssimo cliffhanger.


Você também pode ler nossas análises de filmes e séries aqui.

Inscreva-se para receber os novos textos do Além do Roteiro

Processando…
Sucesso! Você está na lista.

Carioca, que abriu sua própria empresa para poder ter tempo de escrever e falhou miseravelmente. Uma pessoa intensa que encontrou na escrita a única forma de extravasar tudo que passa dentro de si.


Nicholas Nogueira

Carioca, que abriu sua própria empresa para poder ter tempo de escrever e falhou miseravelmente. Uma pessoa intensa que encontrou na escrita a única forma de extravasar tudo que passa dentro de si.

%d blogueiros gostam disto: