Algumas histórias dependem do passado de um protagonista fortemente. Skyfall é um exemplo. Outras não precisam tanto de uma história pregressa, a chamada backstory, em inglês. Casino Royale é um caso. Juro que estou falando de 007 de novo porque gosto, não é implicância. Tá, talvez um pouco de implicância, mas não com esses especificamente.
Manchester à Beira-Mar é um filme altamente dependente da backstory de Lee, como analisamos aqui. Seu passado se conecta com o incidente incitante do filme e ressoa por toda a obra. Na semana em que fazia o exercício de roteiro sobre Manchester, assisti à Blue Valentine (Namorados para Sempre, 2010), dirigido e escrito por Derek Cianfrance, protagonizado por Cindy (Michelle Williams) e Dean (Ryan Gosling).
O mínimo que posso dizer é que o filme me pegou. Então vamos analisar essa criatura (spoilers à frente).
A apresentação das linhas do tempo
Blue Valentine conta com duas linhas do tempo. No presente, temos o incidente incitante logo na primeira cena. O cachorro da família desaparece. É o pontapé para a fase final de uma relação que terminará na última cena.
No passado, temos mais aspectos da apresentação dos personagens. Seus sonhos, suas personalidades. Cindy deseja estudar medicina. Dean apenas quer um trabalho de onde tirar um sustento. Cindy tem um namorado abusivo, que ejacula dentro dela sem aviso, uma violência sexual. Dean é um eterno apaixonado, cuidando da decoração da mudança de um senhor. Cindy cuida da avó.

Passado e presente em um filme de opostos
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Arco do Passado
Dean cuida da mudança de um senhor para um quarto no mesmo corredor de onde a avó de Cindy vive. Eles se vêem graças a essa coincidência e Dean se apaixona à primeira vista e deixa um cartão.
Um mês depois, ele encontra um pingente com uma foto do senhor com sua esposa. Como eterno romântico, vai até o quarto dele (mais de duas horas de ônibus) para entregá-lo. O senhor já morreu. Dean acaba falando com a avó de Cindy.
No retorno, nova coincidência, se encontram no ônibus.
A partir do encontro a relação se desenvolve. Um namoro é iniciado. O ex abusivo de Cindy continua a perseguindo após o término.
Cindy descobre que está grávida. Não é com Dean, mas pela violência sexual que vimos no início. Ela decide abortar, Dean a acompanha. No último instante do processo, ela desiste. Ele a apoia.
Cindy o apresenta à família. O ex abusivo encontra Dean e o espanca, tentando afastá-lo de Cindy. O casal sobrevive e casa.
A forma como a relação se constrói é encantadora. A forma como o casal se desfaz é angustiante, especialmente pelo encanto provocado pela linha do passado. Torcemos para que o resultado óbvio à nossa face não aconteça, torcemos até o último segundo.

O diretor pediu que Michelle Williams e Ryan Gosling surpreendessem um ao outro com um talento que o outro não conhecia. A verdade dos atores traz à tona a cena mais icônica do filme.
Por que a relação termina?
Se pensarmos apenas no que está no filme, no que aparece na tela no arco do presente, podemos nos enganar facilmente. Achar que foi a morte do cachorro, o papo de Cindy com o ex abusivo. A briga deles bêbados quando transariam no quarto de motel. Ela deixá-lo lá para trabalhar. Ou a briga no hospital, após ele encontrá-la.
Todos esses eventos são o como, não o porquê.
Um diálogo revela mais motivos que grande parte dos eventos do filme.
No quarto de motel, quando o casal está em um momento aparentemente confortável, Cindy questiona a ambição de Dean.
Silêncio. Eles mastigam. Cindy olha através de Dean.
CINDY
Por que você não faz alguma coisa…
DEAN
Como o quê?
CINDY
Não sei… não tem alguma coisa que você queira fazer?
Dean reflete sobre. Balança a cabeça.
DEAN
O que eu deveria querer fazer?
CINDY
Não sei… Você poderia fazer tantas coisas. Você é bom em tudo. Poderia fazer o que quisesse.
DEAN
Só quero estar com você.
Silêncio. Cindy tenta não parecer desapontada.

Será que houve uma inspiração na fotografia de Blade Runner?
A força desse diálogo está em seu subtexto. É o passado que está implícito, moldando a conversa. Cindy não pôde cumprir sua ambição de se tornar médica. Teve que se contentar com ser enfermeira (e ficar refém de assédio, por exemplo). Teve uma filha e, com isso, precisou limitar sua ambição com o trabalho de cuidar da menina. Ela cuida da logística da casa e coloca a maior parte financeira. Sobrecarregada, vivendo uma dupla ou tripla jornada. Sem cuidar da logística, Dean é o pai legal, divertido, enquanto fica com a mãe o papel de “chata”, que ele reforça em brincadeiras.
O passado de quem cria a história
Derek, o diretor, não analisa o meio da relação, onde encontraríamos as causas, porque o meio não importa. Relacionamentos não nascem e podem morrer. Relacionamentos nascem e morrem; essa é a visão que norteia o filme. O meio não será capaz de alterar esse destino. Focar no meio significaria focar no processo, arriscando mostrar pontos sem volta que devem ser evitados, causas e soluções.
Ao pularmos direto para o fim, para uma relação já deteriorada, fica um gosto de “destino”. Nada poderia ser feito para mudá-lo. Ficamos presos a acompanhar o como, torcendo em vão para que a certeza não se cumpra.
Em entrevistas, o próprio Derek conta como o divórcio de seus pais, que temia desde a infância e se concretizou quando tinha 20 anos, balançou seu mundo. Ele tem outros filmes, mas esse é o seu filme, sua história original, a história que ele sempre quis contar. Foram 12 anos tentando formatar a obra, um processo longo que gerou 66 versões do roteiro, mais de mil storyboards e um manifesto do diretor, explicitando as regras necessárias para a criação da obra.
O passado que molda a história
Uma vez que eventos no passado do autor fazem parte até da premissa da história, eles serão mesclados de alguma forma ao design da mesma. Esse design, o desenho dos personagens e eventos, precisa ajudar quem conta a história a justificar o final alcançado. Quando isso não acontece, dizemos que a história tem furos ou não tem sentido.
Dessa forma, Derek precisava implantar nas backstories de Cindy e Dean construções e eventos que justificassem o conflito.
Esse é um ponto delicado, pois uma história que não visa contar por que um relacionamento terminou, mas como relacionamentos sempre chegam ao fim, precisa criar essa inevitabilidade do término desde o início.
Imagine que Cindy e Dean conhecessem apenas casamentos felizes e tradicionais de seus pais. A partir desses históricos, eles carregariam valores de: estabilidade, romance, tradição. Frente a esses valores, uma crise pode ser encarada apenas como uma fase ruim. Um término corre o risco de soar um “exagero”. Os estímulos sociais determinariam que eles precisavam ficar juntos.
Não é o que acontece. Cindy tem pais em um casamento tradicional, porém infeliz. Pautada pela violência verbal e pelo patriarcado, a relação dos pais mostra à personagem um exemplo do que não seguir. A melhor forma de não seguí-lo é carregar como valor que nunca se arrastará em um relacionamento nocivo. Cindy acredita que o divórcio é uma solução melhor do que a manutenção de um casamento desastrado.
Dean viveu com o pai e praticamente não conhece a mãe. Ela abandonou a família para viver outros objetivos, com outro homem. Dean conhece, acima de tudo, a dor de crescer sem um dos pais na forma do abandono, de modo que seu valor é a família unida acima de tudo. Acima de quaisquer ambições.
Esses valores apoiam a beleza da linha do tempo do passado, em que Dean resiste às dificuldades de ficar com Cindy e investe em sua paixão.

A deterioração visual de Dean é criação do próprio Ryan Gosling.
Contudo, esses mesmos valores ajudam a deteriorar a relação. A falta de ambição de Dean afeta, em primeiro lugar, Cindy. A sobrecarga que a acomete inviabiliza seu crescimento almejado. Ainda que a gravidez a limitasse temporariamente, ela poderia seguir os planos de carreira com maior divisão das responsabilidades junto ao parceiro. Dean, no entanto, já tem tudo o que precisa. Estando “completo”, ele não percebe como as necessidades de Cindy são negligenciadas. A erosão que isso causa é refletida até mesmo na caracterização física dos personagens. É do próprio Ryan Gosling a escolha de ficar quase careca, por exemplo, evidenciando essa erosão.
A completude de Dean acaba sendo, ao mesmo tempo, uma definição romântica (passado) e opressora (presente).
À medida que os eventos avançam para o término, as cartas já foram marcadas pelo design dos personagens. O que nos angustia, pois vemos a mesma receita do passado – Dean tentando se conectar com Cindy – ser a receita do presente. Agora, no entanto, sem sucesso.
Porque, agora, Dean não é capaz de realmente enxergar Cindy.
Os valores diferentes também não permitem a ela enxergar que, diferentemente de seus pais, Dean a ama. Muito. Suas falhas não o tornam igual a seu pai. O que poderia levar a processos e resultados diferentes, caso ela não estivesse viciada por seu viés. Cindy também falha ao exigir de Dean uma mudança de personalidade que claramente nunca aconteceria. O Dean do presente apresenta resultados de uma relação em erosão, mas ainda é o mesmo Dean do passado. Sua personalidade não mudou, sua ambição não mudou. Quando essas características deixam de ser satisfatórias para Cindy, ela começa a se afastar – ao ponto de aceitar uma interação amigável com o cara que a violentou e espancou Dean.
A partir das diferentes falhas de cada um, cada espectador pode empatizar mais com a parte do casal com quem mais se identifica, e talvez, inconscientemente, Derek deixe uma visão um pouco mais favorável a um do que a outro, na tela. Mas o esforço visível é de humanização de ambos.
É extremamente difícil, mesmo para quem é de fora, lidar com um término onde não se pode apontar facilmente um culpado. Se alguém não tem culpa sozinho, ou se ninguém tem culpa, apenas aconteceu, só conseguimos torcer para que o casal fique junto.
Essa dualidade é a própria construção da história. Presente e passado, casamento e divórcio, expectativa e realidade. Acabam entrando no jogo, opostas, as evidências e expectativas do espectador.
Ao contrário do título em português, Blue Valentine já determina a história. Blue, além de ser a cor “azul” em inglês, significa tristeza. O azul toma filmes com cargas emocionais tristes como Manchester à Beira-Mar, ou a infância e adolescência de Chiron em Moonlight. Blue Valentine é o “triste dia dos namorados”, um nome poético para o dia do fim de um relacionamento.
É um puta trabalho contar uma história com fim definido desde o seu título, e ainda assim nos fazer torcer por um final diferente. Talvez por isso os créditos finais sejam esse final diferente, nos lembrando a beleza do passado dessa história, uma beleza que não desaparece apesar do presente.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.