Você já se perguntou porque uma história começa naquele ponto? Porque o filme não se inicia um ano antes na vida da protagonista? Ou um ano depois?

Tente pensar em qualquer filme do 007. Não vou tentar adivinhar qual foi.

Skyfall?

Agora responda: por que essa história está acontecendo a James Bond nesse momento de sua vida?

Na maioria dos casos de 007, não importa. Porque o personagem é uma alegoria mais do que uma pessoa. O mesmo não pode ser dito dos filmes sem caráter de franquia. Poderíamos ver Jack (Jacob Tremblay), em “O Quarto de Jack”, desde o nascimento. Passando por seus poucos anos de vida com a mãe Joy (Brie Larson) naquele quarto.

O clímax seria escapar do cativeiro. Qual seria a história, portanto? A vida de um garoto nascido em cativeiro, até o momento da liberdade.

Esse, no entanto, não é o filme. Faz parte dele. Mas a história de “O Quarto de Jack” vai além. É sobre a experiência dele e da mãe de saírem do cativeiro, após tanto tempo lá. O descobrimento (para Jack) e choque (para Joy) do mundo externo. Para essa história, os primeiros anos de vida de Jack existem, mas não precisam ser mostrados.

Entender a importância do momento em que uma história começa para o seu desenvolvimento é um grande passo para entender toda a construção do protagonista.

Manchester à Beira-Mar poderia começar mais cedo na vida de Lee (Casey Affleck). Veríamos sua família se formando, as relações com a família do irmão. O clímax seria a tragédia do incêndio que matou suas crianças. Mais uma vez, essa não é a história.

O incêndio existe no filme, mas é passado. É relevante para a história que Kenneth Lonergan, roteirista e diretor, desejava contar sobre Lee. Mas não é a história que ele desejava contar.

Após a descoberta cena a cena do filme e um entendimento sobre o peso de seu incidente incitante, podemos descobrir qual é essa história, como ela se desenvolve ao redor do protagonista.

Relações

Podemos dividir as relações de Lee da seguinte forma:

Nível 1: Patrick (Lucas Hedges), Joe (Kyle Chandler), Randi (Michelle Williams). São as pessoas com quem o protagonista demonstra maior envolvimento emocional ao longo do filme.

Nível 2: Elise, Stan, Suzy, Karen, Rachel, George. São pessoas que afetam significativamente o protagonista, pelo passado ou por decisões do presente.

Nível 3: Sr Emery, Janine, inquilinos dos apartamentos em que ele atua, Silvie, Sandy, Jill, Joel, C.G. e outras pessoas sem nome com quem ele cruza ao longo do filme. Têm menor impacto nas ações e no estado de Lee.

As características de Lee antes e depois do incêndio

Antes Depois
Carinhoso (família) Frio
Agressivo com Elise Agressivo com todos
Bebia muito e se drogava Bebe muito
Inconsequente Obsessivo com logística
Comunicativo Incapaz de se comunicar

Relações e características

Cada adjetivo e ação que definem o protagonista dialoga com um ou diferentes personagens. As relações nos ajudam a entender Lee, ao facilitar que comparemos suas ações e pensamentos com pessoas similares e opostas. Esse tipo de comparação pode ser feita para basicamente qualquer personagem.

Nos flashbacks, percebemos que Lee é mais “cheio de vida”. Chegar em casa é um momento alegre. Ele busca beijos e abraços de suas filhas e de Randi, demonstrando um carinho intrínseco ao personagem.

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Descrição da imagem: Lee fazendo carinho em uma das filhas. Repare como a camisa de Lee tem uma cor considerada quente na paleta, algo impossível de ser visto no seu figurino em qualquer cena do presente.

Esse jeito é completamente perdido após a tragédia que matou as crianças.

A mesma cena em que Lee chega em casa e demonstra essas relações também revela a inconsequência e a bebedeira de Lee.

Como mostrar essas características negativas? Se fosse feita uma cena em um carro, em que ele estivesse com a família, dirigindo em alta velocidade após beber, perceberíamos os mesmos trejeitos. E não teríamos empatia, por ser uma ação estúpida.

Ao invés disso, ele chega em casa embriagado após um dia de pescaria com Joe e Patrick. Se joga sobre a esposa gripada, abraça o filho bebê que finalmente parara de chorar; momentos carinhosos, ainda que desajeitados. Pega o bebê no colo, que quase cai, dando um susto em Randi.

Essa maneira desajeitada, misturada às qualidades, gera simpatia, fazendo o risco passar despercebido. O que aumenta o impacto no público de como sua inconsequência gerará a tragédia familiar.

As três características (alcoolismo, inconsequência e carinho) aparecem como causa do evento que mudou a vida do protagonista. Após uma festa com os amigos no porão da casa, com drogas, barulho e varando a madrugada, Lee tenta dormir. Não consegue, está agitado pela cocaína. Vai até o quarto das crianças; está congelando. Então ele volta à sala e acende a lareira (carinho). Esquece de colocar a grade (inconsequência, drogas).

Então Lee, ainda agitado, vai até o mercado. No meio do caminho, percebe que esqueceu de colocar a grade da lareira. Não vê problema (inconsequência). No mercado, compra cerveja (bebida). Volta e vê seu mundo cair.

Ao perder a habilidade de demonstrar amor, paixão, carinho, mas continuar com a bebida, entendemos que Lee, mesmo que inconscientemente, culpa as primeiras características por sua falha, ao invés das drogas.

Olhando para a agressividade, que se destacava no passado com Elise e é mantida no presente com, basicamente, todos de Nível 2 e 3, temos uma conexão com a inconsequência, que se manteve. Lee não precisa beber para ser agressivo, mas o álcool reforça essa característica. O que demonstra uma inconsequência a partir de gatilhos. Vale o destaque: Lee nunca é diretamente agressivo com as pessoas do Nível 1.

Lee também culpa a inconsequência, no entanto. Tenta resolver, quando sóbrio, adquirindo uma obsessão por logística. “I’ll make arrangements”, algo como “cuidar dos detalhes” em tradução livre, é quase seu mote. É a forma que ele encontra de não enfrentar os problemas emocionalmente, a exemplo da morte de Joe, desviando sua atenção para os arranjos necessários: funerária, enterro, vida financeira de Patrick, se mudar ou não para Manchester.

Com seu lado emocional em frangalhos e uma predisposição a cuidar apenas dos detalhes, um viés racional, Lee perde a capacidade de se comunicar, algo que ocorre com os três níveis. Esse é um dos pontos mais interessantes da história, pois Lonergan insere muitos elementos no ambiente que reforçam a dificuldade de comunicação.

  1. Lee e vice-diretor de Patrick falando no telefone. A ligação corta regularmente.
  2. George pedindo que Janine traga comida para Lee e depois desistindo. Eles gritam para se ouvir e ainda assim não conseguem, com a casa cheia após o enterro de Joe.
  3. Jill gritando para Sandy e Patrick no quarto, fingindo que acredita que estão fazendo dever de casa.
  4. Constantes diálogos em que duas ou mais pessoas se cortam e falam ao mesmo tempo.
  5. Mais de uma vez, Lee fala: “Não sei/tenho o que dizer”.

Todos esses exemplos mostram que Lee já era uma persona com defeitos e qualidades. O que a tragédia fez: intensificar os defeitos e mitigar ou eliminar as qualidades. A perda da família não causa uma explosão. Rompantes de lágrimas e gritos. Lee se fecha, se isola, praticamente morre em níveis emocionais. É um processo de erosão de sua humanidade. A capacidade de representar essa erosão é o que conferiu à Casey Affleck o Oscar, mesmo com as polêmicas em seu entorno.

É nesse estado que Lee está quando a história começa.

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Descrição da imagem: Dr. Muller e Lee no necrotério, para ver o corpo de Joe.

O detalhe de produção dessa cena é incrível. Primeiro, na fotografia, Dr. Muller e Lee estão lado a lado. Porém, o médico tem um contraste visual mais forte com seu fundo, com a porta de madeira atrás. Seu estado de espírito é mais ativo, menos incapacitado, afinal ele está acostumado ao ofício e não é o médico da família, não tem envolvimento emocional. O fundo no espaço de Lee é a parede verde, no tom claro e opaco de falta de vida, de apatia.

Mais impressionante é a caixa das luvas de borracha, ao lado esquerdo do Dr. Muller. Repare: caixa azul em cima, rasgada. Caixa rosa no meio, de cabeça para baixo. Caixa verde embaixo, em estado normal. Joe, o irmão mais velho (posição mais alta), morreu (rasgada). Lee, irmão mais novo (posição do meio) abatido pela notícia e pelo próprio estado de sua vida, de cabeça para baixo. Patrick (filho e sobrinho, posição mais baixa), que ainda não sabe da notícia, em estado normal.

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O caminho do protagonista, a história a ser contada

Agora vou precisar de algumas palavrinhas de Carl Jung (tradução minha):

A regra psicológica diz que, quando uma situação interna não é consciente, ela acontece externamente como destino. Quer dizer, quando o indivíduo permanece indivisível e não se conscientiza de seu oposto interno, o mundo precisa, à base da força, gerar o conflito que esbarra as duas metades opostas. – Aion – Estudo Sobre o Simbolismo do Si-mesmo – Vol. 9/2 – Col. Obra Completa

Um estado de erosão, de decadência de humanidade, naturalmente gera uma dicotomia interna. Afinal, Lee está vivo e não é parte do exército do Rei da Noite. No entanto, ele está imóvel. Um estado de quasi-morte que só pode ser instável, algo bem demonstrado no uso de bebida e nas brigas.

A morte de Joe é o primeiro ponto de contato dele com sua divisão interna. Tendo que lidar, mais uma vez, com o luto, surge a oportunidade de permitir emoções. Ele as trava, como visto no texto do incidente incitante do filme.

ENFERMEIRA IRENE

Sinto muito, Lee. Ele faleceu há cerca de meia hora.

LEE

Oh.

ENFERMEIRA IRENE

Sinto muito.

Lee olha para o chão, mãos na cintura. A enfermeira Irene dá um estranho afago em seu braço. Lee encara o vazio por um momento.

Mas o “destino” não desistiu. Joe colocou em seu testamento que Lee seria o guardião de Patrick. É nesse momento que toda a obsessão por logística de Lee não o protege mais de sua divisão interna. Não é suficiente.

É interessante que o roteiro, apesar de apresentar momentos emocionais fortes ao final do filme, como o encontro com Randi, deliberadamente não cria eventos que possam ser mais impactantes do que a tragédia de seu passado, que conhecemos quando Lee lê o testamento. De fato, nada poderia ser. Esse é o momento mais impactante do filme, ainda que não seja o clímax para o arco de Lee.

Ele se nega uma vida após a vida que perdeu. Morreu junto com as filhas, tomado pela culpa.

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Descrição da imagem: Randi e Lee conversando. Mais uma vez o uso do contraste com o fundo, agora evidenciando que Randi e Lee estão em dimensões diferentes. Ela seguiu em frente, tem uma estrutura sólida, uma família nova (muro). Ele é incapaz de fazê-lo (fundo desfocado, aberto).

Joe e, portanto, a história, buscam uma redenção para Lee, a partir da morte do irmão e da responsabilidade de cuidar de Patrick. Ele pode não ser capaz de cuidar do garoto 100%, mas pelo menos retornará a ter uma vida. Essa é a história de Lonergan. É possível voltar a ter uma vida, após as perdas sentidas pelo protagonista? Após tamanho luto e tamanha culpa?

O irmão mais velho era o Norte de Lee, sua referência. Em Patrick percebemos uma personalidade muito próxima de Joe ou até do Lee mais jovem. Sagaz, agressivo algumas vezes, propenso às drogas.

Enxergando a si e ao irmão no sobrinho, Lee não consegue se afastar completamente. Patrick o desafia a resolver seus defeitos, pedindo que consiga conversar com Jill ou que deixe de brigar com pessoas na rua. Um papel que apenas Joe fora capaz de assumir antes, forçando a compra de móveis para o quarto de Lee, por exemplo.

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Descrição da imagem: Lee dá a notícia à Patrick, sob olhares do treinador e do time de hóquei. A fotografia evidencia o isolamento de Patrick causado pela rotina da doença do pai e a apreensão que tanto essa rotina como a simples presença de Lee causa, com todos parados assistindo. E um pouco de exibicionismo da direção, para conseguir esse reflexo foda.

Ao transferir a guarda de Patrick para George, no final do filme, a história assume um aspecto comum das tragédias: quando o personagem não consegue vencer seus desafios e seu arco termina onde ele começou. O plano de Joe não foi bem-sucedido no nível concreto.

Contudo, se olharmos com cuidado, há uma beleza no fim do filme justamente por este se negar ser uma tragédia completa. A história reconhece o peso do passado de Lee. Na última cena, após o enterro do irmão, conversando com o sobrinho.

LEE

Eu ficaria se pudesse. Mas é impossível. Todos querem que eu me recupere. Mas é… não consigo… voltar.

Junto do reconhecimento, há uma pequena luz.

LEE

Eu ia tentar um apartamento com um quarto extra. Ou espaço para um sofá-cama.

PATRICK

Para quê?

LEE

Caso queira me visitar. Ou queira ir ao Museu da Revolução Americana. Não sei.

Essa cena mostra que o plano de Joe foi um sucesso no nível abstrato. Lee se conectou com o sobrinho. Uma pequena chama de vida voltou a habitá-lo. Sua divisão interna nunca será plenamente resolvida, afinal sua tragédia é forte demais. Mas a erosão parou. Um pouco de reconstrução começou.

Tudo a ver com um cara que vive de consertar pequenos detalhes das casas, de pias a lâmpadas.

É ou não é uma construção foda de personagem?

Bônus: Esse é o terceiro e último texto de um exercício aprofundado sobre Manchester à Beira-Mar. A descoberta, cena a cena, do roteiro foi realizada aqui. O segundo texto aborda a conexão entre Lee e o incidente incitante da história.

Tem interesse em fazer o exercício você mesmo? Dividir o próprio roteiro de sua vontade em cenas? O Além do Roteiro está aberto para hospedar sua própria análise. Você faz, aprende, e publicamos com seu nome aqui. Se gostou da ideia, dá uma olhada nesse link para ver quais filmes já foram feitos. Nesse outro link, você vê como entrar em contato com a gente. Só vem!


Você também pode ler outras análises de filmes e séries aqui.

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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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