A premissa de Três Anúncios para um Crime é genial. Uma mulher, revoltada pela não resolução do assassinato de sua filha após meses, aluga três outdoors em uma estrada em Ebbing, Missouri, para pressionar a polícia.
É praticamente impossível assistir ao filme sem já conhecer a premissa, pois sua originalidade é crucial para a venda do mesmo. Você não venderá uma ida ao cinema com “Frances McDormand entrega a performance de uma vida”; seja porque o público geral não reconhece o nome, seja porque quem conhece sabe que é de praxe ela entregar a performance de uma vida. Não, a venda é feita a partir da premissa.
Junto a essa premissa, as imagens promocionais do filme destacam o figurino de Mildred Hayes (Frances McDormand), a protagonista da história. O Oscar de Figurino premia historicamente produções de fantasia ou de cunho histórico. Raramente produções ambientadas no presente conseguem sequer uma indicação, e esse ano não foi diferente.
“Em Ritmo de Fuga”, por exemplo, toma um enorme cuidado em usar cores e figurino para coerência na construção de seus personagens. Cada roupa ali tem função narrativa, como mostra esse vídeo:
Mesmo assim, sem indicação.
Não sei se Três Anúncios para um Crime era merecedor de uma indicação nessa categoria. O mais óbvio para uma análise de figurino seria o vencedor do Oscar (e fantástico) Trama Fantasma. Mas o figurino de Mildred ficou comigo desde a primeira imagem promocional em que ela aparece – e eu não teria a competência para analisar as roupas do filme de Paul Thomas Anderson, então vou me contentar com o filme de Martin McDonagh.
Por que a protagonista de Três Anúncios se veste assim? Quais funções narrativas esse elemento cumpre?
Em uma entrevista, Martin, roteirista e diretor do filme, destacou que a ideia por trás da roupa não teve sua influência. A ideia foi da própria Frances McDormand. Para entendermos essa construção de Frances, o ideal é entender antes a concepção da história.
Martin conta que viu painéis publicitários anunciando e protestando sobre um crime há cerca de 17 ou 18 anos, e a imagem se fixou em sua mente. A ideia ficou encubada por cerca de 10 anos, como uma história potencial, até ele conseguir moldar em sua mente que esses painéis, em sua história, seriam colocados por uma mãe revoltada por um crime não resolvido contra sua família. Ou seja, ao contrário do que afirmam algumas críticas, não foi uma história feita PARA a Era Trump. Talvez tenha sido concebida e alimentada por (ou mesmo preocupada com) os mesmos vieses que nos levaram a esse presente tenebroso.
A partir dessa concepção, a dor dessa mãe foi todo o combustível da história. Antes de pensar em estrutura, Martin encadeou a história como uma linha de ação e reação pura. Mildred age pela dor profunda. Pessoas e instituições reagem a ação dela. Ela reage às reações externas.
Dessa forma, Martin afirma que as ações são tão confusas e orgânicas porque nem ele sabia o que Mildred ia fazer até que essa reação precisasse vir à tona. Essa estratégia de escrita casa com as críticas mais positivas que afirmaram sobre a imprevisibilidade da história.
Frances pensou sua caracterização a partir dessa dor profunda, casada com a personalidade de Mildred demonstrada no roteiro. Mildred é dura mesmo antes da morte da filha, como o único flashback do filme mostra. Ela não se torna dura depois do crime. Sua condição não é criada, mas é intensificada (com novos sentimentos de culpa, arrependimento, solidão).
Uma mulher nessas condições e com esse perfil não deveria ter preocupações como qual vestido colocar, no raciocínio de Frances. Ela precisaria, portanto, de uma espécie de uniforme, ainda que seja mais anti-heroína do que superheroína.
O macacão é perfeito nesse sentido. Diminui o esforço de combinar roupas. Empresta uma aura de mecânica para Mildred, ainda que ela não trabalhe em uma oficina, combinando com sua dureza.
A cor azul combina com os olhos de Frances. Os olhos são espelhos da alma, diz o ditado. Se a roupa é um espelho dos olhos, nesse caso, o azul revela o estado mental de Mildred. Uma das funções mais famosas dessa cor é a tristeza. Faz sentido que Mildred esteja se cobrindo por inteiro de tristeza.

Um plano fechado nos olhos azuis combinando com o macacão.
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O interessante é que, na primeira cena do filme, quando ela vê os outdoors e toma a decisão que dará movimento à história, suas roupas são diferentes. Aparentemente comuns. O fato de Mildred colocar o macacão que usará durante quase todo o filme para buscar o aluguel e fazer os anúncios reforça a lógica do uniforme. Ela veste aquela roupa com propósito.

Mildred dentro do carro, vendo os outdoors. Sua roupa parece muito mais tradicional e caseira, com um casaco marrom e nenhuma sensação de uniforme.
Outro ponto interessante do macacão é a cobertura que provê. Ele nunca é a roupa em contato direto com a pele de Mildred (ao menos da cintura para a cima), que usa blusas por baixo. O macacão é como uma capa, uma camada exterior que ela projeta, escondendo ou destacando a roupa (leia aqui “sentimento”) existente por baixo.
É além do macacão que o figurino varia e, nessas variações, podemos perceber as decisões e fases da personagem. A principal diferença é a direção da ação: a composição do figurino muda entre quando Mildred decide e age e quando o mundo reage a ela, pega de guarda baixa.
A postura de ataque e enfrentamento chama a cor vermelha nas camisas que Mildred usa por baixo. É com esse contraste evidente com o azul que ela vai para a frente das câmeras ou entra na delegacia para enfrentar Dixon (Sam Rockwell). Sua capa de tristeza deixa à mostra a potência vermelha de sua fúria.

Mildred no carro, com o filho Robbie (Lucas Hedges), logo após colocarem os anúncios. O vermelho se destaca em sua manga, na mão ao volante, demonstrando a intenção da personagem. Ela está consciente nessa direção.

Mildred dando a entrevista sobre a motivação para os painéis que alugou. A blusa vermelha, mesmo escondida sob o macacão, gera um forte contraste, revelando o espírito de Mildred.
Quando o mundo reage e alcança Mildred, suas cores “internas” são diferentes, como se não esperasse pela reação e com isso não pudesse se preparar para aquele confronto.

Mildred recebendo o xerife Willoughby à sua porta. Azul sobre azul. Dentro de casa, a tristeza que ela projeta é real, é interna.

Mildred no bar, encontrando Dixon na mesa de sinuca. Ela não se preparou para o enfrentamento, não tem blusa vermelha por baixo. Ainda assim, uma luz vermelha a banha. Quando perto de Dixon, ela traz sua fúria à tona, mesmo que por “improviso”.

Mildred chega em casa e o padre da cidade está conversando com seu filho. Outro momento em que ela não está preparada para um confronto e seu uniforme está “incompleto”.

Mildred na delegacia, após a situação com o dentista. Também está lá por improviso e seu uniforme está “incompleto”.

Mildred entra na delegacia para confrontar Dixon após ele prender sua amiga de trabalho. Ela vai uniformizada para a batalha, com camisa vermelha por baixo, enquadrada sobre a bandeira dos EUA. Uma simbolização rápida do povo americano. Falarei da bandana por último.
Todos esses confrontos são intercalados com situações de maior fragilidade ou rotina, que pedem outros tipos de emoção. Com isso, o figurino muda para se ajustar ao cenário. Quando está no trabalho, local onde tristeza e fúria precisam ser controladas, Mildred se cobre com outro uniforme, da loja, que evoca outras sensações pelo rosa claro mais amigável.

Assim como o macacão cobre os sentimentos internos, no trabalho ela cobre o macacão, deixando de projetar a tristeza. Ela tenta separar todo o sofrimento que vive de seu ambiente profissional. A loja como um último refúgio.
A fragilidade de Mildred é destacada com um “gesto” simples. A retirada do macacão, ao menos de seu torso, revelando as blusas internas. Após brigar com o filho, a protagonista é despida com uma blusa cinza de quem não sabe se está agindo para o bem ou para o mal. Quando ela recebe um pouco de esperança de Dixon, ao final do filme, sobre a possibilidade de encontrarem o assassino de sua filha, a tristeza dá lugar a um processo de luto, representado pela blusa preta. O luto é o processo a que Mildred se negou enquanto não teve qualquer notícia sobre o crime contra a menina. Com a esperança, ela consegue se abrir a esse processo pela primeira vez.

Mildred em casa, abatida pelo impacto de suas decisões na vida do filho Robbie.

Mildred no balanço em frente à sua casa, conversando com Dixon. Os três painéis aparecem ao fundo, no centro da imagem. A fonte da dor de Mildred como sombra de sua vida, visível de sua própria casa.
O maior nível de vulnerabilidade, no entanto, remove completamente o macacão de Mildred, a colocando de pijama, em casa, sem nem sombra da força que ela projeta em outras cenas do filme.

Mildred no fundo do poço, após os anúncios serem incendiados, recebe a visita inesperada do rapaz que coloca os anúncios, com papéis reservas.
Na cena acima, por exemplo, Mildred não é capaz de se uniformizar para uma luta que já considera perdida, então ela se entrega.
O mesmo aconteceu mais cedo no longa, logo após ela brigar com o filho e acabar tendo uma memória da filha, revivida em flashback. Sua memória é tão perturbadora que a rouba de sua força e de seu uniforme.

Mildred de pijama na cozinha, com um rouão e uma blusa interna que formam uma bagunça de cores, indicando uma bagunça de emoções.

A combinação entre azul e vermelho, presente no uniforme de Mildred, se manifesta até nos cereais na cozinha. Em qualquer ambiente ela está triste e em fúria.
O flashback também mostra detalhes interessantes ao relacionar mãe e filha. Enquanto o roteiro as distancia através de uma briga, os figurinos e cores revelam um pouco da inspiração emocional de Mildred após o ocorrido. A filha veste uma blusa vermelha por baixo de seu casaco de couro, a cor que Mildred escolhe em seus momentos de embate pela memória da menina. A mãe, já no flashback, revela um azul de quem já vive em tristeza. Talvez pelo divórcio e a difícil relação com a filha, talvez por ser de sua natureza.

Mãe e filha brigando no flashback. A Mildred do presente funde essas duas personas do passado em seu uniforme.
Podemos notar que lógicas semelhantes inspiram os outros personagens da história. Red Welby (Caleb Landry Jones), que aluga os outdoors para Mildred, usa roupa clara quando ela o aborda a primeira vez, mas assume uma camisa vermelha quando tenta encarecer o aluguel para embarreirar o plano da mulher.

Red, de vermelho, tomando coragem e assumindo um poder que não tinha anteriormente para impor a barreira à Mildred.
Dixon, assim como Willoughby (Woody Harrelson), passa boa parte do filme com o uniforme de polícia. Contudo, quando descobre sobre o suicídio de seu ex-chefe e é expulso da corporação, é tomado por uma tristeza profunda como a de Mildred, ainda que por razões diferentes. O figurino revela a proximidade dos estados emocionais.

Uma blusa azul e jeans que lembram o macacão da protagonista, enquanto Dixon projeta a mesma tristeza da mulher.
Como último elemento de destaque no figurino, a bandana aparece de forma marcante desde as imagens de divulgação até o final do filme. A primeira aparição é já no momento do aluguel dos painéis:

Mildred entrando no escritório de Red para alugar os outdoors.
Minha hipótese é que nesse momento ela ainda está montando seu uniforme, até por não sentir uma ameaça em Red. É diferente quando ela confronta a polícia na delegacia, dá entrevistas ou passa em frente aos anúncios.

Mildred ouvindo a tentativa de resistência de Red com a bandana na testa.

Mildred passando de carro em frente aos anúncios e gritando com uma jornalista.
Martin contou, na mesma entrevista, que pensaram em raspar a cabeça de Frances para dar um visual semelhante ao de “skinheads” à Mildred, mas desistiram da ideia. A bandana compensa esse recuo na decisão, garantindo um tom de agressividade ao manter o cabelo controlado. O tom verde é o que mais me chama atenção. Em outros textos, como os da 4ª temporada de Black Mirror, comentei sobre o aspecto dúbio do verde, que pode representar pureza ou corrupção (muitas vezes moral). Acho que aqui a coisa é mais simples. O verde escuro em uma bandana (ou seja, uma cobertura na cabeça) remete a cores militares. Mildred não está apenas batalhando. Ela foi para a guerra com a cidade até conseguir o que considera ser justiça.

Mildred dirigindo com Dixon, na última cena.
Quando Dixon oferece uma gota de esperança e depois uma possibilidade de vingança/redenção, Mildred começa a se despir desse uniforme de guerra, caminhando em seu processo de luto. Mesmo a caminho de talvez matar um homem, a bandana sai de sua cabeça, voltando à sua primeira posição no filme e quase sendo escondida. Mildred questiona se o que quer é mesmo essa vingança. Questionando sua guerra interna, sua corrupção moral.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.