Nota: O texto a seguir tem spoilers do filme “Um Lugar Silencioso”.
Você já viu a formatação de um roteiro? Trechos de roteiros aparecem de vez em quando nos textos por aqui. O básico está em: cabeçalho da cena, ação, personagem, fala. Como nesse exemplo do texto sobre O Lagosta:
INT. SALA DE ESTAR CASA NA CIDADE — DIA
David desce a escada levando à sala de estar. Na sala de estar senta um HOMEM que não é bonito. Ele também tem deficiência visual e usa óculos. Ele come um sanduíche de atum com maionese.
MULHER V.O.
Ele estava comendo um sanduíche de atum com maionese e calçando um par de sapatos pretos com cadarço. Ela estava na cozinha…
Existem detalhes a mais, mas essa é a cara de todos os roteiros das últimas décadas. Até que eu li o roteiro original de Um Lugar Silencioso e vi isso aqui:

Página de roteiro praticamente em branco, com apenas uma frase que diz: “John está a 10 metros do abrigo”.
Ou isso:
Ou isso:

Página de roteiro com imagem comparativa de altura. Um prédio de 20 andares com 60 metros. A Estátua da Liberdade com 93 metros. Uma turbina de usina eólica com 100 metros.
Também já vimos por aqui um exemplo de saída da formatação padrão no texto traduzido de Eric Heisserer sobre A Chegada. Ele inclui uma imagem da linguagem alienígena circular no filme:
IAN
Você está sonhando nessa língua?
Louise olha de Ian para Weber. Incerta de onde isso vai parar.
LOUISE
Tive alguns sonhos. Não significa que não sirvo para o trabalho.
Weber mostra um documento assinado no final.
CORONEL WEBER
Talvez isso signifique.
LOUISE
É só uma prescrição para minhas dores de cabeça, Kettler–
Então ela nota algo.
INSERIR: FORMULÁRIO DE ASSINATURA
… revelando que Louise assinou seu nome em um círculo.
Como um logograma cursivo.
CORONEL WEBER
Kettler me disse que você assinou com sua mão esquerda. Você é destra.
LOUISE
Bem. Eu. Quer dizer…
CORONEL WEBER
Era uma situação quando ninguém podia entendê-los. É outra quando ninguém além de você pode entendê-los.
Mas é só uma pequenina imagem. Um Lugar Silencioso faz diferente. Chuta a porta com força. Mesmo com uma quebra tão gritante, os roteiristas Scott Beck e Bryan Woods conseguiram trazer John Krasinski para o projeto e vender o roteiro. Com a entrada de John, o roteiro se adequou a uma formatação e diminuiu essas quebras visuais. Ao mesmo tempo, trouxe outras qualidades fora do padrão, como direção de som, essencial para o filme, para dentro do roteiro.
Então vamos explorar essa questão. Por que as quebras de formatação do roteiro inicial de Um Lugar Silencioso são possíveis? Por que funcionam? E o que o sucesso do filme, mesmo com as várias mudanças no roteiro após a entrada de John Krasinski, nos diz sobre essas quebras?
A resposta chave é: imersão.
Por que formatamos o roteiro?
Imagine que você vai produzir um filme da saga Harry Potter. J. K. Rowling, a autora da saga, já fez um trabalho incrível de narrativa em seus livros. Constrói tramas, personagens, indica eventos após eventos, estabelece diálogos. Poderíamos filmar diretamente do livro, não?
Não.
O motivo inicial é a mídia. O livro é uma mídia de canal direto com o público. O leitor entende seu formato, como se relacionar com ele. Até onde contar com a ajuda da escrita, a partir de onde trabalhar com a sua imaginação.
Mas um filme é outra mídia, audiovisual, de onde o público tem outras expectativas. Uma plataforma com outros recursos técnicos, ora mais limitantes, ora mais intensos. O custo de produção, por exemplo, é uma preocupação básica de filmes que não precisa passar pela mente de quem está escrevendo um livro. Afinal, qualquer palácio cabe em uma página.
Portanto, um roteiro precisa ser capaz de fornecer informações que um livro não faz, porque o objetivo de sua leitura é outro. Voltando ao custo de produção, veja a utilidade do cabeçalho nesse exemplo de Manchester à Beira-Mar:
INT. UTI – SALA DA ENFERMEIRA – CONTINUAÇÃO. DIA
– e se aproxima de GEORGE, 50, um pescador local, grande, pesado e abatido pelo clima, que está conversando com a ENFERMEIRA IRENE, 40s. Eles reagem quando Lee se aproxima.
GEORGE
Oi, Lee.
LEE
Ele tá morto?
Os olhos de George se enchem de lágrimas. Ele não sabe como reagir.
ENFERMEIRA IRENE
Sinto muito, Lee. Ele faleceu há cerca de meia hora.
LEE
Oh.
ENFERMEIRA IRENE
Sinto muito.
Lee olha para o chão, mãos na cintura. A enfermeira Irene dá um estranho afago em seu braço. Lee encara o vazio por um momento.
Um produtor lê e já entende de cara o tipo de locação que precisa. Imagine ter que cavar todas as locações necessárias em um livro como O Senhor dos Anéis? Em um roteiro, os cabeçalhos já fornecem primeiros passos rapidamente.
O mesmo vale para ações e diálogos. A formatação ajuda a destacar quais desses elementos estão mais presentes no filme, indicando com isso tom, tamanho do elenco, complexidade das cenas. Esse formato foi construído historicamente para resolver essas questões. Você pode conhecer um pouco dessa história nesse texto do site Tertúlia Narrativa.
Essas características fazem com que, algumas vezes, pessoas do ramo se esqueçam que o roteiro é mais do que mera ferramenta de produção. Afinal, há uma história ali. Ela precisa ser contada e precisa encantar, emocionar. Como encaixar a habilidade literária? A complexidade da trama?
Esse é o ponto que Jacob Krueger aborda nesse episódio do podcast Write Your Screenplay sobre Um Lugar Silencioso.
A formatação segue um propósito básico: permitir que quem lê veja o filme na pequena tela imaginária em suas cabeças, de forma fácil e intuitiva, apenas pelo exercício de ler.
Voltando ao cabeçalho, de cara, uma locação toma conta da imaginação visual da pessoa lendo. Ao ver um nome e diálogo, é possível imaginar cada atriz ou ator em um plano detalhe colocando sua fala, naquela dinâmica de plano/contraplano. Dependendo da descrição da ação que acompanha o diálogo, outra configuração espacial pode tomar a mente do leitor.
Tudo isso pode servir para o figurinista que quer entender como vestir o elenco ou para a diretora de fotografia que precisa pensar na luz ou no dono de estúdio que vê o orçamento em sua cabeça. Antes de se especializarem, todos eles precisam ver o filme em suas cabeças.
Uma vez que o roteiro serve a esse propósito, uma questão cresce. Como pessoas de especialidades diferentes, com culturas diferentes e identidades próprias, podem convergir na produção de um único filme? Como fazer com que as versões que cada um viu na sua cabeça em suas telas imaginárias sejam minimamente convergentes, para que a produção não seja um caos de pessoas discordantes?
É preciso que todas entendam o sentimento envolvido na cena. O efeito que se deseja provocar. É preciso que todas fiquem imersas. A forma de escrever um roteiro, da habilidade literária à formatação, cumpre essa finalidade em última análise. Garantir a imersão, auxiliando cada diferente leitor a enxergar o filme em sua mente.
Tá, mas como fazer isso?
Nota: o Além do Roteiro tem um grupo no Facebook! Acessa o link, pede para participar e chama as amizades. Você terá acesso às atualizações do Além do Roteiro, a outros roteiristas e entusiastas do assunto e a divulgações de cursos, editais, concursos e outros conteúdos sobre o audiovisual.
Isolar Momentos Visuais de Ação
Guarde essa sigla: IMVA. No inglês é IVMA (Isolate Visual Moments of Action). Essa sigla é a dica para o trabalho na escrita que permite que a tela na mente de cada pessoa mostre praticamente a mesma imagem.
Pegue essa minha descrição sem contexto como exemplo:
Bia devolve o celular para Vinicius e se afasta para a pista de dança.
Essa é uma descrição simples. Uma cena que pode ser filmada de muitas formas. Em um único plano, em diferentes planos com ângulos de câmera que demonstrem a relação entre os personagens. Alguém com custo em mente provavelmente verá a cena mais barata em sua cabeça, que exija o menor número de planos. Atriz e ator tentarão cavar o significado de devolver o celular e precisar desenvolver por conta própria a dinâmica entre os dois.
Nada na frase é isolado. A devolução do celular é genérica; pode ter um ou cinco passos, não sabemos. Nada é visual. A devolução do celular é um evento, mas nenhum momento dessa ação é capturado. Portanto, essa descrição não ajuda a criar o filme “fantasma” na mente de cada pessoa que lê. Duas coisas poderão ocorrer: cada pessoa enxergará um filme diferente, ou a pessoa leitora sequer enxergará uma imagem, escutará um som, devido à descrição vaga. Ela apenas lerá palavras e não se interessará.
Agora veja essa forma:
Bia pega a mão do rapaz e retorna o celular sobre sua palma. Vinicius mantém o olhar paralisado em Bia, sem olhar para a própria mão. Ele a vê se afastar para a pista de dança, ainda com a mão estendida.
O evento é o mesmo, a devolução do celular. No entanto, momentos visuais de ação são isolados na escrita. A ação de Bia de pegar a mão de Vinicius provê algum significado. A reação dele de manter o olhar nela, paralisado, aprofunda o sentimento da cena. O fato de ele a ver se afastando estabelece um ponto de vista.
O ato de pegar a mão também indica um corte e plano específicos. O diretor vai definir como a cena é filmada, mas o roteiro começa a indicar de forma clara o que o diretor precisa garantir ao capturar com a câmera. Vinicius com o olhar paralisado indica outro corte e um plano que mostre seu rosto e deixe claro para onde ele olha, sem excluir a mão com o celular, pois precisamos visualizar essa paralisia. O departamento de fotografia entende melhor que tipo de luz precisa usar. O figurino pode ter uma ideia de acessório no pulso para quando a câmera precisar dar zoom nas mãos. O produtor entende que serão necessários no mínimo três ou quatro planos e calcula melhor o custo, planeja melhor a logística do dia de gravação.
O filme começa a se desenhar na mente de cada pessoa porque momentos visuais de ação foram isolados na escrita.
Um Lugar Silencioso é excelente nesse trabalho, seja na versão original, antes da entrada de John Krasinski, mas especialmente na versão de filmagem. Vou mostrar aqui um exemplo do roteiro filmado, um trecho da excelente sequência inicial do filme:
INT. CORREDORES DE MERCADO – FIM DE TARDE
NOS MOVEMOS LENTAMENTE pelo piso, até o meio de um mercado. Entre as altas prateleiras de produtos de cada lado, alguém pode reconhecer um quase imperceptível padrão de quais prateleiras estão vazias e quais não estão. Não há movimento. Nem som.
De repente… PEQUENOS PÉS PULAM EM NOSSA TELA EM MOVIMENTO! Então, tão rápido quanto surgiram… Eles somem.
AGORA NOS MOVEMOS para um dos lados do mercado, vendo um corredor… e o outro. Enquanto chegamos ao próximo corredor, temos um vislumbre de… UMA PEQUENA FIGURA ESCURA!!! E ela se vai.
CONTINUAMOS ao longo dos corredores do mercado até o último. No fim da loja vemos… um balcão. Com uma janela. E prateleiras. De repente… UMA MULHER APARECE NA JANELA!
NOS APROXIMAMOS DA MULHER enquanto ela examina as prateleiras, lentamente se abaixando até vermos atrás dela… um garoto de 8 anos sentado, escorado na parede… ELE ESTÁ DESCALÇO. Em inspeção mais próxima vemos suor na testa do garoto, sua pele pálida de febre. O joelho da mulher toca o chão próximo ao garoto enquanto… ela vê o que estava procurando. Ela estende sua mão.
NOS APROXIMAMOS DE SUA MÃO enquanto ela alcança a prateleira… de vidros laranjas de remédios. Sua mão de repente começa a girar alguns vidros muito levemente… EM UMA VELOCIDADE BIZARRAMENTE LENTA… ela não faz nenhum som. Enquanto ela faz isso, temos o primeiro vislumbre… de nomes. Nomes de drogas. Nomes… de pessoas.
SUA MÃO finalmente alcança o fundo da prateleira enquanto ela gentilmente gira um vidro onde se lê… AMOXICILINA.
VENDO A MÃE… enquanto ela inspira devagar? Então, como se em uma cirurgia, ela lentamente fecha sua mão ao redor do vidro e GENTILMENTE começa a movê-lo mão através da prateleira até ela. Sua mão, mais uma vez, se move de forma incrivelmente lenta, agora fechada e mais espaçosa encostando em ainda mais vidros enquanto passa. ASSIM que ela chega ao fim da prateleira um vidro balança… com um BARULHO de comprimidos. Esse é o primeiro som deliberado que escutamos. A mãe… CONGELA!!!!
Uma descrição simplista poderia dizer apenas que Mia tenta pegar um remédio na prateleira. Um dos vidrinhos faz barulho e ela congela. Mas o sentimento da cena é tornado claro com uma série de momentos visuais de ação isolados, e com descrições de suas repercussões. Essa seção do roteiro tem algumas direções de câmera, pela facilidade de o diretor estar envolvido na escrita. Ainda que indicações claras de zoom no rosto de um personagem não sejam super recomendadas em nossos projetos, até o departamento de maquiagem tem indicações claras o suficiente para trabalhar, como a palidez do garoto com febre. Mas são indicações que não conflitam com as funções de cada departamento. Não é indicado o tipo de maquiagem ou o tipo de lente e câmera. Apenas o sentimento e os momentos que precisam ser destacados.
Repare nos muitos momentos visuais de ação isolados, como quando acompanhamos sua mão atravessar a prateleira em busca do remédio. O efeito nos vidros. A diferença de quando sua mão percorre a prateleira aberta ou fechada. Ou quando seu joelho toca o chão. Todos esses destaques deixam claro o que a câmera deve buscar exibir e que sentimentos e efeitos cada departamento deve buscar com sua técnica.
Boa parte do trabalho entre o roteiro vendido e o filmado foi justamente em isolar ainda mais momentos visuais de ação. Quando a bolsa da mãe rompe no roteiro original, essa é a cena:
INT. CASA DE FAZENDA, SEGUNDO ANDAR – DIA
Perto da face de Mia enquanto todo o sangue é drenado dela. Enquanto todo o SOM desaparece ao redor dela. Enquanto seu coração começa a socar contra seu peito. ENQUANTO A BOLSA ROMPE. ENQUANTO FLUIDOS DO LÍQUIDO AMNIÓTICO TRANSBORDAM POR SUAS PERNAS E PÉS.
Já no roteiro de filmagem, a cena foi transformada para essa versão (o nome das pessoas da família varia entre os roteiros, mas Mia e Evelyn são ambas a personagem de Emily Blunt):
INT. CASA DE FAZENDA – QUARTO – FIM DE TARDE
CLOSE EM EVELYN EM UM ESPELHO FEITO À MÃO, enquanto ela o encara… feito de animais coloridos a encarando de volta. No topo do espelho, o nome… “BEAU”.
DA PORTA, VEMOS TODO O QUARTO enquanto EVELYN se levanta e lentamente faz seu caminho até a porta carregando o pequeno espelho.
Assim que ela chega ao portal… para. Seu corpo se comprime. Sua face… muda. Sua mão treme enquanto ela a estende para a lateral do portal. FICAMOS COM ELA um momento e então vamos para:
CLOSE em seus pés balançando levemente à porta. De repente…
FLUIDO ATINGE O CHÃO!!!!
Além de ter aumentado a cena, consegue notar a diferença de descrição? Vou deixar para você comparar porque ainda temos assunto a discorrer.
Quebras possíveis
Um Lugar Silencioso é um filme que provoca imersão. A experiência na sala de cinema é única, pela forma como o silêncio ultrapassa a obra e toma conta do próprio público na projeção. Como se tivéssemos que contribuir com o silêncio dos personagens.

O pai coloca a mão sobre a boca do filho, para que nenhum som seja emitido. No público, sentimos que a mão está na nossa boca, tamanha é nossa imersão e consequente silêncio na sala.
Esse efeito é abrangente entre quem assiste, ainda que cada um tenha seus gostos e opiniões ao final. Um resultado que demonstra o sucesso do filme em comunicar os sentimentos envolvidos em cena para cada espectador.
Eu li o roteiro original antes de assistir ao filme. E mesmo com as diferenças na história, mesmo com o trabalho posterior no roteiro para criar ainda mais momentos visuais de ação isolados, a sensação foi a mesma. Mesmo com as quebras de formatação colocadas no início desse texto, a sensação, ao ler, foi a mesma.
Agora que entendemos o propósito da formatação, podemos teorizar por que essas quebras funcionam. E minha tentativa de resposta é: porque elas foram ainda mais eficazes do que as convenções no mesmo propósito. Inundar o leitor no sentimento das cenas, permitindo que veja o filme em sua cabeça. Vamos ver caso a caso.
A cena da primeira quebra que destaquei lá no início não existe no filme. Nela, após o parto, a mãe corre com o bebê para dentro do abrigo que a família construiu. O monstro está na plantação e a procura através do silêncio. O pai chega no milharal, tendo o abrigo em sua frente. Porém, o monstro está no caminho.
É isso que o roteiro faz ao chegar nessa situação (aqui o pai se chama John, na outra versão do roteiro se chama Lee, ambos o mesmo personagem de John Krasinski):
EXT. CASA DE FAZENDO – TARDE
John sai pela porta da frente —
O MONSTRO ESTÁ ENTRE ELE E O ABRIGO.
ENTRE ELE E SUA FAMÍLIA.
John olha para seu BEBÊ RECÉM-NASCIDO.
Seus olhos se enchem de alegria e medo.
Mia tenta abafar o choro da criança.
O monstro sente a presença deles, mas não consegue identificar a localização exata deles.
John anda lentamente mas urgentemente até o abrigo, enquanto —
O VENTO COMEÇA A SOPRAR.
AS FOLHAS DAS ÁRVORES SE DOBRAM E FAZEM BARULHOS.
O SOM DOS PASSOS DE JOHN SÃO ABAFADOS.
JOHN FECHA SEUS OLHOS.
FOCANDO TODA A SUA ENERGIA.
FAZENDO SEU MELHOR PARA NÃO FAZER UM ÚNICO SOM.
ESSA É A CAMINHADA MAIS LONGA DE SUA VIDA.
A ação já começa em uma formatação um pouco diferente, tornando cada frase uma linha, abusando da caixa alta. O que poderia ser descrito em um ou poucos parágrafos se torna uma leitura mais pausada com cada quebra de linha. A pausa contribui na construção de tensão em quem lê.
Esse formato combina com a situação do pai. Ele está em pausa, quase funcionando em câmera lenta, avaliando com cuidado como chegar até o abrigo. Seu nível de tensão é estratosférico, sensação reforçada pelo uso da caixa alta. O sentimento é tornado claro pelas frases sublinhadas. O monstro está entre ele e sua família: um dos temas do filme é a dificuldade de comunicação do pai com sua família, em especial com sua filha surda. Nessa cena, o monstro é um obstáculo concreto.
Por último, os roteiristas chutam as regras para longe, centralizam uma frase sublinhada e iniciam uma sequência de cinco páginas de roteiro com apenas uma frase. Em cada página, o tamanho da fonte aumenta e, na última, o “snap” (som do graveto sendo pisado) é acompanhado pelo itálico, como se a própria letra da página tivesse sido pisada e quebrada.

Página de roteiro praticamente em branco, com apenas uma frase que diz: “John está a 10 metros do abrigo”.

Página de roteiro praticamente em branco, com apenas uma frase em fonte um pouco maior que a anterior que diz: “6 metros do abrigo”.

Página de roteiro praticamente em branco, com apenas uma frase em fonte um pouco maior que a anterior que diz: “3 metros”.

Página de roteiro praticamente em branco, com apenas uma frase em fonte um pouco maior que a anterior que diz: “1”.

Página de roteiro praticamente em branco, com apenas uma frase em fonte um pouco maior que a anterior que diz: “SNAP”.
As frases soltas na página fazem com que nossa atenção fique exclusiva na caminhada do pai. Caminhamos junto com ele, descendo os olhos pela página. O branco que toma conta do fundo auxilia a sensação de silêncio que o roteiro precisa passar. Espaço em branco pode ter outros significados em outros roteiros, mas aqui, no filme que estabelece o silêncio e o som o tempo todo, sua função se torna diretamente relacionada ao mundo em silêncio em que a família vive.
Quando pisa no graveto, fazendo barulho, o roteiro volta ao formato mais tradicional gradualmente, representando o retorno da velocidade para a história. O barulho foi feito. Agora, todos precisam ser urgentes em seus movimentos para evitar a morte.
Apesar de essa cena não estar no filme, outras duas cenas que não estão no roteiro ocorrem. Elas são possíveis por capturarem os mesmos sentimentos que essa seção do roteiro passava. Em uma cena, o pai chega a casa para encontrar a mãe após o parto. Ele caminha vendo o rastro do monstro escada acima, temendo cada vez mais pelo pior, até finalmente encontrá-la no banheiro quando achava que estava tudo perdido. Mudou a forma como a tensão foi aliviada, mas a construção dessa tensão segue o mesmo processo.
A outra cena é a da mãe sozinha com o bebê e o monstro no abrigo inundado. O monstro se aproxima lentamente, subvertendo o que o pai precisara fazer na primeira versão do roteiro, e a mãe mantém o silêncio desesperado de si e do bebê atrás de uma queda d’água, até que algo mais distraia o monstro.
Toda a tensão está nas duas cenas. A relação do pai com a família está na primeira cena. É fácil imaginar as duas cenas escritas com a mesma formatação do exemplo mostrado.
Nesse segundo exemplo repetido lá do início, o roteiro joga uma imagem completa de um tabuleiro do jogo Monopoly na página. O tabuleiro é usado como mapa pela família, estabelecendo pontos do terreno ao redor da casa a partir das propriedades do jogo, em um plano que eles precisam elaborar contra o monstro.
O comum é a descrição palavra a palavra desse tipo de configuração. Mas como isso funcionaria? Como tornar visível a geografia necessária?
O caminho óbvio é: diálogo. A arma máxima das exposições em filmes. O uso do diálogo para descrever um tabuleiro de Monopoly traria dois resultados: o primeiro é que seria muito difícil entender a geografia do tabuleiro em palavras.
O segundo resultado é que, na tentativa inútil de entender, sairíamos da imersão. Perderíamos um efeito chamado de suspensão da descrença.
Quando vemos um filme, assistimos a uma peça, lemos um livro, a descrença é nosso estado inicial. Sabemos que aquilo não é real. É um conteúdo que estamos consumindo por uma mídia qualquer.
O poder das boas narrativas é suspender essa descrença. Esquecemos que a história que estamos assistindo é um filme. Por duas horas, mergulhamos nela como se vivêssemos naquele mundo.
Uma das formas de entender se gostamos de uma história ou não é medir essa suspensão. Em algum momento a história nos perdeu? Nos desconectamos do mundo ficcional? Lembramos que estamos em uma cadeira ou sofá e tem uma conta pra pagar ou que tá faltando banana em casa?
É essa quebra que um filme ou livro ou série não pode deixar ocorrer. Os que conseguem nos deixam ofegantes, nos fazem maratonar a história.
Descrever a geografia de um terreno com um diálogo sobre o tabuleiro de Monopoly nos faria raciocinar de forma diferente dos personagens. Além do necessário para os personagens em cena. Receita para a quebra da suspensão da descrença.
O roteiro resolve esse problema quebrando a formatação no lugar da suspensão. A imagem retira complexidade, o primeiro ponto positivo, tornando a descrição objetiva. Ela também nos faz ver o tabuleiro exatamente como um personagem em cena precisa ver. Logo, pensamos como eles. Logo, somos mantidos imersos no “filme”.
Você pode estar pensando, “mas não dá pra fazer isso sempre, senão deixa de ser roteiro”.
De fato, essa cena sequer existe no filme, porque todo o plano elaborado pelos personagens para enfrentar o monstro foi retirado da versão final. Mas se o plano se mantivesse, essa quebra de regra funcionaria para o roteiro.
Contudo, não é necessário fazer essas quebras sempre. A formatação básica do roteiro cumpre suficientemente o propósito de que cada pessoa veja o filme em sua cabeça no caminho da produção. Para alguns filmes, algumas cenas específicas, ela deixa de ser suficiente. É nesses momentos que vem a quebra, como foi o caso de A Chegada.
Existem histórias até mesmo sem roteiro em qualquer formato natural. Mad Max – Estrada da Fúria, é um exemplo.
Imagine o tamanho de um parágrafo descritivo para as cenas de ação criadas por George Miller no filme? Seria inviável, a escrita não criaria o filme na cabeça de ninguém.
O que a produção fez? Fugiu do formato “roteiro”, investindo 100% nos storyboards.
Esse vídeo do canal Just Write mostra o imenso trabalho por trás de Mad Max e como a decisão fez total sentido para a criação da obra-prima de ação da década.
Portanto, o que podemos tirar como lição do roteiro de Um Lugar Silencioso? Entenda o propósito da formatação para saber quando quebrá-la. Essa é a mesma lógica difundida sobre quaisquer regras de roteiro ou escrita. É preciso entendê-las para quebrá-las de formas que funcionam. A formatação existe para ajudar no trabalho. Quando ela eventualmente não ajuda, precisamos buscar outros recursos fora dela.
Ganhamos liberdade criativa com isso, sempre voltados para garantir que a pessoa que lê o roteiro, da mais experiente à mais novata ou mais sem tempo, veja a primeira versão da história ainda em sua mente. Veja o filme que queremos escrever em suas cabeças, naquela tela imaginária. Transformando profissionais no primeiro público real de nossos filmes, estamos um passo mais perto de onde queremos chegar, assim como fizeram Scott Beck e Bryan Woods, os roteiristas de Um Lugar Silencioso.
Por fim, vou te deixar aqui com os arquivos das duas versões do roteiro para que você possa embarcar nas suas próprias comparações, e um vídeo do canal Lessons From the Screenplay, figura carimbada por aqui, falando da importância de o filme ter trazido a direção de som para dentro do roteiro após a entrada de John Krasinski. Divirta-se!
Roteiro inicial, por Scott Beck e Bryan Woods.
Roteiro de filmagem, por Scott Beck, Bryan Woods e John Krasinski.
Você também pode ler outras análises de filmes e séries aqui.
Inscreva-se para receber os novos textos do Além do Roteiro
Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.