Nota: o texto contém spoilers do filme Homem Aranha: De Volta ao Lar
A ciência do humor foi bastante debatida pelo Yann no texto “Humor não é desculpa, não é só brincadeira”, onde ele discorre brilhantemente sobre as mais variadas teorias do humor, com exemplos do dia-a-dia, como forma de construção de uma consciência social mais ampla, desconstruindo a desculpa do “o mundo está muito careta hoje”.
No entanto, para nós, em um estudo sobre o humor dentro do storytelling, entendê-lo profundamente não é tão importante. Afinal, como afirmou E.B. White:
Analisar o humor é como dissecar um sapo. Poucas pessoas estão interessadas, e o sapo morre.
Você, no fundo, não quer saber por que algo é engraçado. Você apenas quer achar esse algo engraçado. Estamos muito interessados em rir, mas pouco interessados em descobrir o porquê de o fazermos.
Antes de começarmos, eu vou ser um pouco incoerente e mostrar uma definição científica do humor, dada por um neurologista, para que possamos prosseguir.
Vilayanur S. Ramachandran explica:
O denominador comum de todas as piadas é o caminho da expectativa, que é modificado por uma reviravolta inesperada que nos obriga a reinterpretar todos os fatos anteriores – chamada de “punch line”. No entanto, a reinterpretação não é o bastante. A nova percepção não deve apresentar grandes consequências.
Por exemplo, um homem está caminhando e de repente escorrega em uma casca de banana. Se ele partir o crânio e começar a sangrar, não será engraçado. Você obviamente (espero) não terá vontade de rir. Mas se ele apenas escorregar e cair, se machucar um pouco, e levantar rindo, você pode até sorrir. Se for seu amigo, você provavelmente irá gargalhar.
Há pequenas exceções sobre isso, como no caso de Deadpool.
Ele quebra as mãos e os pés, e depois ele corta o próprio pulso para fugir da algema. Não deveria ser engraçado, mas é. Por quê? Porque o contexto é diferente, e a reinterpretação é a seguinte: Deadpool é imortal, então isso é menos grave do que escorregar numa banana e cair de bunda no chão.
O neurologista ainda explica:
Quando nosso cérebro experimenta uma súbita mudança de contexto, isto excita nosso sistema nervoso em um modo parecido ao que ocorre quando alguém nos faz cócegas. Humor é, em minha definição, um conflito de contexto, então algo engraçado fará você rir.
Sem essa mudança de contexto (por exemplo, não entendendo a piada) ou sem essa sensação do inesperado (por exemplo, já ouvi essa antes), seu sistema nervoso não é excitado, portanto não há risada. O quanto você ri depende da intensidade da atividade mental ativada pela mudança.
Por isso Louis CK é tão engraçado e tão famoso. Ele nos segura até o máximo, nos mantendo hipnotizados pela história, e quando há a mudança de contexto, estamos tão excitados (espero que apenas o sistema nervoso central, mas nada contra) que rimos. Só os mestres fazem isso.
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HOMEM ARANHA: DE VOLTA AO LAR
Em filmes de super-herói – e na maioria dos filmes, na verdade – o humor é utilizado com um único objetivo: te fazer rir.
Uau, que impactante. Nunca poderia ter imaginado.
Para mim, isso era uma verdade absoluta… até ver Homem Aranha: De Volta ao Lar.
A maior parte das cenas engraçadas no filme – ao meu ver; você não precisa concordar – acontece em um momento de construção de Peter Parker.
Antes de seguirmos, é importante entendermos o que é a construção de personagens:
“Construção de personagem é mostrar quem ele é, que escolhas faz sob pressão, como as pessoas veem ele e, mais importante, como ele vê a si mesmo.” – Eu mesmo (com uma “pequena” ajuda de grandes nomes como Robert McKee e John Truby).
A espinha dorsal de Peter Parker – a evolução que ele tem durante o filme, entre o início e o final – é mudar de inexperiência para amadurecimento.
No início, ele era apenas um garoto com superpoderes que queria ajudar o mundo e fazer parte dos Vingadores. Mas era inexperiente. Só fazia cagada. E para mostrar sua inexperiência, os produtores encontraram vários meios de explorar a comédia de um modo raramente visto em filmes de super-herói: através da construção do personagem.
Descobrimos quem Peter é pelas escolhas que faz: ignorar os avisos de Stark; escolher ir atrás dos vilões ao invés de ir para a piscina com seu crush; escolher ir atrás do vilão ao invés de ficar na formatura com seu crush; salvar o vilão da morte por ele ser pai do seu crush; negar o seu desejo de fazer parte dos Vingadores por achar que não está pronto, e que há coisas mais valiosas na vida.
Em todo esse ínterim, vemos fragmentos de sua personalidade expostos através da comédia. Mais importante do que isso: a construção de sua inexperiência é feita através do humor, quase que exclusivamente. Ele sempre tenta ser melhor, mas toda vez sua inexperiência se mostra maior.
O filme já inicia com 4 minutos de risada. Vemos a gravação de Peter, que, em ordem cronológica, ocorreu no Capitão América 3: Guerra Civil, entre o período que Stark vai à sua casa (vemos isso) e a luta no aeroporto (que também vemos). Aqui, entre muitas risadas, uma coisa é evidente: ele é um garoto.
Um garoto inexperiente, bobão, que acha graça de tudo, que vê um momento grave, como o do filme que o precedeu, como algo engraçado, que não respeita as autoridades (Happy), e tem apenas um desejo: ser importante, muito embora não saiba como.
Depois, vemos sua vida comum – o colégio e sua luta contra crimes que se recusam a ser relevantes como ele deseja que sejam, para que o coloque sob os holofotes de Stark, sua porta de entrada para os Vingadores.
A montagem dele “lutando” contra o crime é uma coisa básica de filmes de super-heróis, sobretudo os primeiros das franquias. Em determinado momento, ele aparece dando orientações a uma senhora. Rimos. Rimos pelo absurdo que é isso. Mas é importante, pois mostra que ele é voluntarioso, e mostra que ele quer mesmo ajudar.
Em seguida, ele evita o roubo de um carro. Não, pera aí. Era só o cara indo pegar o próprio carro. Ele errou. E nisso, inicia uma gritaria entre os vizinhos – e a aparição básica de Stan Lee. Rimos? Rimos. Mas faz parte de sua construção. Ele é voluntarioso, mas se esforça demais e acaba cometendo erros – o que acontece, em proporções muito maiores, ao longo do filme.
A cena mais icônica depois é uma prova concreta do que falei lá em cima: comédia é brincar com as expectativas.
Nessa cena, Peter entra pela janela, rastejando pelo teto, para se esconder de sua tia. Nós sabemos disso, pois já foi estabelecido antes no filme – e em todos da franquia. Só que, quando ele pula para o chão, a câmera gira revelando seu amigo, parado ali, vendo tudo.
Todo o contexto muda. Em uma fração de segundos, nossa mente remonta tudo que aconteceu e pensamos, na perspectiva do amigo, como seria ver um cara entrando pela janela, rastejando pelo teto. Nós rimos, porque é absurdo, e porque é inesperado. E porque não há consequências negativas.
Além disso, é uma cena essencial – é o pontapé inicial para a união deles, a ajuda que o amigo será na vida de Peter.
O humor pode ajudar na construção do personagem – aliás, é um jeito muito criativo de fazê-lo -, mas pode atrapalhar também. Como acontece em Doutor Estranho:
Esse era o momento em que ele assumia sua identidade, um dos pontos-chaves do filme. E, durante essa aceitação de si, a capa faz um movimento, na tentativa de ser engraçado, de tentar melhorar a cena, mas acaba por destruir sua intensidade.
O mesmo poderia ter acontecido duas vezes em Homem-Aranha. Mas não aconteceu.
Quando Peter vai buscar Liz para a formatura, ele deve passar, antes, pelo maior clichê de todos os tempos: conhecer o pai de sua acompanhante. Para reforçar esse clichê, a cena deve conter vários momentos engraçados, mostrando a total incompatibilidade entre namorado e sogro.
Isso é quebrado logo quando alguém abre a porta, revelando que o pai da garota, pela qual esteve apaixonado por toda a história, é seu inimigo.
Outros escritores poderiam ter usado isso como forma de humor. Mas o humor no filme é uma forma de construção de personagem, então deve partir de Peter. Só que Peter está totalmente aturdido, assim como nós estamos. Não seríamos capazes de rir das piadas mais do que ele seria capaz de fazê-las.
Toda a construção é tensa. O clima deve ser tenso. Humor apenas arruinaria a cena.
O segundo momento em que isso não aconteceu, foi logo depois da primeira parte da última luta contra o Abutre (Vulture / Michael Keaton). Ele derruba um prédio inteiro sobre nosso herói, e ele tenta com todas as forças levantar o prédio.
Essa é a cena correspondente à cena da capa, em Doutor Estranho. Peter poderia ter feito uma piada. Seria uma boa piada? Dificilmente. Mesmo que fosse boa, seria apenas uma piada, e arruinaria a construção do momento, como aconteceu no outro filme.
POR FIM….
Homem Aranha: De Volta ao Lar é um ótimo filme, que apresenta o 3º Peter Parker dos cinemas. Pode não ser o melhor Homem Aranha de todos os tempos na opinião de muitos, mas, certamente, em questões puramente teóricas, apresenta a melhor construção até hoje.
A evolução do personagem durante o filme é simples, mas poderosa. Começamos a acompanhar um garoto inexperiente, mas com muita vontade de ser relevante o bastante para integrar o grupo de super-heróis comandados por Stark. Só que esse desejo não é o bastante, pois deixa de lado muitas coisas importantes. Ele quer ser relevante, quando deveria querer ser um homem bom. Ele quer fazer parte de uma equipe sem saber o que significa isso. Ele quer ser o Homem Aranha, mas se esquece de que deve ser, antes de tudo isso, o Peter Parker.
Acompanhamos isso com muito humor, tensão nas horas certas, tristeza, surpresa, e mais humor. Humor na dose certa. Humor como complemento ao árduo trabalho de criar uma história, não como uma parte avulsa. Humor como parte indissociável das características de Peter, tornando-o um personagem mais completo.
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Carioca, que abriu sua própria empresa para poder ter tempo de escrever e falhou miseravelmente. Uma pessoa intensa que encontrou na escrita a única forma de extravasar tudo que passa dentro de si.