Estudar adaptações é uma oportunidade interessante de aprendizado, pois nos dá acesso às decisões envolvendo não uma, mas duas (ou mais) histórias. Em 2017, o filme “A Vigilante do Amanhã” (Ghost in the Shell) foi lançado, uma adaptação hollywoodiana da animação japonesa homônima de 1995. Enxergando a forma como ambientes, personagens e os temas do filme original foram adaptados, podemos aprender sobre a construção de cada um desses elementos.
Lembrando o texto sobre Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures), devemos lembrar que adaptações apresentam muitos desafios. Naquele caso, um dos complicadores era o fato de o filme ser produzido durante a escrita do livro “fonte”.
Para Ghost in the Shell (usarei GitS a partir desse ponto), o intervalo de vinte e dois anos é mais do que suficiente para que a adaptação tenha a capacidade de avaliar suas decisões com cuidado.
No entanto, como em qualquer adaptação, o desafio mais básico se mantém, o conflito entre originalidade vs cópia. Quando mudamos a mídia de uma história, limitações que não existem na mídia anterior surgem, forçando possíveis mudanças na mensagem da obra. Da mesma forma, novas capacidades geram oportunidades de exploração outrora inviáveis para a obra original.
Essa dualidade é comum entre livros e filmes, ou entre estes e HQ’s. Um exemplo clássico é a exploração da mente e dos pensamentos de um personagem, muito mais acessível em uma obra escrita.
Mesmo quando a mídia não muda, a época pode requerer mudanças de mensagem. O mundo que assistiu o GitS de 1995 como uma novidade não é o mesmo mundo que assiste agora ao filme com Scarlett Johansson no papel de Major.
Um exemplo está na cidade do filme original, baseada na Hong Kong de 1990. O digital e o analógico se misturam no ambiente. Algumas demonstrações do digital são futurísticas mesmo hoje, como a comunicação “telepática” entre Major e seu time. Outros aspectos, no entanto, são corriqueiros ou mesmo mais avançados no presente, como a infestação de câmeras e a presença de painéis eletrônicos em prédios, em cidades como Nova York ou Tóquio.
Portanto, o filme mais novo precisa fazer algumas alterações, para que continue sendo futurista no seu contexto temporal. Vamos nos aprofundar nessa ambientação.
O tempo de tela conta a história
Uma regrinha que serve a muitas disciplinas do audiovisual, mas que é um mantra especial de edição/montagem: quanto mais tempo a tela mostra um elemento (ambiente, objeto, expressão), mais importante aquele elemento é para a história.
Um enquadramento pode durar décimos de segundo, como é normal em uma cena de ação com vários cortes. Nas lutas de Jason Bourne, por exemplo, cada enquadramento isolado tem pouco ou nenhum significado para a história. A relevância está no todo da luta, no conjunto de cortes que constrói aquela cena.
Outro exemplo, agora misturando cortes mais espaçados e rápidos, é a montagem do dia-a-dia de Samwell Tarly na Cidadela, no primeiro episódio da sétima temporada de Game of Thrones, Dragonstone. Prometo que o spoiler nesse exemplo é mínimo.
Em cenas de montagens, recebemos fragmentos da rotina do personagem de maneira intercalada, até que um quadro de sua rotina esteja pintado. Como nos treinos de Rocky Balboa.
A cena de Samwell começa lenta. Entendemos no detalhe cada ação de sua rotina: recolher e limpar as fezes e urinas dos meistres; colocar seus alimentos; organizar a biblioteca. Junto a esses fragmentos, também aprendemos que Samwell deseja acesso a uma área restrita da biblioteca.
Nessa parte lenta, aprendemos sobre o desejo do personagem. Ele quer o acesso, mas a regra não permite sua entrada. Ele obedece.
Por mais que sintamos o nojo que ele sente em sua rotina, vivê-la um dia não foi suficiente para mudar a relação de Samwell com seus valores. Ele obedece. Provavelmente seríamos capazes de viver uma vez aquela experiência sem alterar nossas convicções, por mais que desgostássemos.
Então a sequência de fragmentos se repete. E se repete. E acelera. Acelera, acelera aceleraacelera.
A montagem nos provoca exaustão, a mesma exaustão que Samwell sente, com tal força que o desequilíbrio muda sua decisão perante o conflito. Ele busca autorização para o acesso mais uma vez. Não consegue. Chega. Então ele burla as regras e consegue os livros de que precisa.
O trabalho de repetir fragmentos e acelerá-los cumpriu um propósito na história, tornando plausível para nós, espectadores, a mudança de decisão do personagem.
Falta o exemplo de uma tomada mais longa.
Por volta da metade do GitS de 1995, uma cena de 3 minutos é exibida, mostrando tomadas de diferentes ângulos da cidade. Nenhum personagem da história aparece nesse tempo, nenhum acontecimento desenvolve a trama. Vemos apenas a cidade.
Lembrei da regra acima e segurei o sono. O filme conta com 75 minutos ou 1h15. Três minutos em um filme tão curto representam um tempo valiosíssimo. Dedicar um bloco de três minutos para o ambiente requer coragem. Aquela cena não poderia existir à toa. Tinha um propósito.
A protagonista da história, Major, vive um conflito sobre sua identidade. Ela não se enxerga como humana, ainda que sua consciência seja.

A única coisa que faz eu me sentir humana é o jeito com que sou tratada.
Como mostra esse vídeo do canal Nerdwriter, é exatamente a identidade o tema da cena.
Repare como, em vários quadros, antigo e novo se misturam, criando uma cidade heterogênea, que não sabe o que é:

Primeiro, vemos características da cidade, da opulência ao lixo.

Em seguida, aprendemos que estamos conhecendo a cidade pelos olhos de Major. Mas ela não só enxerga a cidade, como as pessoas nela. Até pessoas que parecem ela…

Após 1 minuto enxergando a cidade, a montagem transiciona do macro para o micro. Dos prédios ao fundo para as casas ultrapassadas no meio e as crianças na frente.

Agora estamos nas pessoas. Mas temos mais do que pessoas de carne e osso. Temos pessoas digitais nos outdoors eletrônicos.

Fechando o caminho da crise de identidade, a montagem para em corpos manequim. Logo antes de retornar à narrativa, mostrando o Mestre das Marionetes em um corpo cibernético.
O filme questiona o limite da consciência humana. Uma consciência artificial, como a do Mestre das Marionetes, não pode ser considerada humana? Todo o questionamento está desenhado em uma montagem de três minutos sem qualquer palavra.
O conflito interno reside até nas cidades, mas não apenas na animação. É parte de nossa realidade:

Alguém duvida que o Rio vive crises de identidade?

Parece o Rio, mas é Hong Kong, a inspiração da cidade de Ghost in the Shell
A cidade de 2017 não está em crise
O filme mais recente mantém o conflito interno de Major sobre a identidade, com algumas diferenças que vamos explorar mais a fundo à frente. Contudo, não há uma cena desse porte sobre o ambiente.
Sabendo que o conflito interno se mantém, podemos pensar que faria total sentido repetir a cena como referência e até homenagem. Para ter certeza, precisamos considerar a dificuldade na adaptação citada no início.
O GitS 2017 precisava apresentar uma visão futurística da sociedade, assim como o GitS 1995. Porém, se alguns elementos deste já são parte do nosso presente, deixaram de ser futuro, não faz sentido mantê-los naquele.
Acredito que essa foi a principal dificuldade da produção do longa mais recente. As “microtecnologias”, como as comunicações entre a equipe de Major, ou a construção dos corpos cibernéticos, continuam sendo futuro em 2017 e puderam ser igualmente representadas. Mas como é a cidade do futuro?
Tudo que o diretor Rupert Sanders (GitS 2017) e sua equipe conseguiram foi embutir hologramas gigantes na cidade. Em nenhum momento do filme novo eu senti a crise de identidade de Major replicada no ambiente. Considerando que o GitS 1995 é bastante explícito em suas questões filosóficas, perder essa relação com a cidade é perder a principal subjetividade do filme original.
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Major
Robert McKee dizia que personagem é estrutura. Scott Myers, do Go Into the Story, diz que trama é personagem, personagem é trama.
Basicamente, estes e muitos outros autores concordam que os personagens são cruciais para a construção da história, desde seu tema até sua forma.
O filme de 1995 é fundamentalmente diferente do filme de 2017 — o que não é um problema. Na verdade acho ótimo que seja assim. Além da subjetividade, há diferenças explícitas, e a base destas é a protagonista das duas histórias.
Tanto na animação como no live-action, a personagem é uma consciência humana transplantada para um corpo cibernético. As listas abaixo apresentam algumas semelhanças e diferenças entre as duas representações. Em seguida vamos detalhar as discrepâncias.
Semelhanças
- Corpo cibernético + mente humana
- Frieza ou dificuldade de expressar/compreender sentimentos
- Conflito de identidade
- Especializada em combate
Diferenças
- Não tem problemas de adaptação com o corpo / Tem problemas de adaptação com o corpo
- Sabe sobre seu projeto de criação / não sabe sobre seu projeto de criação
- Lidera a equipe / coordena ações com a equipe, exerce pouca liderança
- Mais sexualizada / menos sexualizada
Adaptação cibernética
No GitS 1995, Major é consciente sobre o projeto de construção do seu corpo. Seu passado como humana “completa” não é lembrado, sequer é uma questão para a personagem. Seu conflito é apenas o presente. Ela não se percebe humana. Suas decisões são estritamente racionais, seu corpo é superpotente e especializado para o combate. Ela não tem relações humanas passadas com que se preocupar, e sabe que é uma arma para a força policial.
Em uma rara demonstração de qualquer emoção, logo no início, ela mostra que gosta de suas habilidades. Repare no sorriso.
No GitS 2017, a personagem de Scarlett Johansson pode parecer a mesma para uma leitura superficial, mas é bastante diferente. Está lá, sim, a mesma frieza, uma aparente incapacidade de lidar com emoções. É uma interpretação muito semelhante a do filme Lucy (vou me abster de julgar se por decisão da atriz ou do diretor… ou só inabilidade mesmo).

Spoiler: o filme todo com essa expressão
Essa frieza, no entanto, supera a da animação por boa parte da trama, algo que eu não esperava ao comparar os dois filmes. Em nenhum momento a Major Scarlett demonstra gosto por suas atividades policiais, por exemplo.
Já o passado da protagonista em 2017 é sempre uma questão. Já no início do filme, aprendemos que seu transplante de alma para um corpo cibernético ocorreu graças a um atentado terrorista que teria destruído seu corpo humano.
Ainda que encaixando homenagens aqui e ali em algumas cenas de caracterização, especialmente no início, o filme diverge ao fundir na história o mito Frankenstein, onde Major tem uma relação de quase-mãe-e-filha com a cientista que liderou o projeto de sua cirurgia/criação.
Governo vs Empresas
As relações entre Estados e corporações já eram complexas na década de 90, mas a crítica às últimas era menos presente no audiovisual.
No mundo de GitS, a animação já avisa no início de que não interessam as divisões entre governo e o mundo privado, e a própria escolha de Hong-Kong como cidade-inspiração se baseia no fato de, à época, a região ainda ser uma colônia britânica próxima à transição para a China, misturando pessoas orientais e ocidentais nos altos escalões.
Nesse cenário, tanto o público como o privado eram capazes de tomar decisões polêmicas, ou jogavam o jogo político da mesma forma. Essas relações são transparentes ou indiferentes à Major, que trata racionalmente cada acontecimento, razão, ou mesmo o projeto que justifica sua existência.
A obra de 2017 reflete uma grande virada no viés de como grandes empresas são retratadas no cinema, na década atual. À medida que muitas corporações alcançam poderes políticos e econômicos superiores aos de países, crescem as narrativas de empresas-vilãs.
É exatamente esse o caso do filme mais novo. Trazendo contemporaneidade, o terrorismo e a megacorporação gananciosa compõem a história pregressa de Major, tornando sua relação com o mundo privado uma questão pessoal e essencial à trama.
A representação de Major
Esse é um dos pontos que mais me deixa curioso quanto às escolhas do diretor Rupert Sanders. Enquanto criou uma Major menos sexualizada, em que o nu frontal tem aspecto muito mais robótico do que na animação (sem os mamilos, por exemplo), a capacidade de liderança da protagonista foi minimizada. Como se ela sequer fosse uma major, fosse apenas uma agente especial.
Major Scarlett coordena taticamente a equipe em algumas ações, mas está sempre obedecendo ou se rebelando a Aramaki, o ancião que poderíamos entender como sendo um coronel, o chefe da divisão policial que conta com Major e os outros agentes. Sobra para o ancião o papel de muitas vezes liderar diretamente cada agente.
Na animação, por exemplo, há uma cena inteira de conversa entre Major e Togusa, o agente da equipe “mais humano”, por não ter partes robóticas. Primeiro, aprendemos que foi Major que o escolheu para a equipe, o que já demonstra muito mais poder de decisão. Segundo, a justificativa para a escolha se dá justamente por Togusa não ser adepto de implantações robóticas. Com sua presença, a equipe se torna mais diversa, menos suscetível a possíveis vieses e falhas comuns a partes robóticas, segundo ela.
Essa conversa revela, de forma sutil, o mesmo conflito de identidade explícito no GIF do diálogo entre a protagonista e Batou. Ela não se enxerga como humana, e questiona a humanidade até de pessoas com corpos “customizados”. Precisou, portanto, incluir alguém que enxergue como humano na equipe.
O conflito de identidade
Essas diferenças na representação não só tornam o conflito de GitS 1995 mais explícito do que em sua versão de 2017. Na verdade, a própria resolução da protagonista muda.
A cena do nascimento do corpo sintético tem um momento chave, em que a forma ainda sem identidade emerge para ganhar vida. A água não é só representada como fonte da vida; sua superfície é um espelho. Já naquele instante o corpo encara seu reflexo.
O espelho é um elemento repetido ao longo da animação, sendo destacado até na última cena.
No momento mais explícito, GitS 1995 apresenta Major dentro de um lago, encarando seu reflexo no espelho d’água da mesma forma que na primeira cena do filme, no processo de seu “nascimento”.
Após emergir, encontra Batou, o agente e amigo mais próximo. Ele questiona o motivo de ela frequentemente ir ao lago, ao que Major responde com um monólogo direto sobre seu conflito de identidade.
Essa cena acontece antes de momentos de ação que joguem a equipe de agentes no encontro direto com o suposto vilão, Mestre das Marionetes. A importância é mostrar que o conflito de identidade não era só uma potência para Major, algo inconsciente. Era palpável, presente.
Batou
Outro elemento interessante na cena é o uso de Batou como um contra-ponto à visão de Major sobre si. Quando ela tira a roupa à sua frente, ele desvia o olhar envergonhado. Visivelmente o coadjuvante tem sentimentos por Major, pois continua a enxergando como humana.
Provavelmente, a afinidade de Batou por melhorias robóticas e seus próprios olhos tecnológicos foram formas do criador Shirow Masamune e do diretor Mamoru Oshii facilitarem a digestão desse sentimento pelos espectadores. É mais fácil para Batou ver Major como humana se ele próprio já é parte máquina. Se ele próprio já quebrou um pouco a barreira entre humano e androide.
Quando olhamos para a mesma cena em GitS 2017, podemos pensar que os mesmos elementos são mostrados, já que ela é uma referência clara à animação. No entanto, a cena tem peso bastante diferente.
Major Scarlett só aparece no lago após alguns embates com o Mestre das Marionetes ou “Kuze” (Michael Pitt). Seu conflito de identidade sempre esteve potente, emergindo especialmente nas conversas com a “mãe-criadora”, a cientista Dr. Ouelet (Juliette Binoche). Contudo, ela só começa a encarar essa dúvida de frente após a mesma ser plantada por Kuze, sobre seu passado.
Aqui a protagonista precisou de um estímulo externo para conscientemente enfrentar seu conflito interno.
Mestre das Marionetes (MM)
A abordagem sobre o vilão talvez seja a diferença mais gritante entre os filmes, e ela fortalece as diferenças dos conflitos de Major para cada uma das produções.
Na animação, o MM é uma inteligência artificial que alcançou o nível de uma consciência humana, sem um corpo. A consciência é fruto do mesmo projeto de criação de Major, portanto, as duas mentes se veem mais similares quanto mais se encaram.
O resultado é a proposta de MM de se fundir com Major e criar uma nova persona, humana e artificial, com corpo e conectada.
No filme de Hollywood, Kuze (outro personagem no mangá que origina ambas as obras, mas que foi fundido com o personagem MM na versão nova) e Major Scarlett compartilham a dor do passado. O abuso pelo mesmo projeto de criação. Eles se identificam a partir dessa dor.
Ao conhecer Major Scarlett, Kuze perde interesse no seu plano de vingança, tendo como prioridade se conectar com a protagonista. Mas, para isso, ele quer se afastar dos humanos que causaram as dores, pedindo que Major vá com ele para o mundo ilimitado de consciência digital nutrido pelo próprio.
A protagonista não consegue deixar sua humanidade. Sua (des)conexão com o passado representa memórias a descobrir, uma família a reconquistar em sua vida. Major escolhe o lado humano, ser uma humana.
Aqui, protagonista e “antagonista” tem um inimigo comum, mas não se juntam pois seus interesses divergem. Na animação, protagonista e antagonista não tem um inimigo comum e seus interesses convergem.
A escolha pela humanidade
A decisão do projeto de GitS 2017 é válida. Revela até uma diferença dos tempos. Em 1995, três anos após a criação da World Wide Web e antes do lançamento de Sociedade em Rede, de Manuel Castells, a curiosidade pela emergente Era da Informação era maior do que o medo. Tal curiosidade justifica uma protagonista ansiosa por expansão, por ultrapassar sua barreira de humanidade.
Em 2017, junto às corporações-vilãs e após a obra de Castells e de outros pensadores, a continuidade do progresso tecnológico gera inseguranças e medos em possíveis consequências para a humanidade. Major Scarlett escolher a humanidade é um reflexo dessa resistência a um excesso de tecnologia.
O problema do filme recente é não nos convencer da força dessa escolha. Você que acompanha nossas análises sabe que essa força depende da intensidade dos conflitos. Essa intensidade vale não só para a quantidade, mas para as diferentes camadas de conflitos envolvidas em um filme ou cena, como explicado no texto do link.
“Yann, moleza jogar pedra no filme dos outros, mas como você consertaria?” — meu jeito polido de parafasear o famoso “faz melhor então”.
Claro que é mais difícil vestir a carapuça da criação, mas pequenos ajustes podem sim ajudar muito nesse convencimento. No início do filme mais novo, uma diferença muito curiosa acontece em relação à animação. Na primeira cena, Major é ferida. Uma escolha diferente por parte da adaptação e importante.
A situação na sala de combate é caótica (a robô-gueixa-aranha ficou muito boa, aliás) e a personagem leva um tiro no braço.
Após essa cena, Major recebe um reparo e não demonstra qualquer sentimento sobre isso. Sua frieza revela desapego quanto àquele corpo.
No final do filme, a personagem escolhe seguir humana.
Então, por que não criar o apego ao corpo?
Um pequeno ajuste que provocaria uma reação em cadeia: o corpo não é real, mas é o invólucro da consciência humana de Major. É a identidade que ela enxerga no espelho ou na água. Um apego a esse corpo mostraria, em meio ao conflito de identidade, como há uma necessidade inconsciente por mais humanidade.
Além do apego, por que não criar raiva sobre o corpo?
Enquanto se enxerga de fora, Major pode se ver como humana. Quando tira as roupas que permitem que use a invisibilidade, Major se vê como robô. Quando o corpo apresenta uma ferida aberta como a do braço, Major é incapaz de negar seu status robô.
Ela poderia manter sua frieza ao longo do filme, mas em momentos-chave (como ao perceber que foi “ferida”) mostrar esses sentimentos, como escapes do seu inconsciente. Esses sentimentos teriam reflexo direto na batalha final.
Quando a protagonista batalha com o robô aranha,acaba usando seu corpo como arma para parar a máquina de matar Kuze. Uma decisão bem mais forte se a protagonista tivesse emoções mais intensas por seu corpo.

Na animação, Major se liberta de seu corpo pouco antes de decidir se libertar também da limitação de sua consciência. Mesma cena, outra intensidade.
O melhor é perceber que, mesmo em relação ao apego, não haveria contradição em ela abrir mão do corpo, pois este é sintético. O apego deveria ser superficial. Ao tentar parar a máquina, ela impede que Kuze seja morto. O Mestre das Marionetes era uma consciência humana como ela, e com quem ela compartilhava um passado em corpos humanos. Ao abrir mão de seu apego superficial e destruir seu corpo sintético por um humano — mesmo um humano em corpo sintético, mesmo um humano que deseja viver na rede — ela faria sua escolha definitiva.
Na cena real, nem parece que ela faz alguma escolha. Como o plano sequer funciona, parece que ela apenas abriu mão da própria vida. O que não combina com o encontro com a mãe biológica, no “epílogo”.
Tudo isso a partir de um ferimento no braço encarado de outra forma. Sem copiar a animação, na verdade, se afastando mais dela. Vou deixar para você explorar outras possibilidades de ajustes para Major que fortalecessem os conflitos.
Ghost in the Shell original apresenta bases para filmes como Matrix e consegue explorar aspectos filosóficos da evolução tecnológica de forma inovadora, questionando a diferença entre uma consciência humana e uma sintética. O filme se tornou um marco de seu tempo. Tal qual a protagonista, a própria animação se expandiu, influenciando novas obras.

Olha essa ideia aqui Matrix, que legal.
Já o filme de 2017 não cria elementos que possam ser expandidos. As escolhas feitas na adaptação limitam o longa, selando seu destino para o esquecimento, como um fantasma preso em um casulo.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.