Talvez, a chave para apreciar “mãe!” (não necessariamente “gostar” ou “sentir prazer”) seja entender que a última coisa que Aronofsky tem em mente é prover conteúdo comercial de fácil digestão. Para esse fim, ele satisfaz seu ego exageradamente e se torna míope sobre sua visão.

O que torna uma crítica boa? Essa é a segunda pergunta que me vem à mente quando vejo um trecho como o destacado acima. A primeira é: que diabos faz o crítico atacar o artista no lugar da obra?

“mãe!”, Mainha para os íntimos, é o mais recente filme de Darren Aronofsky, diretor e roteirista com “Cisne Negro” e “Requiém para um Sonho” na bagagem. É um filme polêmico, dividindo opiniões como Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho.

Talvez já saibamos o que esperar da crítica quando filmes como Thor ou Liga da Justiça saem no cinema. São blockbusters, têm seus próprios sistemas de divulgação, marketing, marcas e, raríssimas exceções, não serão inovações que precisem muito de um grupo de profissionais apoiando o público a navegar pela obra.

É justamente nos filmes polêmicos ou inesperados que o papel da crítica se sobressai. Qual, ou quais, seriam esses papeis?

Ajudar o público a decidir se irá ao cinema

Esse papel se encaixa também a ver um filme em outras mídias, mas o principal momento de decisão é a ida ao cinema. É o maior custo, com a compra de ingressos mais pipocas e afins. A maioria das pessoas não vai ao cinema com a frequência de cinéfilos e precisa gerenciar a escolha de um filme polêmico, ação, comédia ou aquele filme para levar filhas e filhos.

A crítica ajuda a decisão ao apontar o gênero de um filme, a suposta qualidade do mesmo, servindo de filtro para o público. Basicamente qualquer crítica “(sem spoilers!)” cai nessa categoria.

Ajudar o público a navegar pela obra

Uma vez visto o filme, quais são os significados explícitos e implícitos? O que torna aquele longa especial, ou um fracasso especial? Com a especialização que a pessoa crítica detém, não só para o cinema como para qualquer arte, contribui para o estabelecimento de significados junto ao público. Ainda que cada pessoa tenha suas próprias percepções, nem sempre ela é dona do vocabulário ou sabe definir as referências que a fazem sentir aquilo. Uma crítica pode ser a chave para isso.

Adorei “mãe!”, refleti sobre muitos pontos com minha esposa após vermos o filme. Mesmo após as conversas, busquei críticas para ajudar a sedimentar ou mesmo questionar minhas percepções. A crítica do Pablo Villaça, por exemplo, contribuiu bastante para a minha experiência:

mãe! | Cinema em Cena

Definir a qualidade da obra

Essa função serve às duas anteriores, mas não para aí. A qualidade da obra não importa apenas para uma decisão de ir ao cinema. A arte vive em um sistema de mercado, que precisa identificar tendências, forças, geralmente traduzidas nos festivais e premiações. Esse sistema ajuda artistas a entenderem o que está sendo valorizado pelo público que interage com determinada arte.

A crítica não é a única forma de mensuração, contudo, é a mais imediata e distribuída.

O Além do Roteiro é casa desse tipo de crítica, principalmente. Basicamente toda a categoria de análises de histórias é composta de visões técnicas sobre roteiro e outros elementos do audiovisual que fortalecem (ou não) uma obra.

O detalhe do AdR, motivo para qual nunca chamamos o que fazemos de crítica, é que esse é um ramo profissional estabelecido. Usar a palavra significaria assumir esse e os outros papeis que estou descrevendo no texto, algo não tão trivial.

Somos estudantes antes de tudo, então raramente entramos na seara de determinar o que é bom ou não é, uma tremenda responsabilidade. Caminhamos buscando entender por que a obra é boa ou não é, que ensinamentos podemos tirar dela.

Definir a posição da obra: no gênero, na arte, no contexto histórico e social

Aqui entra o papel mais difícil da crítica, ao menos na minha visão. Acabei de falar do AdR como estudante. Quem vive da crítica profissionalmente — ao menos no minha utopia mental — conhece arte e história ao ponto de ser capaz de entender sua posição no todo, indo além da obra isolada.

Uma coisa é determinar se Logan é bom ou ruim. Outra é entender o que o filme revela sobre o gênero de super-heróis.

Entender como Sam Peckinpah reflete sobre o gênero Western.

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Fazer essas relações requer um contato sensível entre a arte e o mundo que ela tenta reproduzir. Como falei no texto sobre A Qualquer Custo:

Histórias são pequenas visões de mundo. Elas nos ajudam a tornar a vida inteligível; através de histórias, absorvemos perspectivas além das nossas.

Essa noção funciona para além das histórias. Apoia a música, a pintura, a fotografia. A arte como um todo revela experiências e percepções de mundo, nos possibilitando novas experiências e percepções.

[O filme] desrespeita convenções e mergulha em fantasia, nadando sem remorsos em autoindulgência e excessos na direção.

O trecho mostrado no início do texto, e esse acima, de duas críticas diferentes, não cumprem nenhuma das funções, divagando sobre o artista com uma carga agressiva.

Já disse que adorei o filme e a questão não é que esses críticos não tenham gostado — não vou colocar links pois a minha crítica (rá rá) não é às pessoas, mas ao papel.

A crítica abaixo vem de uma pessoa que também não gostou do filme, mas que mantém respeito às pessoas envolvidas na obra que analisa:

mãe! | Crítica

http://collant.com.br/mae-critica/

Elas não me incomodam, ainda que discordemos, porque elas falam exclusivamente sobre a obra. Elas cumprem um ou mais papeis da crítica, sem precisar focar na pessoa por trás de maneira destrutiva.

Essa discrepância de críticas é cada vez mais comum. Com tanta conexão, alcance e facilidade de se dar opiniões, vemos muitas vezes críticos e público no mesmo nível, com a mesma linguagem, nos mesmos ambientes. Basta ver uma postagem de crítica no Facebook e acompanhar o show sem esquecer os memes em casa.

Profissionais da crítica, em tese pessoas especializadas no ramo, não devem perder de vista suas funções e agir somente como público — uma prerrogativa que, naturalmente, só o público tem.

“mãe!” é um grande exemplo dessa tendência, pois, por algum motivo, o filme não irrita somente pessoas do público fervorosas sobre suas religiões, que alcançam um nível fanático. Não me surpreende que elas ataquem a pessoa do diretor. De alguma forma, porém, o filme irrita os próprios críticos. Não são só aqueles dois exemplos.

Tenta tão desesperadamente ser louco e perturbador que tudo que podemos ver é o esforço feito e o dinheiro gasto. Não é à toa que há uma exclamação no título. Aronofsky simplesmente não sabe quando parar.

E mais:

Esse show delirante de aberrações tem duas horas de tolices pretensiosas que abordam religião, paranoia, luxúria, rebelião e uma sede por sangue em um circo de devassidão grotesca para provar que ser uma mulher requer sacrifício emocional e agonia física sob custo de todo o resto na vida, incluindo a própria vida. Isso pode ou não ser o que Aronofsky tinha em mente, mas chega tão perto de uma interpretação lógica quanto qualquer outra das estúpidas ideias que li ou escutei. As críticas, em que um grupo de críticos igualmente pretensiosos procuram frustrantemente por um significado mais profundo, são ainda mais malucas do que o próprio filme. Usando descrições como “estrutura hermenêutica,” “fantasia fantasmagórica,” “teste de Rorschach cinematográfico” e “grito estendido de fúria existencial,” elas com certeza sabem como te deixar rindo.

O resultado da crítica

Nenhuma das críticas detentoras dos trechos destacados vai além do primeiro papel citado da crítica, quando sequer chegam a essa função. Os trechos, em especial, não cumprem nada. O que eles fazem, então? Uma das pessoas mais interessantes de se ouvir sobre a teoria da crítica era o brtiânico Oscar Wilde, autor de “O Retrato de Dorian Gray”.

Toda arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Aqueles que vão abaixo da superfície o fazem sob seu próprio risco. Aqueles que leem os símbolos o fazem sob seu próprio risco. É o espectador, não a vida, que a arte realmente espelha. Diversidade de opinião sobre um trabalho de arte mostra que o trabalho é novo, complexo, vital. Quando críticos discordam, a pessoa artista está em acordo consigo mesma.

Oscar vai além das funções, falando sobre um significado mais profundo. Seja numa análise de escopo técnico, como no AdR, seja numa busca de significados — como nos textos de representação da masculinidade em histórias, também presentes aqui — as críticas revelam mais sobre quem escreve do que sobre a obra em si.

O que nos importa? O que nos move? Quais as nossas frustrações? Nossos prazeres? O que gostamos ou desgostamos em um filme pode falar sobre a qualidade do mesmo, sim, mas fala anteriormente sobre nossa própria identidade. Antes de pessoas críticas em especial, somos espectadores, aquilo que a arte espelha. Nossas interpretações são a razão de ser da própria arte. Ela não existe sem espectadores.

Frente às polêmicas iniciais nos festivais, Darren Aronofsky precisou dar uma declaração sobre o filme. A arte perde nesse momento, porque a importância da visão de Darren morre no momento em que o filme é lançado. Ela representa somente a intenção. O seu efeito, resultado, quem determina de fato, somos nós, público, com todo o apoio do sistema de críticas, curadorias e premiações.

Ainda com Oscar:

É isso que a mais alta crítica realmente é, o registro da própria alma de uma pessoa. É mais fascinante do que história, visto que se preocupa simplesmente com o indivíduo. É mais prazeroso do que a filosofia, pois seu objeto é concreto e não abstrato, real e não vago. É a única forma civilizada de autobiografia.

A última frase de Oscar Wilde resume o que deveria estar no coração de toda pessoa que escreve críticas. No fundo, ela está revelando quem é, pouco a pouco, por meio da arte que digere.

O que os trechos destacados de ataques ao diretor revelam sobre as pessoas que fizeram cada uma das críticas? Isso eu deixo para você, mas darei um último exemplo.

Li o seguinte comentário sobre o filme “Corra!”, último analisado aqui no AdR.

Não que a ideia seja ruim. Falta alma, transborda artificialismo.

Falta alma? Talvez essa seja uma frase que críticos deveriam abolir — uma exceção aberta para as sequências de Transformers. O que eu absorvo desse comentário não é que falta alma à “Corra!”. Se tem uma coisa que eu sinto no filme ao assisti-lo, ou ao reproduzir a trilha toda em minha mente de novo e de novo, é que ele tem alma.

O que absorvo dessa crítica é que a alma do filme e da pessoa autora da opinião não casam. De alguma forma, ela não se conecta com o tema proposto, ou com a forma como foi exposto no longa. Aprendi mais sobre a pessoa do que sobre o filme em si. Aprendi até que deve ser alguém que prefiro não conhecer.


Você também pode ler outras análises de filmes e séries aqui.

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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.


Yann Rodrigues

Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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