Maximizar conflitos. Essa é uma das máximas dos roteiristas, em especial nas histórias ocidentais. Se um filme ou série por aqui for pobre em conflitos, sofrerá uma chuva de críticas.

Aprendemos sobre os tipos de conflitos a partir da análise de Breaking Bad e outros exemplos aqui. Mas e se estivermos em um passo anterior? Estamos escrevendo e precisamos aumentar o número de conflitos. Como fazer?

Uma das formas mais diretas – não que seja fácil – é criar personagens.

Criando personagens para criar conflitos

Imagine que você já conhece a protagonista da história. Os conflitos internos, aqueles contidos na mente da personagem, estão lá. Mas o mesmo não pode ser dito dos outros tipos.

Sem personagens secundários em volta, não há o conflito pessoal. Brigas, embates entre heróis e capangas, disputas entre amizades.

O conflito extra pessoal, envolvendo costumes sociais, conceitos morais e instituições, também não surge automaticamente apenas com o conhecimento sobre a protagonista. Em alguns casos, é possível que uma relação direta entre protagonista e os valores do público criem esse conflito. Outras obras, como Blade Runner, usaram aspectos visuais e sonoros, de ambientação, para trazer tais valores à tona. No entanto, ter personagens que representem esses valores diferentes é a forma mais simples de gerar até mesmo o conflito extra pessoal.

Não é à toa que tantas histórias evoluem ao redor de duplas. Lembre-se de “Seven — Os Sete Crimes Capitais”, por exemplo. O detetive Sommerset (Morgan Freeman) está cansado. Cínico. Precisa se aposentar, especialmente porque não acredita mais no mundo, na sociedade. O mundo não vale a pena.

O roteiro então joga o detetive Mills (Brad Pitt) na direção de Sommerset. Um jovem que foi intencionalmente em direção aos crimes violentos. Com energia e ingenuidade suficientes para acreditar que pode fazer o bem.

A simples relação entre os dois detetives é capaz de escancarar os três níveis de conflitos para o protagonista. Ele é forçado a encarar seu cinismo, confrontar Mills e os valores morais envolvendo os crimes de John Doe (Kevin Spacey) sistematicamente.

Ao final, o próprio John Doe força conflitos em Sommerset por ser o extremo do cinismo e da desesperança que acometem o protagonista. O detetive precisa encarar o fato de que seus discursos caminham na direção do vilão – e, no fundo, ele não concorda com o vilão. Deseja lutar contra ele.

Através desses personagens e conflitos, Sommerset consegue trilhar seu arco, que se finaliza na última frase do filme, em narração.

Ernest Hemingway uma vez disse que o mundo é um lugar bom e vale a pena lutar por ele. Concordo apenas com a segunda parte.

Nesse vídeo do canal Lessons From the Screenplay, você pode entender em mais detalhes o que acontece tanto em Seven bem como na 1ª temporada da série True Detective, com o protagonista Rust Cohle.

A função de personagens secundários

Para nosso propósito aqui, não precisamos entrar nos detalhes da formação de cada um desses conflitos. O que arcos como o de Sommerset e muitos outros mostram é que os personagens secundários, fundamentalmente, servem funções ao protagonista.

Como assim funções?

A princípio desejamos personagens bem desenvolvidos. Quanto melhor forem desenvolvidos, mais eles se parecerão pessoas. Esse é o norte que nos sentimos tentados a perseguir, a cada vez que criamos uma história. Ou mesmo quando assistimos. É só ver as reações de muitos fãs de Star Wars aos destinos de alguns personagens no recém-lançado Episódio VIII.

Acontece que o desenvolvimento é o norte apenas para protagonistas. Nenhuma história tem espaço para desenvolver todos os personagens igualmente — bem como fazemos com nossa própria vida. Para personagens coadjuvantes, o propósito na história não é ter a própria profundidade. É fornecer profundidade à protagonista.

Você entende as motivações do detetive Mills porque ele tem a construção necessária para isso. Também porque a trama de Seven é linear, e dá tempo para que a história nos mostre mais do parceiro de Sommerset. Agora, você entende as motivações de Eduardo Saverin (Andrew Garfield), o parceiro de fundação do Facebook para Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) em A Rede Social?

Aposto que não. Eduardo não tem um desenvolvimento independente de Mark. Repare como todas as cenas do coadjuvante só existem junto à Mark. Em geral, com Mark pedindo alguma coisa. Isso limita qualquer visão que possamos ter sobre Eduardo. Seu personagem parece, portanto, mais raso do que Mills; contudo, esse fato não torna “A Rede Social” pior do que “Seven”. A diferença nesses desenvolvimentos não afeta a qualidade das histórias diretamente, pois ambos personagens cumprem muito bem suas funções para seus protagonistas. Não à toa os dois filmes se destacam no brilhante currículo do diretor David Fincher.

Design de elenco

Essa visão dos personagens secundários como funções ao protagonista passa por algumas teorias, dentre elas o que Robert McKee chama de “design de elenco”.

Se dois personagens em seu elenco dividem a mesma atitude e reagem da mesma maneira a qualquer coisa que aconteça, você deve juntá-los em um só ou expulsar um deles da estória. Quando os personagens reagem do mesmo jeito, você minimiza oportunidades de conflito. Em vez disso, a estratégia do escritor deve ser maximizar essas oportunidades.

Imagine esse elenco: pai, mãe, filha e um filho chamado Jeffrey. Essa família vive em Iowa. Quando sentam para jantar, Jeffrey vira-se para os outros e diz: “Mamãe, papai, irmã, eu tomei uma grande decisão. Estou com uma passagem e amanhã vou para Hollywood tentar uma carreira de diretor de arte nos filmes.” E os três respondem: “mas que ideia maravilhosa! Não é ótimo? Jeff vai para Hollywood!” E eles brindam com seus copos de leite.

McKee então segue apontando como cada personagem precisa ter uma reação diferente. O pai detesta a ideia. A mãe apoia escondida. A irmã se desespera em ficar sozinha com a criação do pai.

Tendo lido esse trecho do livro Story, tente lembrar: quantas cenas você já viu de personagens à mesa? Almoço, jantar ou mesmo em um bar. Não é à toa que acontece tanto. A mesa é um lugar de reunião, portanto, representa ótimas oportunidades de criação de conflitos.

Shrek 2, Namorados para Sempre (Blue Valentine), Bastardos Inglórios ou a série Defensores mostram como histórias de gêneros completamente diferentes se aproveitam do mesmo elemento para instigar conflitos. Ah, e Álbum de Família, é claro.

O filme com Meryl Streep, Julia Roberts e outros excelentes nomes não fez tanto sucesso com a crítica ou o público, apesar do elenco de estrelas. Contudo, uma cena tenta seguir à risca o ponto dado por McKee. Começando no minuto 48, acompanhamos por vinte minutos a uma explosão de conflitos à mesa.

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Pré-cena

Beverly Weston (Sam Sheppard) se suicida. É esse o evento que reunirá toda a família que vemos no filme. A primeira pessoa afetada é Violet Weston (Meryl Streep), sua esposa. Suas filhas Barbara (Julia Roberts), Ivy (Julianne Nicholson) e Karen (Juliette Lewis) se reúnem na casa da mãe com suas respectivas famílias, assim que o pai desaparece.

Violet e Barbara concentram as atenções, cada uma vivendo casamentos quebrados a seu modo até o incidente incitante da história. Violet tem histórico de abuso de drogas, que, somado à sua personalidade e ao luto, a torna especialmente dura com todos à volta.

A cena

São 10 pessoas à mesa. Além das já citadas, estão: Mattie Fae (Margo Martindale), irmã de Violet; Charlie (Chris Cooper), marido de Mattie Fae; Little Charlie (Benedict Cumberbatch), filho deste casal; Bill (Ewan McGregor), ainda-marido de Barbara; Jean (Abigail Breslin), filha de Barbara e Bill; e Steve (Dermot Mulroney), noivo de Rachel. É muita gente, mas já vamos relacionar os personagens.

Album de familia cena 1

#PraCegoVer: as nove pessoas da família, fora Violet, aparecem à mesa.

A cena começa com uma subtrama, com a chegada de Little Charlie e sua distração quebrando o pires de comida feito por sua mãe. É uma caracterização do último personagem introduzido em todo o grupo, além de um ganho de tempo. A trama principal entra em cena quando Violet se junta à mesa.

Do momento em que Violet chega, o valor inicial da cena é estabelecido: Beverly, o patriarca, não está mais presente. Ela detém o poder. Isso é mostrado pela seguinte sequência de ações:

  1. Violet sai do escritório de Beverly, carregando um porta-retrato com uma foto do casal que lá ficava.
  2. Chegando à mesa, ela manda Barbara posicionar o porta-retrato na cômoda ao lado da mesa do jantar.
  3. Ela vê que os homens tiraram os paletós para sentarem à mesa.

Achei que estivéssemos em um jantar de luto. Não em uma rinha de galo.

Todos os homens, imediatamente, recolocam seus paletós. A partir daí, Violet decide o rumo do jantar como uma maestra.

Uma vez estabelecido o valor, cabe ao “design de elenco” criar as oportunidades para que esse valor seja confrontado ou reforçado, até que a cena passe por pelo menos uma mudança até o seu fim.

Album de familia cena jantar

#PraCegoVer: as nove pessoas da família, fora Violet, aparecem à mesa. Um número aparece em cima de suas cabeças, para identificação no texto.

Ivy [1] é a única filha que ficou junto à mãe, a tornando alvo de uma alternância de agressividade e gratidão, mas que principalmente a silencia. Fica quieta ao longo de quase todo o jantar, até confrontar a mãe após a situação de Little Charlie. Contesta o poder da mãe, apenas no final.

Rachel [2] é a filha que não recebe qualquer atenção de Violet. Acaba tentando conseguir atenção em cada frase, se submetendo a reforçar o poder da mãe em busca de migalhas.

Steve [3], como noivo de Rachel e mais novo “agregado”, acaba sendo apenas uma ferramenta de Violet para mais agressividade, sem contestar ou reforçar nada.

Little Charlie [4] também não demonstra relação direta a protagonista. Tenta mudar assuntos espinhosos e acaba perdendo o controle emocional graças à sua relação proibida com Ivy. Apesar de uma situação conflituosa, não reforça nem contesta o poder de Violet.

Charlie [5] não gosta de conflitos e tenta funcionar como apaziguador, o que o coloca contra Violet, que está ativamente procurando uma briga. Contesta o poder.

Bill [6], em processo de separação de Barbara, tem perfil de evitar confrontos, o que o torna alvo de Violet em busca de reforço de seu poder. A cada vez que ele cai na isca, um conflito entre ele e Barbara é gerado em consequência.

Jean [7] não tem momentos diretos com a avó, sendo a distância a principal marca do relacionamento. O confronto acaba acontecendo pelos valores distintos (o vegetarianismo motivado por ética da jovem) e pela forma de tratar a mãe. Não fica claro nem uma oposição nem um reforço ao poder Violet.

Barbara [8] é a filha favorita e distante, de personalidade mais forte, sendo maior alvo dos pedidos de ajuda e das frustrações de Violet. É a principal contestadora do poder da mãe.

Mattie Fae [9] diz a todo o tempo o que os outros devem fazer, mas, junto à Violet, apenas protege ou empatiza com a irmã. Reforça seu poder.

Passada a listagem dos personagens (ufa!), podemos avaliar a cena a partir do desenho de valor e elenco da mesma. Sem entrar no mérito de qualidade de diálogos e afins, vou destacar um ponto forte e um ponto fraco.

O ponto forte é: Violet é tão agressiva na cena, que tira Barbara de seu controle. A filha acaba dando um “golpe” no poder da mãe, criando uma caça às pílulas de que Violet abusa. Há uma frase direta de Barbara encerrando a cena:

Você não entende. EU ESTOU NO COMANDO AGORA.

O final da cena responde diretamente ao início dela, em um contraste evidente de valor. A cena passa por uma mudança drástica, uma preocupação de cada cena em um roteiro.

O ponto fraco é: o elenco pouco fez para que isso acontecesse. Não falo aqui de atrizes e atores, mas do elenco de personagens.

Das 9 pessoas fora Violet, quantas contestaram o poder? Três, sendo Ivy apenas no final. Quantas reforçaram? Também três personagens.

O que deixa três personagens sem reforçar ou contestar. O que elas fizeram na cena, então? Nada. Ou melhor, o que fizeram não foi suficientemente relevante. Foram praticamente inúteis, meras ferramentas das palavras dos personagens principais.

É natural que o reforço e a contestação de cada personagem sejam diferentes, ocorram em níveis distintos. É o desejável, inclusive. Entretanto, uma divisão igualitária como a ocorrida acima favorece a neutralidade.

Se o design de elenco favorece a neutralidade, para que a cena possa mudar de valor drasticamente, o roteiro precisa “fazer força”. É o que acontece na forma da própria protagonista. Violet precisa caçar briga com cada uma das 9 pessoas para que a situação se torne insustentável. Se você tem Meryl Streep no papel, pode ter certeza que o trabalho será entregue. Porém, mesmo com tanto talento em jogo, após vinte minutos de Violet atacando e atacando, o público não a sente como uma mulher fora de controle em um contexto dificílimo na vida. A sente apenas como uma pessoa detestável.

O bom design de elenco

Seja pelo exemplo de McKee ou pelo do filme, podemos perceber duas coisas a evitar: não repetir personagens; e não criar personagens neutros. É importante notar que neutralidade não é sinônimo de omissão.

Steve poderia não ter se posicionado no jantar por falta de intimidade, mas após o ocorrido, influenciar a trama de Karen com a mãe. Ao invés disso, o roteiro o coloca em uma subtrama com Jean para outro propósito. Em relação à Violet, ele é inútil. Portanto é neutro, ao invés de apenas omisso.

Podemos ver um contraexemplo em um dos filmes citados antes. Shrek 2 trabalha o elenco à mesa muito bem, na cena do jantar no castelo.

O grupo tem metade dos números de Álbum de Família. O contexto é a aceitação do casamento de Shrek e Fiona pela família real da princesa. Pai, mãe, filha, noivo e burro cumprem cada um o seu papel ao redor do tema da cena.

Fiona busca o entendimento entre Shrek e os pais. A rainha busca evitar confrontos, tenta manter a “boa política”. O rei quer provar que Shrek não é digno. Shrek quer provar que é digno de casar com Fiona. O burro… bem, o burro quer comer. Quer também o bem de Fiona, reforçando o desejo da mesma, e ainda funciona como um símbolo do desentendimento graças à seu estereótipo. Tudo isso enquanto os pais lidam com a surpresa de ver sua filha como uma ogra.

Os interesses de cada personagem garantem que conflitos podem surgir em qualquer direção. A cena começa com a boa vizinhança, termina em briga e desentendimento total. Fiona sai decepcionada com o resultado, Shrek fica triste de ter desapontado a noiva. O rei culpa Shrek pela briga, a rainha se desaponta com o rei, o burro fica chocado, preocupado com Fiona. Tudo em pouco mais de três minutos.

Conclusão

Cenas como as de grupos reunidos à mesa nos ajudam a visualizar o planejamento do elenco de uma história. Esse design não vale apenas para essas cenas, mas será perpetrado em cada trama planejada.

Cenas que maximizam conflitos não garantem qualidade porque, ao final, o filme depende das atuações, dos diálogos, da direção, da trilha sonora, dentre muitos outros elementos. Apenas criar a situação não salva uma história. A lição é que, pelo menos, as oportunidades para tal são geradas. Certo é que uma história nunca irá mal por ter oportunidades de sobra.

Aceita um breve desafio? Após ver/rever essa cena do jantar em Álbum de Família, que outros pontos você melhoraria no roteiro da cena? Se não quiser caçar esse filme, mas tiver outro exemplo em mente, fique à vontade para trazer!


Você também pode ler outras análises de filmes e séries aqui.

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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.


Yann Rodrigues

Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.

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