O que faz um arco de personagem memorável? Se você perguntar à autora K. M. Weiland, especialmente por seu livro “Creating Character Arcs” (Criando Arcos de Personagens), ela dirá que um arco de personagem só é tão bom quanto uma mentira.
Não qualquer mentira, mas aquela em que a protagonista acredita em seu âmago.
O livro “Creating Character Arcs” é bastante formulaico. Quer dizer, ele apresenta a construção de histórias como uma fórmula fechada, uma receita de fabricação de bolos em massa. Os eventos devem acontecer em um ponto X do roteiro, respeitando Y sequências e respondendo Z perguntas.
Apesar dessa característica, a exploração do livro permite a absorção de duas ideias valiosas. A primeira é a mentira. A segunda é a diferença de aplicação entre arcos positivos, planos e negativos (tragédias, por exemplo).
Esse texto vai focar na primeira. Se é que você acredita em mentiras.
A VERDADE
A finalidade do arco de personagem conforme Weiland é a Verdade. Uma verdade especial, buscada conscientemente ou não pela protagonista. As ações dessa personagem ou os conflitos apresentados terão o papel de aproximá-la ou afastá-la da verdade.
O que Weiland chama de Verdade é cunhado em outras teorias como Elixir (Jornada do Herói), Revelação (John Truby), estado de União (Carl Jung). É resultado das transformações pelas quais o protagonista passa, causa em outros personagens ou, nas tragédias, é o que o protagonista não consegue alcançar.
Essa Verdade reflete um ideal, uma visão de mundo, um entendimento que permite ao protagonista encerrar sua transformação, sua jornada. É, de certa forma, o próprio tema da história.
A Mentira existe em oposição à Verdade (jura?). É o estado inicial da protagonista, o estado de desunião ou contradição que não permite à personagem seguir a vida que quer ou precisa.
Como uma visão de mundo, a Mentira é algo em que a protagonista acredita, que a freia, que é usada como desculpa para não agir de forma diferente, não enfrentar os desafios necessários. A Mentira é uma fonte poderosa e interna de conflitos.
Weiland usa uma frase no livro:
the Lie the protagonist believes in.
Traduzindo, “a Mentira em que a protagonista acredita“.
Para entendermos como esse elemento é aplicado, precisamos de outro conceito auxiliar.
O FANTASMA
Fantasma, dor do passado ou qualquer expressão que evidencie que há um evento (ou uma série de eventos) importante na biografia da protagonista. Mais que importante, um evento definidor. Capaz de mudar a visão de mundo da personagem, de fazer ela passar a acreditar no que a história estabelece como Mentira.
Se a mentira é abstrata, o fantasma, nesse caso, é o que a concretiza.
Para Weiland, a relação desses elementos é a base de um arco de personagem. Um Fantasma justifica a crença em uma Mentira. Esse é o estado inicial do arco. A jornada, percorrer o arco, será o processo de transformar essa visão de mundo (ou visão sobre si), de largar a Mentira, superar o Fantasma e passar a acreditar na Verdade. Cada evento do roteiro, cada ponto de virada na trajetória, será um passo nessa tentativa de transformação.
Estabelecidos esses pontos, Weiland passa a maior parte de seu livro caminhando por cada ponto de virada responsável por causar algum nível de transformação. Essa parte eu vou deixar para quem quiser ler a autora.
Aqui, vamos entender mais à fundo o poder que essa Mentira carrega. Como ela afeta a construção dos personagens e é capaz de gerar grandes conflitos na história. Já devo ter recomendado esse vídeo do Lessons from the Screenplay em três ou quatro textos, mas vai aqui de novo:
Fora o vídeo, vamos estudar esse poder através do filme “Filhos da Esperança”, de Alfonso Cuarón, acompanhados do protagonista Theo (Clive Owen). Simbora.
Estudo de Caso
Como a Mentira e a Verdade são entendimentos da personagem sobre a vida, sobre si ou o mundo, é comum que elas sejam demonstradas em diálogo. Elas também podem ser demonstradas por ação, por estabelecimento da mise-en-scène, pela montagem, dentre outras possibilidades. A primeira coisa que precisamos entender é: qual é essa visão de mundo?
No vídeo do LFTS, Sommerset (Morgan Freeman) revela sua visão, portanto, sua Mentira, próximo ao final do filme Seven. As dicas percorrem o longa, mas demoram para serem declaradas. É mais comum que essa revelação aconteça no início, no primeiro Ato, no Mundo Comum do protagonista.
Em Filhos da Esperança, a descrição que apresenta Theo no roteiro já estabelece o personagem.
Theo é um veterano da desesperança. Ele desistiu antes do próprio mundo.
Essa introdução nos deixa prontos para a conversa entre Theo e Jasper (Michael Cain), que vai estabelecer boa parte das exposições que precisamos para entender a história. Quando o filme começa, nenhuma criança nasce no planeta há 18 anos. A humanidade está fadada à extinção.
Enquanto Jasper trata com esperança ou dor sobre cada evento que ocorre na distopia alucinante de Filhos da Esperança, Theo responde com descaso. Essa é a primeira dica de que estamos vendo a Mentira do protagonista.
THEO
Jasper, você está levando tudo isso muito para o pessoal. Em 80 anos, a humanidade vai desaparecer. E daí? 98% das espécies que andaram pela Terra se tornaram extintas.
Jasper dá mais um trago.
THEO
Os dinossauros tiveram o momento deles. Agora é nossa vez. Por que seríamos tão especiais? Só porque deixamos pra trás algumas pilhas de rochas interessantes?
Para confirmarmos que essa é a Mentira em que Theo acredita, precisamos encontrar um evento ou justificativa que evidencie por que ele abraçou essa visão de mundo. O roteiro nos dá isso em seguida.
Jasper responde à indiferença de Theo destacando o que nos faria tão especiais.
JASPER
E alguns livros. Alguns livros impressionantes. E aquelas sinfonias esmagadoras.
Theo acena com a cabeça em concordância.
JASPER
Dylan.
Os dois homens sorriem e ficam em silêncio.
Dylan. Esse nome representa algo, já que Jasper o usa para contradizer a visão de Theo. Entendemos na cena seguinte do roteiro.
Em meio às fotos na parede, uma tirada em uma manifestação atrai a atenção de Theo: uma Janice mais jovem e Jasper, enroscando seus braços com os de Theo, desafiadores e de cabelos longos, e uma jovem mulher com a mesma atitude. Theo carrega um menino de dois anos em uma bolsa de bebê. Um cartaz com “Democracia Global” pode ser lido atrás deles.
Pronto. Dylan é filho de Theo. Theo era um manifestante. De alguma forma, que nunca teremos certeza qual, o filho não está mais presente. Aprenderemos apenas que está morto.
Theo não tem mais a presença do filho e não é mais o manifestante de outrora. Está tomado de ceticismo e desesperança. Pela forma com que Jasper respondeu, as duas coisas estão relacionadas. Dylan é o ponto fraco de Theo, o seu Fantasma, a causa de sua mudança de visão de mundo. Seja lá qual foi o evento que ocorreu com Dylan, que causou sua morte, é esse evento e seu resultado que fez a Mentira nascer na mente do protagonista. É essa memória que a mantém.
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O filme altera um pouco como essa revelação ocorre. A foto que mostra Theo, Julian (Julianne Moore) – mãe de Dylan e ex de Theo – e Dylan é vista pelo protagonista pouco após chegar na casa. Ao invés de falar de dinossauros, a frase de Theo é alterada para uma menção direta ao “Projeto Humano”, a entidade que será importante na trama.
THEO
Projeto Humano. Por que acreditam nessa besteira? Mesmo se essas pessoas existissem, com suas instalações secretas… Porra, é forte! (a maconha que ele está fumando com Jasper).
Mesmo se descobrissem a cura para a infertilidade, não adianta. É muito tarde. O mundo acabou. Quer saber? Já era tarde antes da infertilidade começar.
Independente da edição, o importante é que os conceitos permanecem lá. Vemos a Mentira de Theo na conversa com Jasper e o Fantasma de Dylan evocado na mesma. Ele é reforçado nas interações com Julian ao longo do primeiro Ato da história.
Com esses elementos em mãos, o filme segue trabalhando o arco de Theo, que não consegue dizer não para Julian. Seu incidente incitante ou chamado à aventura — ajudar uma refugiada a chegar ao “Projeto Humano” em segurança — é uma afronta à sua Mentira, pois não combina com a sua desesperança. Uma luz de que a história forçará Theo para fora dessa visão de mundo.

Descrição da imagem: Theo e Julian, conversando em pé, de frente um para o outro, enquanto Julian tenta convencer Theo.
Cada evento seguinte (as interações com Kee, a refugiada, e a morte de Julian) carrega o protagonista em uma direção que não o permita escapar da Verdade. A de que ele ainda nutre esperança, de que sempre faz sentido manter esperança e agir conforme.
Essa Verdade é escancarada em sua face quando Kee revela a ele que está grávida. A primeira gravidez em 18 anos destrói todas as razões de Theo. Ele tem o motivo mais forte do planeta para demonstrar esperança e espírito de luta.
Por que ele abandonou essa Verdade que tinha no passado? Porque o mundo após a perda de Dylan perdeu o sentido. A Verdade perdeu o sentido. Ela dói por ser uma afronta ao Fantasma, à fonte da dor do protagonista. Esse fator o motiva a se afastar da Verdade e buscar uma Mentira mais confortável, que cria sentido para o Fantasma, que o possibilite sobreviver.
A morte de um filho faz mais sentido em um mundo que não merece esperança, em uma humanidade em extinção.
É comum que essa virada entre Mentira e Verdade ocorra no mid-point, por volta da metade do filme. Essa característica divide o filme em duas seções principais, componentes do arco do personagem. As duas seções têm a mesma direção:
Mentira —> Verdade
A Mentira é estabelecida na primeira metade e o afastamento é iniciado. Weiland declara o mid-point como o primeiro momento em que o herói aceita a Verdade no lugar da outra opção. É a cena em que Kee revela estar grávida. A partir desse ponto, a segunda metade da história determina a aceitação completa da Verdade e o reconhecimento da Mentira.
A cena mais icônica do filme demonstra o impacto que a Verdade tem não só no protagonista, mas no mundo ao redor. Uma guerra é literalmente interrompida graças ao nascimento do bebê de Kee, o primeiro em 18 anos.

Descrição da imagem: Theo e Kee descem uma escada, com o bebê no colo da Kee, enquanto Theo a apoia. Eles estão rodeados de soldados, que não acreditam no que veem.
É nessa fase também que tragédias costumam fazer o contrário. O protagonista nega a Verdade com a qual teve contato até o último instante.
Filhos da Esperança declara, através do arco de Theo, que a manutenção da esperança permite o nascimento de um novo Dylan. É esse o nome que Kee dá para o seu bebê.

Descrição da imagem: Kee, o bebê e Theo, em uma canoa isolada no mar, aguardando pelo resgate do “Projeto Humano”.
A relação dos conceitos
Qual a relação entre esses conceitos e outros que já trabalhamos aqui?
O incidente incitante, como no caso de Theo, é o evento que joga o protagonista na jornada de seu arco. O primeiro momento em que ele é obrigado a se afastar do cotidiano de sua Mentira.
O objeto de desejo consciente é um resultado do incidente incitante. Não é necessário que ele tenha também uma relação direta com esses conceitos, ficando a cargo de cada história.
Mentira e Fantasma são questões fortemente conectadas à biografia e profundidade psicológica da personagem. Portanto, são inerentemente conectadas ao objeto de desejo inconsciente. Os dois elementos são geradores desse desejo inconsciente, pois são os motivos do vazio ou da falta que o protagonista sente.
Logo, a Verdade é o próprio desejo inconsciente em outro termo. É a necessidade do protagonista, o que ele precisa alcançar, mesmo que não saiba.
Podemos teorizar que o objeto de desejo inconsciente é o combustível que movimenta essa transformação:
Mentira — (objeto de desejo inconsciente) —> Verdade
Esse combustível precisa apenas da saída da inércia, de algo que dê a partida, papel ocupado pelo incidente incitante com seu desejo consciente resultante.
A relação entre Mentira e Verdade é geradora natural de conflitos. Especialmente de conflitos internos poderosos. Ela também pode gerar conflitos pessoais através de personagens ao redor que representem diferentes visões de mundo. Também pode gerar conflitos extrapessoais quando a visão social for contrária à do protagonista e uma das duas precisar ser transformada.
Por fim, uma situação de dilema é o momento máximo de conflito entre Mentira e Verdade. A decisão do protagonista será a revelação de aceitação da Verdade ou negação da mesma. É o que acaba definindo, ao final, se o arco do protagonista é positivo ou negativo.
Outros conceitos e estruturas podem ser utilizados com mais eficiência para a criação da trama da história. Para desmembrar a construção de um Ato ou desenvolver algumas cenas. O que me chama a atenção nas definições trabalhadas por Weiland em “Creating Character Arcs” é a profundidade que elas permitem alcançar na psique do protagonista. E até de outros personagens, como o antagonista.
Entender nossos personagens profundamente, o que os move ou trava, é um dos nossos maiores desafios ao escrever. Na dúvida, vale voltar à pergunta: em qual Mentira seu protagonista acredita?
Por fim, deixo uma sugestão para você. Fiquei na dúvida se usaria nesse texto o exemplo de Filhos da Esperança ou de Mad Max – Estrada da Fúria. O primeiro me pareceu mais didático. O segundo dá um belo exercício. Com a ausência de diálogos, os conceitos são revelados através de alucinações, ações e composições de cenas.
Trace o paralelo entre Max e Furiosa. Quem você entende como protagonista da história? Como personagem principal? Pensando na relação de cada um com os conceitos de Weiland, seu entendimento se mantém? Qual a Mentira, o Fantasma e a Verdade de cada um? Será possível que os dois personagens sejam protagonistas? Aguardo sua visão nos comentários.
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.