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Olá, eu sou o Yann e esse é o segundo episódio do podcast do Além do Roteiro.
Avisos
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A periodicidade do podcast nesse início de projeto é quinzenal.
A transcrição de todos os episódios vem aqui para o site do Além do Roteiro, com o link do Spotify e o botão para ler uma transcrição como essa já no topo da página inicial.
A partir do próximo episódio, vou trazer no início as atualizações de livros, roteiros e eventos nos artigos fixos de utilidades do Além do Roteiro, destacados na página inicial.
A campanha do Apoia.se está no ar e quero deixar mais claro sobre os níveis de contribuição sugeridos.
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O segundo nível, Leitura de Roteiro, dá acesso ao grupo de leituras de roteiro que vou organizar, para a leitura dos nossos próprios roteiros dentro do grupo. Vou adicionar as pessoas que apoiarem o Além do Roteiro nesse nível em um grupo exclusivo no Telegram.
Nesse grupo, faremos encontros frequentes para a leitura de projetos nossos, para que possamos testar os roteiros em uma leitura e receber comentários de nossos pares.
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Bom, esse aqui é um podcast de estudo sobre roteiro e narrativas. Eu escuto podcasts sobre o assunto como uma das minhas próprias práticas de estudo. Tem também os canais do YouTube. Tem conteúdos nacionais muito interessantes, citei o @unidospeloapocalipse nos avisos iniciais, apesar de ser no Instagram. Tem uma enxurrada de conteúdo gringo que também tem bastante qualidade.
De todos os projetos que eu acompanho, talvez o que mais tem me divertido no último mês é um podcast que não é sobre roteiro. Ou sobre estudos também. É quase um documentário, um making/of, só que em áudio. Eu tô falando do podcast “An Oral History of The Office”. Já deu pra entender porque eu disse que é o que mais tem me divertido. Esse podcast é apresentado pelo ator Brian Baumgartner, que interpreta o Kevin na série The Office. Ele conversa com dezenas de pessoas envolvidas na obra, do criador Greg Daniels a roteiristas, colegas de elenco, produtores, operadores de câmera e por aí vai.
As histórias de bastidores de grandes obras sempre podem nos encher de lições sobre o ofício, e foi por causa desse podcast que eu fiquei refletindo sobre esse cara que tá aí no título e na capa do episódio. Basicamente, a reflexão é sobre a percepção do público sobre as intenções de um personagem.
Vou colocar de uma forma mais precisa. Michael Scott é um dos personagens mais icônicos da televisão, protagonista da série de comédia que é a sensação da geração millenial, uma série que continua sendo disputada por serviços de VOD por centenas de milhões de dólares.
Quando a gente assiste ao primeiro episódio de The Office, a gente descobre que o protagonista dessa série que todo mundo falou pra gente assistir é… bem… ele é um babaca. Uma das últimas cenas do Piloto mostra Michael fingindo que está demitindo Pam, a recepcionista, como uma pegadinha. A última coisa que Pam faz antes de sair de cena, depois de descobrir que era tudo uma pegadinha, é chamar o Michael de babaca.
O público de The Office sabe que Michael não é simplesmente um babaca. No fundo, ele se importa com as pessoas do escritório. Ele faz e fala muita besteira pela necessidade imensa que ele tem de ser amado, aceito, e a medida que ele tem para isso é o riso. Ele quer ser visto como o cara engraçado do rolê, que todo mundo quer por perto porque faz cada pessoa gargalhar. Michael está muito distante disso, mas é o que ele sente. Ele se importa.
Mas esse primeiro episódio não mostra bem isso. O gosto forte que fica é o de que Michael é um babaca, ponto. Como mostrar que ele se importa? Como fazer com que o público perceba as intenções de Michael Scott o suficiente para se afeiçoar a ele apesar de todos os seus defeitos e seguir assistindo à série?
Pra pensar sobre isso eu vou dar uns passos pra trás, no primeiro livro de roteiro que li.
PERSONAGEM É AÇÃO
Eu sinceramente não sei dizer se Syd Field é o primeiro guru de roteiros. Mas ele muitas vezes é citado como se fosse, e de certa forma é a imagem que eu tenho dele na cabeça. O primeiro livro que li sobre roteiros é a 2ª edição do livro “Manual do Roteiro”, lançado aqui no Brasil pela editora Objetiva. A primeira edição do livro é de 1979. O Manual do Roteiro não é de forma alguma o livro mais antigo sobre o assunto, mas talvez seja o primeiro que alcançou status de bíblia do tema.

Lá no site do Além do Roteiro você consegue acessar essa mesma 2ª edição que foi a minha primeira leitura. Algumas pessoas talvez conheçam o livro na sua forma mais recente, a edição de 2005 com o título “Os Fundamentos do Roteirismo”, lançado aqui pela editora Arte e Letra. É uma edição complementada, com mais páginas e exemplos. Seja qual for a edição a que você tem acesso, no segundo capítulo, que pode estar com o título de “O Assunto” ou “O Tema”, o mesmo diagrama aparece.
Syd Field coloca o Tema como o topo de uma hierarquia. O Tema se divide em Ação e Personagem. Na parte da ação, ele divide em Física ou Psicológica. Só que na parte de Personagem ele faz uma divisão com frases. Um dos galhos que sai de Personagem é “define a necessidade”. O outro galho é “ação é personagem”.

No primeiro episódio desse podcast eu falei sobre a relação que um dos outros gurus, Robert McKee, fez entre Personagem e Estrutura. Agora temos uma definição de que ação é personagem.
Personagem é meio que tudo né. Mas tá, o que quer dizer quando o autor aponta que ação é personagem?
Syd Field se foca em aprofundar os outros três galhos nesse segundo capítulo sem falar muito sobre a frase que nos interessa… até o final, onde ele diz:
“Sem ação não há personagem. Ação é personagem. Uma pessoa é aquilo que ela faz, e não o que ela diz.”
Syd Field – Manual do Roteiro
Eu acho muito interessante como ler esses livros sobre teorias e técnicas de roteiro não deixa de ser uma leitura sobre as visões de mundo dos autores desses livros. Mas esse não é um episódio sobre os impactos morais de conceitos e teorias na construção das histórias.
A frase de Syd Field não deixa de ser intuitiva. Nós julgamos pessoas a partir de uma série de fatores, mas as ações talvez sejam a principal dessas formas. E se não foram na vida, as ações ganham destaque na linguagem audiovisual do cinema e da televisão, uma linguagem centrada em imagens.
Não é à toa que eu e Pam chamamos Michael Scott de babaca pelo piloto de The Office. Ele agiu como um babaca, e a ação dele é a principal informação que nós temos sobre esse personagem.
Só que aí ficamos com um problema. Se o público só tem acesso a essa ação, a obra corre o risco de que o julgamento que o público faz sobre o personagem não seja o desejado. É difícil enxergar as intenções de Michael no piloto de The Office. A dissonância entre a imagem que ele tem de si e que os outros têm dele é evidente. Mas como enxergar suas intenções por trás dessas ações, o suficiente para perdoar um pouco dessas ações que num primeiro momento soam horríveis?
Bom, se nós seguirmos o guru Syd Field, a mesma frase que criou o problema talvez seja a solução, não?
Então a série precisaria mostrar Michael sendo o oposto de babaca. Sendo gentil, por exemplo. Suas ações, afinal, são os elementos que revelam para nós quem ele é.
Faz sentido. Só que aí outro risco assume. O risco de Michael Scott deixar de ser Michael Scott. O risco de The Office perder a essência da série britânica original, onde o protagonista David Brent era um babaca.
E é por isso que esse episódio surgiu do podcast sobre The Office. Podemos aprender com os próprios criadores da série como eles resolveram esse problema.
An Oral History of The Office
Antes de falarmos das soluções, eu vou fazer um pouquinho mais de força pra te convencer de que havia um problema, especificamente um problema na relação do público com as intenções de Michael Scott. Sabe como é, eu só saberei sua opinião depois do episódio e eu quero que quem ainda não concorda com essa ideia suba no mesmo barco.
É a própria equipe de The Office que assume que havia esse problema. Estamos no episódio 4 do podcast “An Oral History of The Office”, chamado “A Million Things Have to Go Right”. O programa passa por essas 1 milhão de coisas que precisavam dar certo para o show não ser cancelado. The Office passou no limite do cancelamento muitas vezes na primeira temporada e no início da segunda.
O início do episódio do podcast começa contando como a audiência de The Office na primeira temporada era um desastre. Esse é o adjetivo que Jenna Fischer usa, e ela é a atriz que interpreta Pam. Um dos executivos do show, Kevin Reilly, diz que a audiência caía a cada semana da primeira temporada. Lembrando que ela tem apenas 6 episódios.
O podcast continua contando sobre a luta para convencerem o canal a renovar para uma segunda temporada, o que aconteceu com somente mais 6 episódios sendo aprovados, e com metade do orçamento tradicional.
O primeiro milagre para The Office foi o lançamento do filme O Virgem de 40 Anos, protagonizado pelo mesmo Steve Carrell que interpreta Michael Scott.
A partir do sucesso do filme, que segurou a onda dos executivos de canal que não queriam cancelar um programa com Steve como estrela, a equipe de criação de The Office teve a chance de fazer as mudanças necessárias para que a série conquistasse a audiência.
Greg Daniels, o criador da versão americana de The Office, elaborou o plano. Transformar Michael Scott. A frase que Greg diz no episódio do podcast é:
“Eu tentei pensar em coisas que reabilitariam Michael”.
Greg Daniels – An Oral History of The Office ep.4 – A Million Things Have to Go Right
Ele está falando em reabilitar a visão do público sobre Michael Scott. No pitching que Greg fez para as equipes de roteiro e produção, ele disse que o show precisava pegar 20% do que era tão amável no personagem do filme Virgem de 40 Anos e colocar em Michael Scott, e pegar 20% do otimismo desse filme e trazer para a série como um todo. Cada episódio precisava terminar com um gostinho positivo, mesmo que de leve.
Todo mundo na equipe odiou. Isso estragaria The Office, a essência da série original. Ninguém que escreve gostaria de ouvir que o seu personagem precisa ficar mais “gostável”.
Um outro livro, talvez o mais polêmico dos livros famosos de roteiro, chamado Save the Cat, do autor Blake Snyder, traz no seu título justamente a ideia do personagem gostável. Blake Snyder defende a necessidade de criarmos uma cena, de preferência a primeira cena da história, em que apresentamos ao menos uma característica, uma ação, que garanta que vamos torcer pelo protagonista ao longo da história. O famigerado exemplo que dá nome ao livro é a hipotética ação de salvar um gatinho preso em cima de uma árvore.

Quer dizer que Michael Scott vai ter que salvar um gatinho em cima da árvore para o público gostar dele? Isso é o oposto do objetivo de uma equipe que escreve uma série como The Office. Ao mesmo tempo, uma ação como essa poderia ser a solução seguindo a lógica de Syd Field, já que ação é personagem, não é mesmo?
Jennifer Celotta, roteirista que entrou na 2ª temporada de The Office e se tornou coshowrunner da série, disse o seguinte sobre isso:
“O que eu acho que foi a diferença no que estávamos fazendo ou o que acredito que foi a nossa missão na segunda temporada foi tentar entender melhor o personagem, tentar enxergar sob a superfície dele para que ele pudesse fazer coisas malucas e ridículas e que nós pudéssemos não gostar de algo que ele estava fazendo, mas que pudéssemos entender o porquê.”
Jennifer Celotta – An Oral History of The Office ep.4 – A Million Things Have to Go Right
Vamos olhar com atenção para essa fala de Jen – é assim que ela é chamada no podcast, e você sabe tão bem como eu que nós ficamos amigos íntimos das vozes que escutamos, então a chamarei de Jen.
A missão da equipe de roteiro para a segunda temporada era entender melhor o personagem Michael Scott. Mesmo que ele fizesse coisas malucas, que o público rejeita, era necessário que o porquê das ações de Michael estivessem evidentes.
Jen está falando da intenção do personagem. Essa subjetividade que não conseguiu alcançar o público o suficiente na primeira temporada.
Mike Schur, outro roteirista de The Office, que posteriormente criou Parks and Recreation e The Good Place, diz que:
“Ele [Michael] ainda pode ser terrível, ofensivo, ignorante, mas no fim de cada episódio vamos ter uma subidinha, uma pequena notinha positiva, e é claro que ele [Greg Daniels] estava 110% certo. E assim que entramos no detalhamento da história, nossos medos sumiram.”
Mike Schur – An Oral History of The Office ep.4 – A Million Things Have to Go Right
Pela fala de Mike, continuaríamos tendo as ações de Michael que nos acostumamos a ver na primeira temporada. Mas algum elemento novo chegaria para trazer essa notinha positiva. Conectando com a fala de Jen, esse ou esses elementos seriam aqueles que nos ajudassem a enxergar as intenções através dessas ações.
O primeiro episódio da segunda temporada precisou absorver essa missão, e ele tem algumas particularidades. Esse é o primeiro episódio escrito por Greg Daniels para a versão americana de The Office, a primeira ideia de piloto para a série, que acabou sendo guardada na gaveta e que foi resgatada para a segunda temporada, para o renascimento de Michael Scott. É o maravilhoso episódio dos Dundies, a premiação que Michael faz para os funcionários do escritório.
Acho que agora estamos prontos para mergulhar nas soluções.
Os Dundies e as mudanças na segunda temporada
Greg Daniels nos conta quem é Michael Scott no episódio dos Dundies. A princípio, o mesmo cara.
Os prêmios, os discursos, as piadas, tudo que Michael fala e faz segue horrível, insensível, ofensivo. Visivelmente o evento não está sendo legal.
Só que Michael e toda a equipe do escritório estão em um restaurante, com outros clientes presentes que nada têm a ver com o contexto. Dentre esses clientes, um grupo de caras com todo o perfil de quem faz bullying em narrativas americanas, ofende Michael, dizendo que ele não presta, é uma droga.
É aí que Greg aponta a única diferença entre o que acontece nesse episódio, o primeiro da segunda temporada, e o que teria acontecido na primeira temporada.
A diferença é que Pam defende Michael dos caras. Como se os funcionários pudessem fazer graça de Michael, mas esses caras não. A partir dali a equipe toda aplaude Michael e os Dundies ganham a tal nota positiva.
Greg fala que é como se 92% do episódio pudesse ter sido exibido na primeira temporada, e no fim você sai da meia hora de tv com um pouquinho de felicidade no coração de que as coisas não são tão terríveis graças a esses outros 8%.
Brian, o apresentador do podcast, o Kevin de The Office, resume que os Dundies mostram que Michael pode ser um idiota, mas é o idiota daquela família do escritório.
O podcast cita outros exemplos na segunda temporada e eu já vou trazê-los aqui, mas eu quero ir um pouco mais fundo no episódio dos Dundies, dissecar as consequências dessa mudança a princípio tão singela.
Eu não concordo tanto com Greg quando ele fala que a única diferença está na decisão de Pam de defender Michael. Essa é com certeza a mais relevante, mas eu sinto que as mudanças já estavam sendo plantadas mais cedo no episódio. Algumas nem tem relação com o roteiro, como o cabelo de Michael ou seu uso de terno. O canal do YouTube Nerdstalgic tem um vídeo bem interessante chamado “Why The Office Changed The Original Michael Scott”, linkado na transcrição desse episódio lá no Além do Roteiro. Esse vídeo passa por vários desses detalhes e vale a pena assistir.
No roteiro, pra mim, o princípio da mudança está em uma cena com 6mins de episódio. Jim percebe como Pam é afetada pela tradição de Michael de entregar a ela todo ano um prêmio de noivado mais longo. Jim vai até Michael pedir para ele não entregar esse prêmio para Pam dessa vez. Michael rejeita, Jim insiste, diz que poderia parecer preguiçoso Michael sempre depender da mesma piada.
Michael fica ofendido por essa fala de Jim. Até esse momento, todas as ações e falas de Michael eram as mesmas da primeira temporada. Nesse momento, Michael sai de sua sala e fala para todo o escritório que familiares e amigos estão convidados. Ele quer fazer desse o melhor Dundies de todos.
As motivações de Michael não parecem super nobres, as ações de Michael não parecem super nobres, mas essa cena revela o primeiro momento de coisas muito importantes que vão ser destacadas no episódio. Uma delas é o esforço que Michael faz para que as pessoas gostem do que ele faz. Sem jeito, sem tato, mas existe o esforço, e o esforço perceptível já aproxima o público.
No Dundies, Michael entrega prêmios horríveis, faz piadas horríveis, canta mal, é ofensivo sem perceber. Padrão Michael Scott. Com 14 minutos, quase dois terços do episódio agora, vemos Michael bastante suado, cansado, fazendo uma pausa. Dwight interrompe a pausa antes da hora e Michael precisa voltar para a apresentação dos prêmios. Ele canta outra música super mal e é visível como ele está quase ofegante, tamanho o esforço que está fazendo.
É nesse momento que vem a cena que Greg citou. Michael é ofendido por desconhecidos e Pam, já bêbada, o defende. A mesma Pam que descobriríamos logo depois que escreveu uma piada sobre Michael no banheiro feminino do escritório.
Como disse Brian no podcast de The Office, Michael é um idiota, mas é o nosso idiota.
Mas antes mesmo de Pam defender Michael, tem outra pequena mudança que eu achei super relevante. Na primeira temporada, Michael vai até o fim de suas iniciativas. Sempre. São as outras pessoas do escritório que não suportam mais as atividades que ele propõe. No segundo episódio da primeira temporada, o famoso Diversity Day, a empresa Dunder Mifflin envia um palestrante para fazer um treinamento de diversidade e como lidar com o preconceito no escritório de Scranton, chefiado por Michael. Michael transforma a iniciativa corporativa no próprio treinamento, fazendo o que ele acredita ser a forma de lidar com o preconceito.
Obviamente a coisa toma um rumo deplorável.
Kelly finaliza o treinamento sobre preconceito com um tapa na cara de Michael. É o segundo episódio da série, Michael já foi chamado de babaca e levou um tapa. Em outro momento da primeira temporada, a equipe toda vai embora do escritório na cara de Michael, sem olhar para ele. Visivelmente, todos contra ele. Mas Michael não percebeu o erro em nenhum desses momentos, não percebeu o insucesso do que fazia, e mais importante não desistiu no meio.
Voltando aos Dundies, no momento em que os caras desconhecidos que fazem bullying zoam Michael, ele fica tão mal que desiste. Ele resolve encerrar os Dundies e deixar todos em paz. Essa é uma decisão nova para Michael Scott. Nunca o vimos desistir de ser inconveniente antes. É quando percebemos que ele está em uma espécie de fundo do poço, ao menos naquele dia.
Isso torna ainda mais significativo quando Pam o defende. É de fato uma decisão e uma ação protetora.
Vamos voltar na ideia de Syd Field? Ação é personagem.
Aqui, Michael não teve uma ação legal como Blake Snyder diria para fazermos, mas teve sim uma ação diferente da que estávamos acostumados. Desistiu dos Dundies. É nessa ação que entendemos como ele se sente quando as pessoas não gostam dele, de suas piadas, do que ele faz.
Pam o defende e isso vira de ponta cabeça. A premiação que Michael tanto ama está sendo defendida pelos funcionários do escritório. Portanto, ele está sendo defendido em sua essência.
O outro ponto que eu acho super interessante nessa mecânica usada pela sala de roteiro de The Office é como eles nos fazem sentir um personagem a partir da ação e da reação dos outros. A ação de Pam, depois acompanhada pelos outros funcionários, nos diz coisas sobre Pam? Sim. Mas também nos diz coisas sobre Michael.
Se Michael é somente um babaca, é natural que ninguém goste dele. E é exatamente isso, com exceção de Dwight, que vemos na primeira temporada. Aqui, pela primeira vez, vemos outro personagem, alguém com quem nos identificamos, Pam, defendendo Michael. Se essa pessoa com quem nos identificamos está defendendo Michael, apesar de tudo que nós já vimos ele fazer e dizer, então deve ter algum aspecto lá no fundo sobre Michael que Pam consegue enxergar, mesmo que nós não consigamos ainda.
Como nós gostamos de Pam, enquanto ela der uma chance para Michael, é mais fácil nós darmos uma chance também. É uma inferência sobre o caráter de Michael que fazemos a partir das ações de outra personagem.
É sentindo isso que eu acho que a frase “ação é personagem”, ainda que válida, pode ser estendida. As ações dos outros personagens também nos dizem quem é aquele personagem alvo do nosso olhar. A rede de personagens ao redor faz parte da construção do personagem no centro.
O tom positivo que os Dundies começam a assumir na decisão de Pam, no minuto 15 do episódio, se mantém quando Michael entrega um prêmio positivo para Stanley. Um clímax se mostra quando Michael dá o prêmio de Pam: um prêmio pelos tênis mais brancos do escritório.
É nesse momento que eu volto na cena com Jim. Michael pode ter pensado em não dar o prêmio do noivado mais longo desde que Jim chamou sua atenção, ou pode ter pensado nisso na hora, reagindo à doçura de Pam com ele. Seja como for, a ação de outro personagem, seja de Jim ou de Pam, mudou a ação do próprio Michael. A série nos mostra que Michael tem as mesmas ideias horríveis, fala as mesmas coisas horríveis, faz as mesmas coisas sem graça, mas se alguém apontá-lo na direção certa, talvez, talvez ele consiga mudar. Ele é capaz disso. Porque, no fundo, ele se importa. Na primeira temporada, isso não aparecia.
No fim do episódio, Michael ainda dá um último suspiro de nota positiva, elogiando Dwight por seu trabalho como DJ da premiação. Só isso, um elogio, sem piada, e o sorriso de Dwight para fechar o momento.
Conclusão
O episódio do podcast de The Office ainda mostra outros exemplos na segunda temporada, quando Michael dá um conselho valioso para Jim com relação à Pam, ou quando vemos que, ainda que Michael seja um chefe medíocre, ele é um excelente vendedor. Conseguimos entender como ele foi promovido para o seu cargo. Michael também é ótimo com crianças, doce, divertido, genuinamente interessado.
Nesses exemplos temos uma série de ações diferentes do que esperamos de Michael, e que revelam aos poucos essas intenções do personagem que estavam escondidas na primeira temporada e que nos deixavam distantes do protagonista. São exemplos bem alinhados com a fala de Syd Field.
Mas o que fica de destaque pra mim é como as ações dos outros personagens perante à Michael foram a chave para transformar nossa visão sobre ele. Como a decisão de Pam foi a base que tornou possível nós entendermos Michael Scott com profundidade e eventualmente nos afeiçoarmos a ele. Algo que durou por sete temporadas, até a saída de Steve Carrell da série.
O próprio Steve Carrell resume Michael dessa forma:
“É como se ele trocasse os pés pelas mãos o tempo todo. Mas em várias formas eu não acho que ele valorizava um tipo de pessoa sobre qualquer outra. E por isso eu acho que ele era um personagem muito puro. Porque ele é bem burro em termos de politicamente correto e de ser apropriado em público, mas ao mesmo tempo, eu não acho que havia dureza em seu coração contra ninguém.”
Steve Carrell – An Oral History of The Office ep.4 – A Million Things Have to Go Right
Ao que Brian adiciona, talvez com a exceção de Toby. Brian chama Greg de volta para concluir essa ideia. Para Greg, com relação a Michael, era tudo sobre intenção.
“Se você conseguir ter uma pureza de intenção, você pode fazer as piores coisas do mundo para a comédia, mas como público você sente que ele não fez para ser cruel ou um babaca, ele está tentando.”
Greg Daniels – An Oral History of The Office ep.4 – A Million Things Have to Go Right
E esse é o segundo episódio do podcast do Além do Roteiro
Sigo mega curioso pelas suas opiniões, para que eu possa melhorar os episódios de acordo com os desejos de vocês. Nesse episódio eu citei dois livros, O Manual do Roteiro de Syd Field e Save the Cat de Blake Snyder, e os dois estão disponíveis na pasta de livros no site do Além do Roteiro. Os episódios 1 e 2 da primeira temporada de The Office, o Piloto e o Diversity Day, estão disponíveis na pasta de roteiros do site. Infelizmente, não tenho o roteiro dos Dundies. Para estudar esse episódio, o jeito é assistir. Mas a pasta de The Office tem outros roteiros da segunda temporada, para você poder comparar as mudanças que aconteceram na escrita entre elas.
Reforço que a transcrição desse episódio está lá no site, com os links de todas essas referências citadas ao longo do programa.
Te espero no próximo episódio. Até breve!
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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.