Talvez você já tenha tido contato com essa metáfora: “A Origem” é um filme sobre a arte de fazer filmes.

Tudo começou com uma análise de Devin Faraci do antigo site de críticas CHUD, logo após o lançamento do filme. Infelizmente, a análise já saiu do ar. No entanto, ela tomou outros sites, se espalhou pelo Reddit e foi confirmada por Nolan em entrevistas.

Vou te deixar com dois links para explorar essa ideia.

EW – Jeff Jensen – ‘Inception’: Behind the scenes of a movie about movies – and the mind of its maker

The Awl – Maria Bustillos – The key to ‘Inception’: It’s a movie about making movies

Basicamente, Fischer (Cillian Murphy) seria o público. Plantar uma ideia na mente de Fischer significa plantar uma ideia na mente do próprio público. Uma das características mais mágicas das histórias e do cinema como um todo.

A equipe organizada por Cobb (Leonardo Di Caprio) seria a equipe de produção de um filme. Ele como o diretor (o próprio Nolan), Ariadne (Ellen Page) como design de produção em algumas analogias, roteiro em outras, Arthur (Joseph Gordon-Levitt) como produtor, Eames (Tom Hardy) como ator, Saito (Ken Watanabe) como o executivo do estúdio, Yusuf (Dileep Rao) como departamentos técnicos (efeitos visuais, por exemplo).

O próprio Nolan estabelece em entrevista para a EW que essa analogia aconteceu organicamente (é o primeiro link que indiquei). Durante o processo de 10 anos para escrever a história, por instinto, ele usou como base a equipe que conhece mais profundamente: a que produz um filme.

O segundo link teoriza Mal (Marion Cotilard) como a visão artística do diretor/criador (uma projeção nos sonhos), que não quer ceder ao desejo do público.

Como essa metáfora é, bem… uma metáfora, podemos aproveitá-la para outro meio. Claro, o roteiro.

No texto do estudo de personagem sobre June, de The Handmaid’s Tale, falamos na relação entre público e protagonista.

Uma série de conceitos auxilia na criação de um arco que culmina na transformação da protagonista. Nos relacionamos com ela, pois nos relacionamos com o seu processo de transformação em detalhes, independente do resultado.

“A Origem” realiza o processo de transformação em dois personagens simultâneos: Cobb e Fischer. Cobb por ser o protagonista da história. Contudo, na metáfora, Cobb é o agente, o roteirista ou diretor, o contador da história. Fischer é o público a ser atingido, a ter a ideia implantada. Portanto, Fischer é o objeto de estudo de Cobb.

Se vestirmos a carapuça da equipe que invade sonhos e implanta a ideia, perceberemos que a forma como Cobb e seus aliados estudam Fischer é a forma como nós, aqui fora, estudamos personagens para escrevê-los.

Fischer também poderia ser, portanto, o protagonista da história interna ao filme, a que Cobb está dirigindo.

A primeira relação curiosa que surge desse raciocínio é que protagonista e público são analogamente o mesmo personagem. O caminho de compreensão e construção do primeiro é o caminho de compreensão e da construção da capacidade de emocionar o segundo.

Portanto, “A Origem” é um grande exercício metalinguístico de criação de histórias. Um autor, Nolan, criando personagens que estudam outro personagem como se estuda um protagonista. O sucesso na transformação desse protagonista pelos personagens é o sucesso da transformação do público pelo autor.

A Origem - Fischer

Arte conceitual do filme Fonte: Wallpaper Craze

Vamos provar isso?

Vou precisar que você se lembre (ou leia ou já saiba) dos Conceitos #6 e #7. Lembrando, o texto Conceitos #6 fala de arquétipos de personagens em “Viva – A Vida é uma Festa”. Já o Conceitos #7 fala sobre a Mentira em que o protagonista acredita em “Filhos da Esperança”.

A equipe de Cobb estuda Fischer identificando sua Mentira, seu Fantasma e definindo as funções arquetípicas dos personagens à sua volta. Usando #6 e #7 – sem combinar qualquer coisa comigo, claro. Implantar a ideia na mente de Fischer, realizar a “Inception”, é implantar a Verdade que contradiz a Mentira em que Fischer acredita no início da história.

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Definindo a ideia a ser implantada

Por ser um trabalho proposital de inserção de uma ideia, o roteiro estabelece a Verdade cedo. Ou algo próximo a isso, o seu contexto. Saito precisa que o concorrente desfaça o império do pai após a morte deste, para evitar um monopólio com o qual não conseguiria competir.

Para que essa ideia seja convincente, ela precisa ser transformada em uma Verdade apropriada para Fischer. A ideia deve se tornar uma conclusão a que ele chega, uma visão que ele já guardava dentro de si e que sua Jornada traz à superfície.

Repare como esse objetivo é muito semelhante ao que temos escrevendo personagens…

Cobb e sua equipe não tem como garantir que Fischer guarda essa ideia em seu âmago. Portanto, eles precisam achar algo, uma necessidade adormecida, um objeto de desejo inconsciente, no qual essa ideia possa ser “colada”. Esse objeto de desejo inconsciente, que carrega a Verdade que Fischer precisa internalizar, precisará carregar junto a ideia que Cobb pretende inserir.

Para serem capazes de tal manobra, os personagens da equipe terão que descobrir, primeiramente, a Mentira em que Fischer acredita. A partir da descoberta eles devem relacioná-la ao seu desejo inconsciente. Por fim, estabelecer a Verdade a ser inserida, satisfazendo essa necessidade inconsciente.

Descobrindo o Fantasma de Fischer

Para formular que Verdade seria essa, o time estuda o desejo inconsciente do empresário. Cava fundo em sua biografia para encontrar qualquer rachadura que possa ser usada na delicada operação.

Assim como cavamos fundo nas biografias de nossos personagens ao criá-los.

Eles encontram. A relação problemática com o pai.

A Origem cena1

Descrição da imagem: Fischer (esquerda), o tio Peter (centro) e o pai Maurice (Maurice) estão em um quarto improvisado com uma cama de hospital. O pai está deitado na cama, muito doente.

Em uma cena de interrogatório, sozinho com seu tio Peter Browning (Tom Berenger), Fischer revela que a última palavra que conseguiu distinguir saindo da boca do pai foi “desapontado”. Toda a sua relação com o pai é seu Fantasma, uma dor do passado que percorre o presente e afeta o protagonista.

A partir dessa dor, Robert Fischer tem uma crença forte: o pai, Maurice Fischer (Pete Postlethwaite) não o ama. O despreza.

Eames, o maior responsável pela pesquisa da biografia de Fischer, descobre não só o fantasma como o desejo inconsciente que surge dali. O amor do pai. Esse desejo fica claro na conversa com o tio no interrogatório do sonho (que na verdade é Eames disfarçado). Também fica claro na “realidade”, na fase de preparação da missão, quando Eames está no escritório e observa a família. Fischer colocou um porta-retrato de uma fotografia de infância com o pai na cabeceira. A seu ver, o pai, deitado na cama ao lado, nem notou.

Desenvolvendo a Mentira de Fischer

A necessidade, o objeto de desejo inconsciente de Fischer, contrasta diretamente com a sua crença profunda. Ele deseja acima de tudo que o pai o ame, e acredita piamente que o pai o despreza.

Cobb aponta que uma ‘Inception’ deve ser realizada com uma emoção positiva, pois ela supera uma emoção negativa em força. Essa definição do universo da história direciona a ação que eles precisam tomar.

Caso emoções negativas fossem superiores, eles precisariam transformar o desejo de amor do pai em decepção e desprezo para o pai, transformando a crença de Fischer em Verdade. Como o norte é a emoção positiva, o caminho é o contrário. O desprezo do pai precisa ser emoldurado como Mentira. Dessa forma, quando Fischer enxergar que essa crença tem uma fraqueza, ele fará o possível para alcançar seu desejo inconsciente, concretizando-o em uma nova Verdade: seu pai, no fundo, o ama.

Os arquétipos ao redor de Fischer

Essa transformação emocional precisa que os personagens ao redor de Fischer cumpram papeis específicos. É bom lembrar que essa transformação precisa acontecer na mente de Fischer, que está sonhando. Portanto, ele está projetando todas as emoções, de fantasmas e desejos até a Mentira e Verdade fabricadas. A equipe de Cobb visa estimular essas projeções.

Lembrando os papeis:

Protagonista: A personagem líder, pela qual a perspectiva da história é contada. A personagem que tipicamente atravessa a metamorfose mais significativa.

Nêmesis (ou Antagonista): provê oposição à Protagonista, representa sua sombra, seus impulsos obscuros, de alguma forma relacionado ao objetivo da Protagonista.

Atrator (ou Aliado): personagens que estão intimamente ligados ao desenvolvimento emocional da protagonista, frequentemente um interesse amoroso. Ligados ao coração da Protagonista.

Mentor: personagens que estão intimamente ligados ao desenvolvimento intelectual da Protagonista, à sabedoria. Ligados à cabeça, à mente da Protagonista.

Trickster (ou Trapaceiro ou Pícaro): personagens que testam a Protagonista, trocando alianças de aliado para inimigo, inimigo para aliado, intencionalmente ou não ajudando a preparar a Protagonista a seu último desafio. Mesmo que “sem querer”, são geradores de conflito em essência.

Inicialmente, podemos encaixar todos os personagens no papel de Trickster’s, os trapaceiros. Toda a equipe tem uma agenda paralela que Fischer não conhece. Eles ora o atacam (no primeiro sonho, em que ele é sequestrado), ora o ajudam (nos dois sonhos posteriores).

No entanto, se todos assumissem o mesmo papel o tempo todo, ficaríamos com uma redundância gritante na história. Por que tantos personagens? Portanto, deve haver algo a mais se cavarmos o suficiente.

Vamos começar descartando quem menos interage com Fischer:

Mentor

Na vida real, o tio Peter assume um papel de Mentor, tentando pensar no melhor para a empresa enquanto o pai de Fischer chega perto de falecer. Eames percebe que Peter tem uma agenda própria em seus conselhos, visando seu próprio poder. Então ele absorve o papel de Mentor do tio no primeiro sonho, falando sobre a relação com o pai.

No segundo sonho, quem realiza o papel de Mentor é Cobb, como suposto chefe de segurança da mente de Fischer. Ele explica os detalhes que permitem ao protagonista perceber que está sonhando e o guia para lidar com essa situação.

Já no terceiro sonho, a equipe inteira é aliada de Fischer, enquanto eles tentam chegar ao cofre com o testamento. Funcionam como Mentores ao explicar o plano e ajudarem-no na execução da missão.

Nêmesis

Também no segundo sonho, Eames aproveita a descoberta sobre a ambição de Peter para transformar o tio de Mentor em vilão, o Nêmesis. À medida que eles implantam a ideia do testamento que permitirá a Fischer desfazer o império do pai, também transformam o tio na oposição a esse objetivo.

No primeiro sonho, a equipe inteira funciona como Nêmesis, por sequestrarem Fischer e tentarem interrogá-lo. Ele vê especificamente Arthur, Saito, Eames e Yusuf.

No terceiro sonho, quem acaba se opondo ao objetivo de Fischer é Mal, ao matá-lo antes de chegar ao cofre e aprisioná-lo no Limbo.

Trickster

Todos acabam tendo papeis de trapaceiros para Fischer pela grande variação de funções que exercem a cada nova camada de sonho. Em um momento, sequestram o protagonista. Em outro momento, o manipulam. Por último, o ajudam, na camada mais profunda de sonho, e até o salvam do Limbo.

Ariadne, Eames e o próprio Saito se destacam nesse papel

E Cobb?

É aqui que quero chegar. A metáfora de que “A Origem” é um filme sobre fazer filmes é muito interessante. Mas ela é um easter egg para o público, um extra. Pesquisando, descobri que uma galera do cinema já estava um passo adiante. Na verdade, qualquer “heist movie”, filme do gênero de assaltos, tende a ser um filme sobre fazer filmes. A equipe de produção é a grande inspiração para os grupos de assaltantes em inúmeros filmes como Onze Homens e um Segredo.

A inovação de “A Origem” está no fato de o assalto não ser uma extração. Ao invés disso, o que torna a metáfora desse filme mais legal que as outras é o fato de o “assalto” ser uma inserção.

A inovação está, portanto, no arquétipo que Cobb precisa assumir frente ao seu alvo. No primeiro sonho, ele é um Nêmesis. No segundo, um Mentor. No terceiro, Mal, sua projeção, mata Fischer, o obrigando a descer até o Limbo para salvá-lo.

O arco de Cobb se assemelha ao arco de Fischer. Ele precisa superar sua culpa pela morte de Mal, assim como Fischer precisa superar o desprezo do pai na forma de uma Mentira.

Cobb é o Atrator de Fischer. Ele precisa ser a persona mais conectada ao desenvolvimento emocional, espiritual de seu protagonista. Se não for, ele não será capaz de implantar a Verdade que deseja. Pois ele próprio não será capaz de enxergar a Verdade por si, e continuará preso a sua própria Mentira.

Agora vamos subindo à superfície. Cobb é o atrator de Fischer. Fischer, além de protagonista para Cobb, é o público para Nolan. Cobb é o protagonista de Nolan, sua própria metáfora. Portanto, Nolan é o Atrator de Cobb.

Se Nolan é a persona conectada ao desenvolvimento emocional de Cobb -> Cobb é a persona conectada ao desenvolvimento emocional de Fischer -> e Fischer é o público = Nolan é a persona conectada ao desenvolvimento emocional do público de “A Origem”. Nolan é o Atrator do público.

O que isso nos mostra é uma realidade que cruza a fronteira das teorias. A cada autora e autor, “A Origem” dá a lição de que precisamos ser, antes de tudo, Atratores de nossos protagonistas. Dessa forma, seremos Atratores do público. É nos tornando as pessoas mais conectadas aos desenvolvimentos emocionais de protagonistas que seremos capazes de inserir no público a Verdade que desejamos. Mas essa não é qualquer Verdade, senão não estaríamos conectados. É a nossa Verdade. Não poderia ser de outro jeito.


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Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.


Yann Rodrigues

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