Nota: esse texto nasceu de uma enquete do grupo no Facebook do Além do Roteiro. Perguntamos de que personagem o grupo gostaria de ver um estudo aprofundado. June, protagonista da série The Handmaid’s Tale, foi a mais votada. Se interessou em participar do grupo? Acessa o link, pede para participar e chama as amizades. Vamos conversar sobre essa e muitas outras análises de filmes e séries por lá.
Em Dezembro de 2017, o Além do Roteiro foi chamado para dar uma palestra no CONACINE, o Congresso Nacional de Cinema, em São Paulo. Lá fomos eu e Nicholas Nogueira mergulhar no desafio. O título, dentro da temática de roteiro, foi: “Roteiro — Uma análise da relação entre público e protagonista”. Dá pra dizer que fiquei bem feliz.
Trabalhar essa relação sem uma observação minuciosa da protagonista é inviável. Como podemos entender os gatilhos que nos aproximam dela? Quais eventos ou características moldam nossa conexão?
A palestra caminha com alguns exemplos de personagens. Passa por conceitos e marcos na construção dessas figuras que completam uma resposta para essa questão. O que trago agora, nesse formato de texto, é o resultado da lógica criada para a palestra. Como consequência, um exercício de roteiro.
A partir de fontes como Robert McKee, Syd Field, John Truby, da série “Conceitos” presente aqui no AdR, dentre outras fontes, montamos esse modelo resumido como guia para a análise de quaisquer protagonistas. Claro que não é bala de prata e muitas histórias podem fugir desse guia. É apenas uma ferramenta. Por ser a primeira utilização desse modelo aqui, os conceitos serão revisitados e alguns diagramas serão apresentados.
Vem comigo que vamos aplicar tudo isso à June Osborne (Elisabeth Moss). Antes do início da aguardada segunda temporada, pergunto: por que criamos uma conexão tão forte com a protagonista de The Handmaid’s Tale?
Incidente Incitante
É a velha pergunta: como uma história começa? Chame de incidente incitante como McKee ou de chamado da aventura ou qualquer outro nome, esse conceito é um dos mais frequentes nos textos por aqui. Não é à toa.
O incidente é marcado por ser o ponto de partida de uma história. É bastante pontuado por aqui o efeito que ele tem:
“É também um desarranjo radical na vida do protagonista.”
A partir desse desarranjo, a história pode entrar em movimento. Essa parte trabalhamos há algum tempo. Entretanto, falar apenas em desarranjo não responde sobre a nossa conexão, enquanto público, com o protagonismo.
O que falta é olhar por que aquele evento causa um desarranjo.
Alguns incidentes incitantes podem ser extremamente pessoais. Em Divertidamente, quando Riley e a família se mudam para São Francisco, a história tem seu início devido ao desequilíbrio causado na menina. No entanto, nem todas as pessoas são afetadas com a mesma intensidade por uma mudança de cidade.
Parte do público se identificará com a situação. Parte compreenderá, mas não terá uma empatia especial.
As histórias com inícios mais impactantes costumam apresentar eventos universais. Capazes de afetar qualquer pessoa que estivesse no lugar da protagonista. É o caso de June em “The Handmaid’s Tale”.
A primeira cena é aterrorizante. June está fugindo de uma espécie de polícia com seu marido, Luke (O-T Fagbenle), e a filha, Hanna (Jordana Blake). Eles batem o carro e precisam seguir a pé. O marido fica para ganhar tempo, ela corre para o mato com a filha. Ela escuta o tiro que significa a morte de Luke. Se esconde em desespero. Acaba sendo encontrada. É raptada e separada de Hanna.

#PraCegoVer: June em destaque, em desespero enquanto tenta se esconder dos homens que tentam sequestrar a família.
Esse evento pode causar desarranjos diferentes em cada pessoa, mas ninguém continuaria com a vida estável após uma situação como essa. A força desse incidente incitante é a primeira forma que a história tem de garantir que todos nós do público estaremos conectados à June. Portanto, na construção de uma relação entre público e protagonista, o incidente incitante é o primeiro passo:

#PraCegoVer: início do diagrama da construção de relação entre público e protagonista. Um bloco, “Eventos da história”, aparece no topo, à esquerda. Dentro dele, uma caixa de nome Incidente Incitante como primeira etapa.
Objeto de Desejo Consciente
Como vimos no texto sobre os objetos de desejo, a primeira necessidade do protagonista surge justamente do incidente incitante. O personagem buscará restaurar o equilíbrio perdido.
Um retorno ao equilíbrio anterior é impossível para June. Sua família nunca mais será a mesma em sua mente, pois ela acredita que Luke foi assassinado.
Ainda assim, ela tem duas necessidades gritantes. Escapar do cativeiro de Gilead, resgatar Hanna. Dentro de circunstâncias tão violentas, esse é o retorno ao equilíbrio possível.
Um ponto importante para a conexão com o público é a ação da protagonista. Como ela vai atrás desse desejo? Na antiga série “The Mentalist”, o protagonista Patrick Jane (Simon Baker) se torna consultor da polícia para caçar o assassino de sua família, Red John. No filme “Up — Altas Aventuras”, Carl quer evitar o despejo iminente, manter a casa onde viveu a vida toda com Ellie. Sua forma de cumprir esse desejo é encher a casa de balões, flutuando com a construção.
Essa ação objetivando o desejo consciente permite uma nova “rodada” de identificações e empatia. Reagiríamos ao incidente da mesma forma? Compreendemos a reação?
No caso de June, essa lógica é um pouco diferente. Especialmente no episódio Piloto, a série faz a apresentação do sistema de Gilead. Aprendemos sobre a falta de natalidade, as cerimônias (estupros) e a existência das Colônias, que seriam o destino das mulheres que não se submetiam.
A situação externa à June é tão opressora que ela tem pouca capacidade de ação disponível. A partir de outras personagens como Janine, a história revela o custo de quem ainda assim não aceita jogar as regras do jogo.
A protagonista deseja recuperar a filha e a própria liberdade. Sua ação resultante, no início da história, é cooperar, não se rebelar. Nossa empatia não é criada apenas por “compreendermos sua decisão”. Não há dúvidas sobre ela, não precisamos entender o passado de June, sua psique, para entender seu caminho. Nossa empatia é criada pela disparidade de poder do cenário. O raio de ação de June é tão frágil que torcemos por uma reviravolta, ao mesmo tempo em que ficamos desesperados com a falta de esperança aparente.
É por essa disparidade que não podemos chamar essa primeira decisão de um dilema. June não enfrenta uma escolha profunda, conflitando dois bens irreconciliáveis, ou uma escolha de menor de dois males. Não nesse estágio da temporada, em que o desejo consciente resulta do incidente incitante, ainda no episódio Piloto. A alternativa a obedecer é ser morta ou enviada às Colônias (que a história apresenta como igual a ser morta). Para seu desejo consciente, fica claro que só obedecer é uma opção.
Com esse desejo estabelecido, temos mais um passo dado na construção dessa relação:

#PraCegoVer: Uma seta sai da caixa incidente incitante para uma nova caixa, Objeto de desejo consciente.
Objeto de Desejo Inconsciente
O desejo inconsciente é uma característica reservada à camadas profundas da protagonista. Ele está relacionado à biografia, seja originado por eventos do passado, por genética ou pelo contato de características natas com situações criadas pela história.

#PraCegoVer: Um novo bloco, chamado “Passado do personagem”, aparece no topo à direita. Dentro dele, três círculos nomeados de “Fatos” apontam para a caixa Objeto de desejo inconsciente.
Portanto, é difícil determinar esse elemento no início da nossa exploração. Seria um tiro no escuro ou um pulo de etapa.
Conflitos
Trabalhando em um sentido contrário — analítico, ao invés de criativo — podemos chegar ao objeto de desejo inconsciente por um de seus resultados. Os conflitos.
A relação entre os objetos de desejo é uma das formas de se criar conflitos em uma história. As forças de antagonismo também criam conflitos pela forma com que se opõem aos objetos de desejo — sejam os conscientes ou inconscientes.
Para quem escreve, é importante conhecer esses desejos antes. Portanto, analisando os conflitos visíveis na história, podemos fazer o caminho inverso.

#PraCegoVer: Os dois blocos, “Eventos da história” e “Passado do personagem” são conectados por uma barra. Dessa conexão, uma seta segue para uma caixa fora dos blocos, chamada Conflitos, como resultado da relação entre os objetos de desejo.
Conflito extrapessoal
Robert McKee comenta em seu livro Story, como o conflito extrapessoal é a camada mais cinematográfica de conflito. Como assim?
Imagine adaptar Ulysses, de James Joyce. Um romance cuja história se passa em um único dia, todo dentro da mente do protagonista. Essa história é a síntese de um conflito interno, e o livro é a mídia mais capaz de apresentar essa camada. As palavras determinam um conflito interno com uma capacidade objetiva que imagens e sons apenas circundam.
Isso não quer dizer que a história não seja adaptável, apenas que o desafio de fazê-lo é muito maior.
Um conflito extrapessoal pode ser representado em palavras ou na música. Mas nenhuma mídia, mesmo o teatro, consegue representá-lo com a objetividade do cinema. Nesse caso, a câmera traduz a camada de conflito de uma forma que as palavras de um livro apenas circundam.
The Handmaid’s Tale é uma obra suportada pelo conflito extrapessoal. A premissa de Gilead norteia qualquer aprofundamento de personagens e relações pessoais. É redundante falar das questões de machismo, misoginia, fundamentalismo, dentre outras opressões presentes na distopia. Elas estão lá em níveis dilacerantes.

#PraCegoVer: June e dois guardas estão no metrô. Ela é travada por um guarda na tentativa de fuga com Moira.
Conflito pessoal
Lembrando do texto sobre esse conceito, a história revelará uma maior complicação a cada vez que repetir e intensificar o mesmo tipo de conflito. Agora, se o conflito extrapessoal dessa história norteia todas as relações, podemos fazer as ligações dessa camada com cada conflito pessoal presente. A cada conexão que conseguirmos fazer, a história mostrará uma maior complexidade.
June e Fred Waterford
A relação com o Sr. Waterford (Joseph Fiennes) talvez seja a que mais evidencia as opressões do machismo e patriarcado. Ele é o homem de poder no sistema de Gilead, um Comandante. June é a mulher escravizada para dar um filho a ele e sua esposa.
O primeiro conflito entre os dois é o primeiro estupro, nomeado de cerimônia. Nem Fred se sente à vontade no ritual que desumaniza June. Portanto, nesse momento, fica uma impressão de que os dois estão submetidos às ordens do sistema, um conflito extrapessoal. Porém, aos poucos June percebe que esse desconforto não vem do fato de Fred estar submetido àquele sistema.
Vem do fato de que ele quer se relacionar de uma forma que o sistema não permite. Mesmo sendo um sistema patrocinado por ele. A partir desse fato, um conflito pessoal é construído entre os dois.

#PraCegoVer: Fred Waterford de frente em destaque
Não há motivos para que ela tenha uma relação com ele além da obrigação. No entanto, manter a relação somente nesse patamar representa uma passividade que não comporta June e nem a ajuda. Ela parte para testes de sedução, como já explorado aqui.
Assim, situações como a de demonstração para pessoas políticas do exterior e viagens à Jezebel para noites “especiais” se tornam parte da vida da protagonista. O conflito pessoal entre eles cresce à medida que ela tenta encontrar fraquezas e ele explora sua posição de poder para dobrá-la.

#PraCegoVer: Repetição do diagrama anterior, mas setas de nome “Antagonismo” surgem ao redor da caixa Conflitos, apontando para a mesma.
June e Serena Waterford
Fred é a representação do centro de poder e privilégio de Gilead. Serena (Yvonne Strahovksi) é a representação de órbita. Mostra que o máximo de poder e privilégio que o sistema patriarcal permite a uma mulher é orbitar um homem poderoso.
Portanto, na relação entre June e Serena, vemos oscilações entre a empatia de duas pessoas que entendem que o sistema as aprisiona e a violência de quem tem poder sobre quem não tem direitos.

#PraCegoVer: Serena, agachada, colhe flores enquanto fala com June.
O centro de conflito entre as duas é a maternidade. Espera-se de June a capacidade de engravidar da criança que será chamada de filha por Serena. A própria Hanna é mantida cativa como chantagem para controlar a protagonista. É parte da perversidade de Gilead usar de uma realidade intrinsecamente feminina como a maternidade para criar conflito entre duas mulheres.
Pelo uso de Hanna, Serena parece mais antagonista do que Fred. Ela assume esse posto ao ser responsável por limitar a capacidade da protagonista de atingir seu objeto de desejo consciente. Nada poderia estar em mais oposição à June.
O efeito é de contradição na protagonista. Ela quer obedecer e se manter favorecida na casa para aumentar suas chances de recuperar a filha. Ao mesmo tempo, ela não quer engravidar por Serena, o que a desfavorece na casa e cria obstáculos. Essa contradição começa a nos dar pistas do que June necessita em seu inconsciente.
June e Tia Lydia
Serena é uma das representações femininas opressoras em Gilead. Tia Lydia (Ann Dowd) é outra. O estado golpista é notório por sua capacidade de recrutar o apoio de um grupo social que ele visa reprimir.
Se Governador e Esposa representam poder, as Tias representam a força. A missão de Tia Lydia é basicamente convencer todas aquelas mulheres raptadas de que aquela escravidão é uma benção.
Na lógica das Tias, June deveria agradecer por se tornar escrava sexual e perder a filha. Sua perda nada mais é do que um belo sacrifício pelo bem da humanidade. Essa lógica perversa e abstrata ganha corpo na figura autoritária e por vezes torturadora de Tia Lydia, transformando conflito extrapessoal em pessoal.
A relação de June com a Tia, no entanto, provoca algo semelhante ao que acontece em alguns momentos com Serena. June enxerga carinho na Tia como vê dor e sofrimento em Serena. Nesses momentos, a protagonista sente empatia por essas mulheres, o que a leva a um conflito interno automaticamente.
Afinal, quem suportaria humanizar quem arruinou sua vida?

#PraCegoVer: Tia Lydia anda ao lado de Janine, abraçada com ela.
Tia Lydia acaba promovendo a complexidade dos três níveis de conflito enquanto coloca liberdade contra sobrevivência. Se a protagonista acatar, sobreviverá e terá conforto. Se tentar se libertar, será torturada ou morta.
June e Moira
A relação com Moira (Samira Wiley) é uma das mais doloridas da série. Ali está o apoio, a sororidade, a amizade. Moira é uma aliada.
As duas acabam tendo que escolher se seguem juntas ou se apenas Moira segue na tentativa de fuga pelo metrô.

#PraCegoVer: Duas imagens, na de cima, Moira olha para June apavorada que a amiga parou. Na de baixo, June olha para Moira, incentivando que ela siga em frente.
Capturada antes que a amiga, Moira começa como mentora de June. Ela explica o básico para que a protagonista não sofra tanto nas regras de Gilead. Nos flashbacks mostrando o processo até aquele Estado, a relação mostra a sua força com a cumplicidade entre as duas mulheres.
Quando Moira desaparece e é dada como morta, as amigas são desconectadas. June vive a dor e o conflito interno da culpa.
É dessa desconexão que a série se aproveita para criar mais conflito, quando June descobre que Moira sobreviveu e é uma das Jezebels, as prostitutas mantidas à margem do sistema para o prazer “proibido” dos poderosos. A protagonista não teve a chance de fugir. Então, pede a ajuda da amiga para receber um pacote da Resistência. Moira, agora prostituta, já não guarda qualquer esperança de uma fuga. Ela só quer se manter o mais confortável possível naquele pesadelo. Uma arrisca a sobrevivência em nome da liberdade. A outra risca a liberdade em nome da sobrevivência. Por algum tempo, o sistema cria um conflito pessoal.
June e Ofglen 1
A reação inicial de June no Piloto, de acatar ao sistema para manter seu desejo consciente vivo, não dura muito. Assim como a obediência é necessária para sobreviver, ela aprisiona a protagonista na desesperança.
Quem reativa a esperança de June é Ofglen (Alexis Bledel).

#PraCegoVer: o rosto de Ofglen em destaque
O conflito existe, pois June está desesperada para confiar em alguém, mas, ao mesmo tempo, se desespera com a ideia de confiar em alguém e ser traída.
Esse se torna um dos primeiros dilemas da protagonista. A vida como Offred significa a vida sem Hanna. A vida como June pode levar a morte.
June, Ofglen 2 e Martha
Se a primeira Ofglen traz a esperança de volta, a segunda Ofglen (Tattiawna Jones) e Rita (Amanda Brugel), a Martha da casa Waterford, trazem o conflito do medo de espionagem. Elas são as outras representações femininas em oposição à liberdade das aias.
A nova Ofglen mostra para June como o sistema anterior já era maléfico para parte da população. Comparado ao caos e abuso que vivia, a vida controlada de Gilead oferece algum conforto e propósito. O mesmo propósito preenche as necessidades da Martha que vive na casa Waterford.

#PraCegoVer: June e Ofglen fazendo compras no mercado, desconfiando uma da outra.

#PraCegoVer: June e Rita frente a frente após a violência de Serena.
As duas permitem à June enxergar como Gilead não é o único sistema opressor. Para algumas camadas sociais, o modelo antigo conseguia ser mais deprimente. Desumanizava Ofglen e Martha mais do que o Estado atual.
June e Luke
Com todos os conflitos até o momento, é possível perceber o confronto entre liberdade e opressão que é estabelecido a cada relação. Mas a ideia de liberdade não é capaz de representar todas as relações. Não explica perfeitamente os conflitos internos vividos por June.
Analisando Luke e Nick (Max Minghella), uma camada mais profunda se aproxima da superfície.
Nos flashbacks mostrando o desenvolvimento com Luke, descobrimos que June foi sua amante por um tempo. Ele era casado, mas se apaixonou pela protagonista e eles começaram uma relação.
June estava livre ali, ao menos se comparada com Gilead. Ela podia manter aquela logística, terminar com Luke, fazer muitas outras coisas de sua vida. Mas ela também estava apaixonada pelo homem.
Em seu status de relacionamento escondido das redes sociais, June era invisibilizada. Não pela falta de postagem nas redes. Invisibilizada porque o próprio relacionamento não podia existir além de quatro paredes. O que significa esconder até os próprios sentimentos de si mesma.

#PraCegoVer: June e Luke na cama em sua primeira transa.
Essa invisibilização desumaniza a protagonista. Aquele contexto não permitia que ela falasse, sentisse, determinasse suas vontades. Ela estava à mercê das necessidades de outra pessoa desconhecida. A esposa.
Essa é quase exatamente a configuração em que June se encontra como Offred para Serena — guardadas as devidas proporções.
A invisibilização se tornou insuportável e June precisou confrontar Luke sobre sua própria necessidade. Luke não tinha intenção de machucar June, a amava, e a situação alcançou a solução sonhada para ambos.
Mesmo com pessoas que não querem provocar dores e machucados, opressão e invisibilidade, essas coisas ocorrem. A escala em que isso ocorre em Gilead é elevada infinitamente.
A relação com Luke serve para estabelecer uma necessidade inconsciente em June desde seu passado. Ser visível, um caminho para ser reconhecida como humana.
June e Nick
O outro conflito gerado graças à relação com Luke se complementa a partir da trama com Nick.
June não queria ser invisível no passado. Ela permanece não querendo ser invisível no presente. O presente é tão mais caótico que a pessoa onde June encontra algum refúgio será naturalmente problemática.
Nick gera muitas camadas de conflito. Primeiro por ser homem em Gilead, o que o confere muitos privilégios. Segundo por ser empregado na casa Waterford. Como homem, ele tem muitos privilégios. Mas não tem poder. Vindo da classe de desempregados, ele é limitado pela necessidade de obedecer aos homens poderosos. Necessidade que muitas vezes vai de encontro aos próprios interesses.
Terceiro, Nick é um Olho, um agente duplo para o sistema de Gilead.
Todos esses são sinais para que June fique longe de Nick. Contudo, no nível íntimo, os dois não conseguiram manter distância. Mesmo com todos os problemas, Nick se tornou a primeira escolha que June foi capaz de fazer desde que fora raptada. Sem ter que enfrentar a manipulação de Fred ou se adequar às demandas de Serena. Apenas fazer algo que ela queria, porque queria.

#PraCegoVer: June e Nick, lado a lado no quarto, após a notícia da gravidez de June
Através da liberdade sexual na incrível cena final do episódio 5, June se tornou visível para pelo menos uma pessoa.
Emergir para a visibilidade traz conflitos que não ocorreriam no fundo do mar da obediência e alienação. Ao buscar essa sensação de humanidade, June arrisca sua própria fidelidade, trazendo um forte conflito interno. Especialmente quando descobre que Luke está vivo e, mais tarde, que está grávida novamente, provavelmente de Nick.
June e Janine
Todas as questões anteriores culminam em uma relação, com Janine (Madeline Brewer). Uma aia como a protagonista, Janine não suportou a retirada de sua imunidade e enlouqueceu.
O que muitas vezes a faz parecer a mais normal em Gilead.

#PraCegoVer: Janine em destaque
Janine reflete os sentimentos de rebeldia de June no início, mostrando o preço que se paga pela tortura do sistema. Reflete o trabalho da aia de engravidar e fornecer uma criança para o casal de Esposa e Governador.
É como se vários “despertar” para June ocorressem em outra pessoa. A realidade fica mais clara para a protagonista através das ações e reações entre Janine e o sistema. Por essa noção de realidade, Janine leva June ao limite de suas decisões. Ao limite de seu conflito interno.
Conflito Interno e Objeto de Desejo Inconsciente
Ao seguir obediente, June se mantém focada em seu desejo consciente. Ficar viva até uma oportunidade de reencontrar Hanna. Ao se rebelar e buscar liberdade, June se aproxima de uma necessidade inconsciente, de se manter visível e se reconhecer humana. Essa necessidade, porém, arrisca sua vida e seu desejo consciente pela filha. A castiga por meio de torturas e chantagens.
Os desejos consciente e inconsciente de June se apresentam em contradição. Dessa contradição costumam surgir os mais fortes conflitos internos, fechando o quadro. A construção de nossa relação com a protagonista segue bem sucedida e se intensifica, pois conseguimos compreender a base de cada conflito na tela.
A humanidade de June não se limita ao que ela sente ou é capaz de fazer com seu corpo. Como ela se mantém parte do sistema faz diferença. A manutenção de seus valores apesar do sistema também reflete sua própria humanidade. Ela não suporta ver Janine arriscar sua vida na ponte com sua bebê. Então, ela própria arrisca sua posição para ajudar Janine e a filha a continuarem vivas. Um exemplo do último estágio na construção da relação com o público.

#PraCegoVer: June à esquerda, sentada na janela do quarto, sozinha. Uma luz entra pela janela por trás de sua cabeça, como se saísse dela.
Dilemas e decisões
June encara alguns dilemas como fugir com Moira ou deixá-la ir, se relacionar com Nick, resgatar Janine na ponte.
Todos os seus dilemas, em alguma medida, são gerados pelo conflito de seus objetos de desejo. Obedecer o status quo por Hanna, seu desejo consciente, ou manter a própria humanidade, seu desejo inconsciente.

#PraCegoVer: Uma seta desce da caixa Conflitos para uma nova caixa, “Dilemas e decisões”.
Essa relação entre os desejos é uma das principais formas que qualquer história pode usar para nos conectar com um personagem. Podemos não fazer ideia do que é ser raptada, da dor de ser separada da filha, de ser objetificada no nível extremo de Gilead. E ainda assim somos capazes de catarses, de sensações além de simples empatia. Porque a construção desses desejos e suas relações nos permitem enxergar as camadas mais profundas daquele ser.
A última resposta sobre a relação entre esses desejos e dos conflitos gerados deve vir na forma de um dilema. A decisão frente a um dilema é a última peça do quebra-cabeça da protagonista. Como ela escolhe entre bens irreconciliáveis ou entre o menor dos males, conhecendo suas motivações e lutas, nos diz quem ela é.
A consequência da situação da ponte com Janine é o castigo desta mulher. Um apedrejamento pelas outras aias. Esse é um momento chave, pois as aias não têm opção. Janine precisa ser feita de exemplo; não acatar seria um crime seríssimo. Lembramos da ameaça das Colônias, da punição à Ofglen 1, imaginamos a morte.
June não suporta a ideia de apedrejar Janine. Entretanto, ela segue se agarrando às necessidades de obedecer ao sistema. Segue se agarrando ao seu desejo consciente, à Hanna. Até que a segunda Ofglen, uma mulher que passou a uma vida teoricamente melhor em Gilead, se posiciona frente àquela barbárie. Mesmo ela enxergou um limite para aquele sistema.
Provavelmente seríamos capazes de perdoar June se ela congelasse moralmente e apedrejasse Janine. Vimos Hanna com ela, na chantagem de Serena. Vimos o sofrimento. Obedecer seria, além de perdoável, compreensível. Talvez até mais provável.
No entanto, June não aguenta. Sua necessidade inconsciente não aguenta e a força em outra direção do dilema. Entre o risco de perder Hanna em sua vida e o risco de perder a própria vida, de alguma forma o segundo se tornou o menor dos riscos. O menor dos males.
Para manter a obediência e o caminho para Hanna, June teria que abrir mão de sua humanidade. The Handmaid’s Tale a levou ao limite, colocando uma pedra em sua mão. Ali, ao tomar a decisão, sua personagem estará inteiramente revelada. Sua prioridade será estabelecida, seus valores serão postos à mesa. Nesse momento, nós, como público, seguramos a pedra com ela. Apertamos para que ela segure ou torcemos para que ela solte. Chegando ou não à mesma decisão, nossa relação está construída.

#PraCegoVer: June em destaque, segurando a pedra que recebeu para apedrejar Janine.
June nos dá 100% de quem é quando larga a pedra no chão. Nossa relação está completa. Ao menos até a segunda temporada.

#PraCegoVer: Uma seta desce da caixa Dilemas e decisões para a última caixa, “Personagem revelado”, com duas bandeiras representando a linha de chegada. Nesse ponto, os elementos necessários para a construção de uma relação entre público e protagonista estão completos.
Você também pode ler outras análises de filmes e séries aqui.
Inscreva-se para receber os novos textos do Além do Roteiro
Roteirista, apaixonado por narrativas. Editor e podcaster do Além do Roteiro.